Por Natália Pasternak e Carlos Orsi
Publicado no The Skeptic
Tradução de Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira
A origem do espiritualismo moderno, a crença de que os mortos podem falar com os vivos por meio de pessoas especialmente dotadas chamadas de ‘canalizadores’ ou ‘médiuns’, geralmente remonta à cidade de Hydesville, Nova York, em 1848, quando duas adolescentes, Maggie e Kate Fox, começaram a se comunicar com um fantasma. Décadas depois, as duas irmãs, em várias ocasiões, confessaram a fraude e denunciaram o movimento que haviam involuntariamente iniciado, mas com pouco ou nenhum efeito em sua popularidade.
Existindo inicialmente na encruzilhada entre religião e ciência – muitas vezes vista como uma fonte de validação empírica e científica para crenças que são princípios de vários sistemas religiosos e metafísicos, como a sobrevivência da personalidade após a morte corporal – o espiritualismo, pelo menos no mundo da língua inglesa, foi mais tarde fragmentado em uma variedade de cultos religiosos populistas ou espetáculos circenses, não muito diferente do negócio de cura pela fé, e igualmente infestado por operadores obscuros e práticas exploratórias. Enquanto isso, a ala mais científica do movimento se despojou, pelo menos em público, das pretensões metafísicas de seus ancestrais para fundar o campo da parapsicologia.
No Brasil, porém, as coisas aconteceram de forma bem diferente: aqui, quando o espiritualismo se fragmentou, um aspecto – denominado “espiritismo”, “kardecismo” ou “espiritismo kardecista” – suplantou todos os outros e foi abraçado por membros relevantes das elites intelectuais e profissionais – incluindo médicos, advogados, juízes, políticos. Tornou-se o principal nexo da pseudociência brasileira, incorporando ufologia, parapsicologia, cura pela fé e todos os tipos de medicinas alternativas “energéticas” e “magnéticas”.
As ideias de Kardec não impressionaram a maioria dos espiritualistas de seu tempo – o médium escocês D.D. Home (1833-1886), verdadeiro “rock star” do espiritualismo vitoriano, descreveu-as como “delírios” e “fantasias” – mas elas se enraizaram no Brasil e passaram por um processo de sincretismo bem brasileiro, a fusão de diversos doutrinas em quimeras ideológicas muito ágeis.
Por exemplo, um dos principais proponentes do kardecismo brasileiro, o médico Bezerra de Menezes (1831-1900) deixou um póstumo tratado psiquiátrico, “A Loucura sob Novo Prisma”, dizendo que transtornos mentais que ocorrem sem uma lesão cerebral perceptível deveriam ser atribuídos à interferência espiritual. O livro termina com uma carta supostamente escrita pelo fantasma de Samuel Hahnemann (1775-1843), o criador da homeopatia. Como resultado, no final do século XIX, era comum que os médiuns espíritas no Brasil prescrevessem substâncias homeopáticas enquanto estavam em transe.
Durante o século XX, o sincretismo kardecista se misturou à ufologia (OVNIs e alienígenas poderiam ser manifestações de espíritos extraterrestres de inspiração swedenborgiana), medicina alternativa (homeopatia e acupuntura), cura pela fé (transferências de “energia” para pacientes por meio de acenos de mão, não muito diferente do reiki ou do toque terapêutico, e da cirurgia psíquica mais perigosa), a parapsicologia (o livro canônico sobre a investigação de poltergeists no Brasil, por Hernani Guimarães Andrade (1913-2003) é uma obra espírita), e até jurisprudência.
A disseminação desse tipo de crença sobrenatural foi tão longe que há um debate animado em faculdades de Direito e tribunais sobre a admissibilidade de material “psicográfico”, ou seja, cartas escritas por um médium supostamente possuído pelo espírito de uma pessoa morta, como evidência em julgamentos de homicídio: pelo menos uma pessoa acusada de assassinato foi absolvida pelo júri depois que a vítima testemunhou em seu nome, direto do Grande Além.
O problema com a liberdade epistêmica é que não podemos votar para decidir se um antibiótico funciona ou não, temos que testá-lo em rigorosos ensaios clínicos. E se os testes mostrarem que o antibiótico funciona, não importa como você se sinta sobre ele, ou se você não acredita nele: ele funcionará de qualquer maneira.
Quando o método científico é criticado por não ser um método perfeito, podemos traçar uma comparação útil com a democracia: sabemos que a democracia não é perfeita, pois às vezes governos autoritários ou incompetentes são eleitos, mas é o melhor sistema que temos até agora. Da mesma forma, a ciência é o melhor sistema que temos para testar hipóteses e desenvolver tecnologias e terapias que realmente funcionem.
No entanto, o sentimento geral de liberdade em nossa jovem democracia brasileira na década de 1980 pode ter dado origem a um ambiente onde, como diz Isaac Asimov: “O anti-intelectualismo tem sido um fio constante em nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento”.
Nesse ambiente, a medicina alternativa floresceu. Endossada pela opinião pública e pelo sentimento religioso, ela rapidamente ganhou reconhecimento oficial como medicina e permaneceu de forma incontestada por várias décadas. Poucos questionaram sua presença em nosso sistema público de saúde, e logo terapias alternativas foram introduzidas em faculdades de medicina e na rede privada de saúde. Posicionar-se contra a medicina alternativa foi considerado “cientificismo” e um ato de desrespeito à sabedoria do “povo”.
Tal mentalidade impacta fortemente a forma como uma sociedade reage à medicina baseada em evidências. Não é à toa que o Brasil tem sido o centro de curas milagrosas durante a pandemia. O pensamento mágico se estende da homeopatia à cloroquina, ivermectina, nitazoxanida e todos os tipos de falsas ‘curas’ atualmente endossadas e promovidas pelo nosso Ministério da Saúde.
Os argumentos são os mesmos endossados pela “democracia epistêmica” dos anos 80: a valorização da evidência anedótica, a inversão do ônus da prova exigindo que os cientistas provem que esses tratamentos não funcionam, o uso indevido da velha retórica “a ausência de evidência não é evidência de ausência ”.
Nossa história com o espiritismo e a medicina alternativa mostra que temos um longo caminho a percorrer se quisermos promover a alfabetização científica. Não é apenas uma questão de explicar como a ciência funciona, mas de compreender décadas de hábitos culturais e crenças religiosas que se misturaram com a ciência e a medicina, e pior, a religião disfarçada de ciência. O excepcionalismo epistêmico da ciência existe por uma razão: terapias baseadas na ciência podem ser demonstradas que funcionam.