Poucas coisas são mais controversas na economia do que a batalha interna pelo método correto a ser utilizado e a batalha externa quanto ao status epistemológico da disciplina, isto é, se ela deve ou não ser vista como uma ciência – tal como as ciências naturais.
O Nobel de economia é sabidamente uma invenção a posteriori. Ele não foi idealizado pelo Alfred Nobel, tendo sido criado apenas anos depois. Alguns chegam a dizer que o prêmio distorce a natureza da economia como disciplina, visto que ele dá a parecer que a economia é uma ciência como as outras, passível de ser testada em laboratório, quando ela não o é. [1]
Com o avanço nas ultimas décadas do que ficou popularmente conhecido como finanças comportamentais e, de forma mais abrangente, como economia comportamental, nunca antes a teoria econômica ortodoxa enfrentou tantas críticas. O último prêmio Nobel, inclusive, quer você ache que deva haver ou não esse prêmio, foi concedido a Richard Thaller, um dos maiores expoentes nessa linha de pesquisa.
Nesse texto eu convido vocês a fazerem uma viagem no tempo, de volta para a década de 50, quando Milton Friedman escreveu um dos ensaios mais influentes sobre metodologia da economia, “Metodologia da economia positiva”.
Esse texto não fará apologia a metodologia do Friedman, mas eu tenho a intenção de explorar esse ensaio e mostrar para vocês do que se trata a posição metodológica mainstream nas palavras de um de seus maiores apologistas.
Em um mundo onde, mesmo após 10 anos, ainda se sente o fantasma da crise de 2008, quando para muitos não faz nem um sentido conceber que a economia seja operacionalizada apenas por agentes racionais, conhecer em profundidade a metodologia mais criticada das ciências sociais também é a melhor forma de entender quais críticas são realmente competentes em relação a ela e quais não acertam o alvo.
Não importa a realidade dos pressupostos, mas sim a capacidade preditiva da teoria. Em resumo, essa parece ser a metodologia do Friedman.
Eu me lembro de quando eu era calouro no Curso de Economia e meu professor heterodoxo de introdução à economia tentou explicar a metodologia neoclássica. Ele disse que para os neoclássicos, se alguém dissesse que um ET veio do espaço, alterou algumas coisas e então houve uma crise, essa teoria seria válida tão logo se mostrasse que ela possuía uma boa capacidade preditiva.
Era realmente esse o tom. Para quem escutava, parecia que o mainstream econômico estava louco, que ele podia utilizar qualquer axioma ou pressuposto em sua teoria sem a menor preocupação com a realidade. Isso é, em parte, verdade. Mas só em parte.
A realidade dos pressupostos é algo que gera muita discussão, e iremos discuti-lo mais tarde. Por enquanto, vamos começar fazendo uma breve diferenciação sobre 3 tipos de economia distintas: normativa, positiva e arte.
A economia já foi chamada da ciência maldita, a sua capacidade de abstrair de todas as nossas noções do que seria desejável e trazer aos nossos olhos o seu problema fundamental, que seja a questão da alocação de recursos escassos para pessoas com vontades ilimitadas é uma capacidade tanto desconfortável como importante para o funcionamento sóbrio das instituições sociais.
Proposta por John Neville Keynes [2], a tripartição da teoria econômica em normativa, positiva e arte é o primeiro passo que precisamos no intuito de separar o que é fato do que é político. A economia positiva é a área da economia que lida exclusivamente com fatos, isto é, dados empíricos, e o seu interesse não é outro senão acessar o funcionamento do sistema econômico da melhor forma possível.
É uma questão para a economia positiva, por exemplo, se o salário mínimo causa ou não desemprego. A questão do que fazer com a resposta a essa pergunta não entra no escopo da economia positiva. Você pode muito bem achar que o salário mínimo não causa desemprego mas, por algum critério ético exótico concluir que algumas pessoas devem, realmente, ganhar menos.
É uma questão de economia normativa, por exemplo, dizer que todos os trabalhadores deveriam ganhar ao menos $4 por hora para ter possibilidade de ter uma vida digna.
Seria uma questão de economia aplicada (ou arte) algo do tipo: para que os trabalhadores consigam ter um salário digno é necessário a expansão de uma política educacional no intuito de aumentar o capital social dos mesmos.
Enquanto no primeiro caso não se faz nem um juízo de valor, o segundo caso estabelece algum parâmetro de dignidade e o põe como norma. Já o terceiro caso lida com a questão de como alcançar um objetivo.
O título do ensaio não poderia ser mais preciso: é a economia pura, desprovida de qualquer juízo de valor ou proposição normativa que deve ser considerada uma ciência. A função da economia positiva é criar generalizações falseáveis que sejam boas em explicar a maior parte dos fenômenos econômicos que observamos na sociedade. Por que as firmas existem? Por que as pessoas trocam coisas? Como são determinados os salários? Todas essas perguntas envolvem vários fenômenos separados no tempo e no espaço que merecem uma boa explicação.
Existem, por exemplo, vários empregados no mundo, e cada um deles recebe um determinado salário, a função da economia positiva, nesse caso, seria elaborar uma generalização que fosse capaz de abranger o maior número de casos possíveis de definição de salário. Por ser uma generalização, essa explicação será necessariamente imperfeita em descrever todos os casos de determinação de salários, mas enquanto ela for apta a descrever o maior número possível de casos recorrendo ao menor número possível de pressupostos, ela deve ser uma boa explicação.
Pensemos em outras ciências, como física, biologia ou química que são tão frequentemente vistas como mais científicas do que a economia. Nem uma dessas ciências tem em suas principais teorias uma descrição cem por cento precisa sobre o fenômeno que deseja explicar. Existe inclusive uma piada entre os físicos em que um chega pro outro com alguma solução para um problema complexo de produção de leite e diz “Eu tenho uma solução, mas ela só funciona para vacas esféricas no vácuo”[3]. Não é nem um mistério e também não é vergonha nem uma para os cientistas naturais admitirem essa incompletude em suas mais aclamadas teorias. Parafraseando Carl Sagan em “O mundo assombrado pelos demônios”:
“a história da ciência – de longe o mais bem-sucedido conhecimento acessível aos humanos – ensina que o máximo que podemos esperar é um aperfeiçoamento sucessivo de nosso entendimento, um aprendizado por meio de nossos erros, uma abordagem assintótica do universo, mas com a condição de que a certeza absoluta sempre nos escapará. Estaremos sempre atolados no erro. O máximo que cada geração pode esperar é reduzir um pouco as margens dele e ampliar o corpo de dados a que elas se aplicam.” [4]
A teoria da relatividade geral de Einstein é problemática quando consideramos problemas relacionados a buracos negros e a mecânica quântica não se une parcimoniosamente a ela para dar uma imagem coesa do momento em que o universo não passava de um ínfimo ponto com densidade infinita, a singularidade. Quando dizemos que um objeto em queda livre cairá uma altura correspondente a gt²/2, geralmente assumimos que isso ocorrerá no vácuo. Mas qual foi o ultimo lugar que você visitou que possuía vácuo? Quando dizemos que a evolução é guiada pela seleção natural, geralmente deixamos de lado a deriva genética, responsável por alterar a nossa composição genética de forma aleatória e não devido a processos seletivos. Na química, teorias são construídas levando em consideração sistemas isolados quando, na realidade, não se conseguiu criar nem um sistema cem por cento isolado.
Einstein, Newton, Darwin e várias teorias químicas deveriam ser rejeitadas por não serem teorias que se aplicam a completude dos fenômenos observáveis ou por não terem um ambiente perfeitamente controlado para realizar experimentos? Não.
O que importa, tanto para essas teorias, como para a economia positiva é o fato delas serem teorias que dão uma explicação geral satisfatória, econômica e falseável para uma ampla configuração de fenômenos observáveis.
“Em suma, a economia positiva é ou pode vir a ser uma ciência “objetiva”, exatamente como qualquer das ciências físicas. […] A dificuldade de realizar os chamados “experimentos controlados” não corresponde, no meu entender, a uma distinção que se deva estabelecer entre ciências sociais e ciências físicas; com efeito, não só a dificuldade é comum às duas áreas (cogite-se da Astronomia, por exemplo) como, a par disso, uma presumível diferença entre experimentos controlados e experiências não-controladas e, quando muito, uma diferença de grau. Nenhum experimento pode ser completamente controlado e qualquer experiência é parcialmente controlada – no sentido de que algumas influências perturbadoras se mantêm relativamente constantes na experiência.”[5]
O principal problema que há na crítica heterodoxa à metodologia da economia ortodoxa se dá ao fato de que ela não é realista, pois assume determinados axiomas sobre o comportamento humano ou o funcionamento das firmas que não correspondem ao comportamento observado na realidade (para saber mais sobre a crítica heterodoxa em relação ao comportamento do homem no mercado ver Kahneman e Tversky[6]. Eu também escrevi a respeito aqui https://universoracionalista.org/a-neuroeconomia-pode-revolucionar-a-economia/). A teoria ortodoxa assume que todos os agentes no mercado são racionais, o que implica dizer, por exemplo, que eles jamais iriam mudar a preferência deles por uma determinada cesta só porque a forma como ela foi oferecida mudou (Efeito Framing).
Friedman esclarece que não é que os economistas ortodoxos acreditam de fato que cada ser humano é uma calculadora baseada em carbono, o que acontece é que as suas teorias assumem que as pessoas agem no mercado como se fossem agentes completamente racionais. E esse “como se” faz toda a diferença para a questão.
Uma teoria que deseje explicar um fenômeno como um todo não pode sacrificar a sua capacidade sumarizadora em prol de um realismo estrito que explique um determinado comportamento rotineiramente desprezível para o maior fenômeno que é estudado. A economicidade da teoria é, também, um dos critérios pelo qual uma teoria é considerada superior a outra e um economista não deve considerar para o seu modelo mais elementos do que os necessários para dar uma explicação satisfatória. Como aponta Lisboa:
“segundo Friedman, a formulação teórica caracteriza-se precisamente pela necessária adoção de hipóteses contra-factuais e simplificações que procuram delimitar os argumentos envolvidos e abstrair os elementos considerados pouco relevantes para a análise do fenômeno a ser estudado” [7]
Imagine como seria caso houvesse físicos exprimindo que a teoria do Einstein é condenável por ser “irrealista” ao não explicar o comportamento dos buracos negros e que, em seu lugar, propõem uma teoria que explica realmente os buracos negros em suas maiores minúcias mas que são incompetentes para prever o comportamento de todo os fenômenos restantes que eram satisfatoriamente explicados por Einstein e que eram de um escopo muito maior?
Perceba que a questão aqui não é se as teorias heterodoxas comportamentais estão erradas, mas sim qual é a relevância real do acerto delas para a teoria neoclássica. Para Friedman elas são irrelevantes.
“as críticas desse tipo são mais ou menos inócuas, exceto quando se vejam suplementadas por evidência de que outra hipótese, diferente da teoria criticada em pelo menos um desses aspectos, conduz a previsões melhores, em um ambito não menor de fenômenos.”
O grande problema, dirá Friedman, é quando começam a tentar invalidar as teorias por outros meios que não o seu teste e posterior avaliação da sua adequação para com o que é observado na realidade. Friedman é, em muitos sentidos, um Popperiano, muito embora se especule se ele realmente teve acesso aos escritos de Popper nessa época. E como um bom Popperiano, Friedman deseja que as teorias sejam avaliadas em relação as suas capacidades preditivas e não em relação ao “realismo dos seus pressupostos”. Mesmo aqueles que criticam o realismo dos pressupostos não poderiam senão pela testagem averiguar qual seria o pressuposto mais relevante para a teoria.
Um outro ponto que deixa de forma explícita a consonância do Friedman com o Popper se dá pelo fato de que o Friedman também não via as teorias como sendo “confirmadas” pelos testes, mas meramente “não sendo refutadas”. Ele diz:
“A evidência factual jamais “prova” uma hipótese; pode, apenas, deixar de refutá-Ia e é isso, justamente, o que se entende ao dizer, de maneira um tanto inexata, que uma hipótese foi “confirmada” pela experiência.”
De fato, Nadeau argumenta que chega a ser difícil comparar Popper a Friedman, não por causa das suas diferenças, mas sim por causa de suas similaridades
“As visões de Friedman podem ser ditas como estando em acordo completo e em completa harmonia com Popper. O desafio de comparar Friedman com Popper é justamente por causa disso.” [8]
Inclusive no que se refere ao princípio da racionalidade aplicado nas ciências econômicas
“Popper toma um grande cuidado em nos contar explicitamente que o RP (Princípio da Racionalidade) é evidentemente uma afirmação falsa quando considerada como uma lei psíquica, mas que, entretanto, constitui uma conjectura indispensável tão logo nós queiramos ser capazes de explicar qualquer coisa acontecendo na sociedade. O RP pode muito bem ser falso, diz Popper, mas ele constitui, frente a isso, uma hipótese empírica (deveríamos talvez chamar de “pressuposto”?) próxima o suficiente da verdade (ou verisimilar) que tem que ser usada como a única “lei de animação” disponível de qualquer sistema social tomado como um todo.”
É claro que ser Popperiano não imuniza Friedman das críticas, não mais do que imuniza ao próprio Popper, e é sabido que há críticas dignas de atenção levantadas contra a doutrina do falsificacionismo do Popper. Mas é importante ressaltar essa conexão de modo que fique claro que os economistas neoclássicos não possuem uma metodologia tão exótica e mirabolante como se poderia pensar em primeiro plano. Na verdade, é uma teoria que anda de mãos dadas com um dos maiores filósofos da ciência do século XX.
E quanto a qualquer axioma poder ser encaixado, de tal forma que a teoria consiga de forma bem sucedida prever os acontecimentos sem saber a posteriori explicar o porque deles ocorrerem, isso também não parece estar 100% em consonância com o paper do Friedman. Embora seja verdade que em alguns trechos assim pareça, em outros trechos Friedman parece indicar que os critérios tendem a ser definidos a partir de uma análise pragmática da realidade.
“Consideremos o problema de determinar (prever) os pontos feitos por um exímio jogador de bilhar. Não parece descabido supor que excelentes previsões seriam obtidas a partir da hipótese de que o jogador executa as tacadas como se conhecesse as complicadas fórmulas matemáticas pelas quais ficariam fixadas as trajetórias ótimas […] A confiança que depositamos em tal hipótese não provém da crença em que jogadores de bilhar, ainda que exímios, possam atravessar ou atravessem, de fato, as fases do processo descrito; provem, ao contrário, da crença em que as pessoas, se não atingissem, de alguma forma, os mesmos resultados práticos, deixariam de ser exímios jogadores de bilhar.”
Esse exemplo dado por Friedman de certa forma ameniza o seu instrumentalismo estrito do resto do paper. Não é que as hipóteses sejam provadas ou refutadas pelo realismo dos seus pressupostos, mas ao que parece uma hipótese que é confirmada pela experiência também costuma ter uma relação óbvia com a mesma em sentido prático.
Friedman vai ainda mais longe quando diz que
“o que denominamos pressupostos de uma hipótese presta-se para dar-nos alguma evidência indireta relativa a aceitabilidade da hipótese, na medida em que os pressupostos possam ver-se, eles mesmos, considerados como implicações da hipótese (de modo que seu acordo com a finalidade seja uma forma de não contraditar algumas implicações)”
Visto que apenas o submetendo as hipóteses a teste nós conseguimos avaliar evidência direta ao seu favor, não se pode utilizar os pressupostos como evidências diretas para desaprovar uma hipótese. Isso não implica, entretanto, que os pressupostos não devam ter nem uma utilidade para o cientista, de modo a poderem ser utilizados de forma arbitrária. Na verdade os pressupostos possuem uma fundamental importância, visto que ao servir de evidência indireta para uma hipótese nos ajuda a passar um primeiro filtro, por assim dizer.
Um pressuposto ganha confiança da comunidade científica conforme a hipótese advinda dele se mostra como tendo um bom poder preditivo. Assim, outras hipóteses ainda não submetidas a teste podem gozar do status desse pressuposto ao incorporá-lo, de forma a tentar explicar uma diferente classe de eventos fazendo referência a ele.
“O peso associado a essa evidência indireta depende de quão intimamente julgamos estarem relacionadas as duas classes de fenômenos. Outro modo pelo qual os “pressupostos” facilitam o teste indireto de uma dada hipótese resulta do fato deles trazerem a tona a similaridade que ela possa manter com outras hipóteses, tornando, assim, relevante para a validade da hipótese em tela a evidência que corrobora as demais.”
Isso em vista, acredito que a hipótese do ET com a qual eu comecei esse texto dificilmente sobreviveria a testes o suficiente nem se esquivaria dos ad hocs, nem tampouco se conectaria com outras hipóteses de modo a valer a confiança dos economistas. Vale lembrar que o fato de podermos utilizar um mesmo pressuposto para elaborar diferentes hipóteses que são boas em prever os fenômenos observados é algo sempre desejável, pois corrobora com a economicidade da teoria, fazendo-a explicar uma variedade ainda maior de fenômenos com as mesmas ferramentas.
Portanto, ao escrever sobre as bases da metodologia econômica, Friedman estabeleceu que são os testes os responsáveis primeiros por determinar qual teoria deve ser aceita e qual não deve, ressaltou a importância da economicidade das teorias e, longe de negar que os seres humanos não são racionais, talvez tenha sido ele um dos que mais deixou explícito em seus escritos que, ipsis litteris, eles realmente não são. A grande divergência entre ele e os heterodoxos pode ser resumida a importância que isso tem para a teoria econômica, ou, em outras palavras: “o que fazer com isso?”
[2] https://socialsciences.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/keynesjn/Scope.pdf
[3] http://scienceblogs.com.br/dimensional/2009/04/044/
[6] http://courses.washington.edu/pbafhall/514/514%20Readings/ProspectTheory.pdf
[8] https://unites.uqam.ca/philo/profs/nadeau/textes/Friedman%20and%20Popper.pdf