Por Dirk Verhofstadt
Publicado na Center for Inquiry
Irshad Manji é uma jornalista canadense e feminista. Como muçulmana, ela busca lutar destemidamente para enfrentar os crimes e as hipocrisias dos auto-nomeados líderes de sua religião. Com seu livro The Trouble with Islam ela se junta ao crescente número de mulheres muçulmanas que condenam a opressão ás mulheres no mundo muçulmano. Seu apelo para o “pensamento crítico e o raciocínio independente” é visto como uma carta aberta para o mundo muçulmano. Manji oferece uma visão prática de como podemos ajudar os muçulmanos a empreenderem uma reforma que capacite mulheres, promova o respeito pelas minorias religiosas, e se abra a novas ideias. Seu livro poderá inspirar muçulmanos em todo o mundo para revisar os fundamentos de sua Fé. The Trouble with Islam está agora à venda em uma tradução holandesa nos Países Baixos e na Bélgica. Dirk Verhofstadt teve uma entrevista exclusiva com Irshad Manji em Antuérpia.
Qual é o problema com o Islã?
Irshad Manji: O problema com o Islã, hoje, em uma palavra, é literalismo. Literalismo é um compromisso com a rigorosa exatidão de palavras ou significados na leitura ou interpretação. Cada religião tem sua parcela de literalistas. Mas a diferença é que somente o Islã hoje em dia tem majoritariamente literalistas. Nós, muçulmanos, mesmo aqui no Ocidente, acreditamos que, porque o Alcorão vem depois da Torá e da Bíblia, portanto, é o manifesto final e a perfeita vontade de Deus. Mesmo os muçulmanos moderados irão dizer um ao outro que o Alcorão não é como qualquer outro livro sagrado. É como um “Deus 3.0”, e não haverá nada depois. É um complexo de supremacia perigosa, porque quando o abuso acontece sob a bandeira da religião, a maioria dos muçulmanos, incluídos aqueles com diplomas universitários, não tem como desafiar o Islã. Eles não precisam pensar nem ter habilidades de pensamento crítico para aplicar. Nós nunca fomos capazes de questionar o Alcorão.
Quais são as suas recomendações para tirar o Islã de seu estado atual?
Irshad Manji: Precisamos urgentemente de uma “Operação Ijtihad”. O Islã não foi sempre assim. Durante a “idade de ouro” – entre os séculos 9 e 11 – existia uma tradição de pensamento crítico no mundo muçulmano. Por exemplo, em Córdoba, na Espanha, existiam 70 bibliotecas. Cordoba tomou o seu lugar como um dos centros culturais do mundo medieval. A aprendizagem muçulmana na Europa foi alcançada durante o tempo do filósofo Averróis (Ibn Rushd) no século 12. Ijtihad é a tradição islâmica de pensamento crítico e o Raciocínio Independente. Agora temos que re-descobrí-lo precisamente para atualizar o Islã ao século 21. A oportunidade de atualizá-lo é especialmente disponível para os muçulmanos do Ocidente, porque é aqui que podemos desfrutar de liberdades preciosas para pensar, nos expressar, desafiar e sermos desafiados sem medo de represálias estatais. Nesse sentido, a Reforma Islâmica tem de começar do Ocidente. Proponho uma campanha não-militar para promover tais abordagens individuais para o Islã, para re-descobrir o nosso pensamento crítico tradicional.
Também refere-se às ideias do economista peruano Hernando de Soto. Você pode explicar por quê?
Irshad Manji: O centro da “Operação ijtihad” está em torno dos desafios empresariais das mulheres muçulmanas por meio de empréstimos de micro-negócios. Estas são uma espécie de micro-investimentos. A ideia aqui é dar às mulheres os recursos para iniciar negócios, de modo que elas ganhem seus próprios ativos, e com estes ativos, elas possam ensinar aos seus próprios filhos. Elas podem começar as suas próprias escolas, o que está acontecendo agora em algumas partes de Cabul. A linha de fundo de tudo isso é que, quando as mulheres tem seus próprios ativos, elas podem ler o Alcorão por si mesmas. Em seguida, elas irão descobrir versos do Corão que os imãs nunca iriam dizer a elas. Por exemplo, o Alcorão diz que as mulheres têm o direito de negociar as condições do casamento. Mas as mulheres nunca são informadas sobre esses versículos. Isso permitiria que elas interpretassem-as por si mesmas.
Você se denomina uma “muçulmana-recusante”. O que isso significa?
Irshad Manji: Isso não significa que eu rejeito ser uma muçulmana, mas eu me recuso a participar de um exército de autômatos em nome de Alá. É por isso que o espírito do meu livro é sobre o questionamento. Ele desafia os muçulmanos em todo o mundo a acabarem com as violações dos direitos humanos cometidas contra as mulheres e as minorias religiosas em nome do Islã. Ele também pede o fim do anti-semitismo que não tem base na pregação do Alcorão.
Você é religiosa?
Irshad Manji: Eu realmente não me considero religiosa, mas acho que sou espiritualista. Há certos rituais associados ao Islã que eu faço prática porque eles falam da minha integridade. Por exemplo, eu jejuo durante o mês do Ramadã porque isto ajuda a construir o meu caráter, a disciplina e a empatia com os pobres. Estes são valores que eu acredito. Eu dou o “Zakat“, um sistema de caridade do Islã. Aqueles que têm muita riqueza doam muito pouco para aqueles que não o tem. Esta rotação da riqueza é uma maneira de equilibrar a desigualdade social. Eu dou mais que se espera de mim, na verdade. Mas, ao mesmo tempo, eu não rezo da maneira muçulmana convencional. Eu fiz isso até meus vinte e poucos anos, mas eu percebi que isso não era nada mais do que um ritual insignificante. E eu me importo o suficiente sobre o meu relacionamento com Deus para injetá-lo com mais significado, e é por isso que tenho ainda conversas espontâneas com meu criador. E, finalmente, eu me recuso a fazer a peregrinação a Meca, enquanto Meca exclui os judeus e os Cristãos por seguirem suas crenças. Eu não preciso ser religiosa para se sentir muito confortável em ser uma muçulmana.
Nahed Selim, um autor holandês com raízes egípcias, escreveu que um monte de estipulações no Alcorão foram escritas por homens, a fim de oprimir as mulheres. Você concorda?
Irshad Manji: Certamente muita das interpretações do Alcorão tem sido passada por homens. Mas isso não foi sempre o caso. Durante a “Era de Ouro”, as mulheres muçulmanas participavam da sociedade. A esperança para mim é que nós reabriremos o portão para “Ijtihad”. Eu não estou interessada em voltar aos desejos imperialistas dos muçulmanos e a ideia de que os muçulmanos são superiores em relação a outras pessoas, como foi o caso durante a “Era de Ouro” do Islã, mas sim na liberdade de expressão e exploração.
A homossexualidade não é permitida no Islã. Como você concilia a sua homossexualidade aberta com a sua fé?
Irshad Manji: Eu sou lésbica, isso é verdade, mas não uma lésbica arrogante. Eu até mesmo aceito a possibilidade que meu criador rejeite a minha homossexualidade como um pecado, mas só ele pode fazer esse julgamento. Enquanto isso, estes muçulmanos que me desafiam, tem de ler as estipulações em que acreditam. O Alcorão diz que tudo o que Deus criou é “excelente” e que nada que Deus criou foi “em vão”. Se o criador não queria me criar, uma lésbica, então por que ele não criou outra pessoa no meu lugar? E dada a forma como o Alcorão diz explicitamnte, Deus deliberadamente concebeu multiplicidade de tirar o fôlego do mundo, e eu me pergunto como meus críticos podem justificar a sua total condenação da homossexualidade. Mas quer saber? Eu não estou buscando a aprovação deles. Eu não me importo se eles me aceitem como uma lésbica. Eu não me importo, porque eles não são os árbitros da minha vida.
o Islã é compatível com a ideia da separação entre religião e Estado?
Irshad Manji: Para ser honesta, eu não sei. O Alcorão não diz nada sobre a forma adequada de governo. Se o Alcorão é um documento aprovado por Deus, totalmente ou em parte, o silêncio é deliberado, e se o silêncio é deliberado, isto deve significar que temos espaço para inovarmos e fazer experiências com as diferentes formas de governo. Portanto, em teoria, o Islã é compatível com a separação entre Crença e Estado. Na verdade, essa deve ser a tarefa real. Essa é a razão pela qual eu sigo com tanto interesse a situação no Iraque e no Afeganistão, onde foram introduzidas novas constituições. Em ambos os países, eles introduziram os direitos das mulheres e, no caso do Iraque, até mesmo o direito de não acreditar no Islã. Mas será que o sistema judicial em ambos os países são independentes o suficiente para reconhecer que qualquer interpretação da Sharia é totalmente humana e não foi Deus que fez? Eu não sei a resposta, o tempo dirá.
Na França, eles aprovaram uma lei que proíbe os funcionários públicos e professores em escolas públicas de usar véus e notáveis sinais religiosos. Qual a sua opinião sobre isso?
Irshad Manji: Como uma norte-americana (Manji, atualmente vive no Canadá) Eu não acho que deveria ser um crime apresentar-se como uma pessoa de fé. Contanto que você não esteja infringindo os direitos básicos de outras pessoas, e contanto que ela seja de fato uma escolha, as pessoas podem usar o que elas quiserem. O verdadeiro problema é que, em muitos casos, o uso de uma hijab não é uma escolha. Ela é imposta a mulheres pelos seus maridos. De acordo com um levantamento de alguns dias antes da aceitação da referida lei na França, a maioria das mulheres muçulmanas disseram que apoiavam a proibição do hijab. Não porque elas se opunham ao hijab, mas porque elas se opunham à violência e à intimidação que elas experimentaram nas mãos de homens que insistiam que as usassem. Vários homens muçulmanos consideram a sua esposa como uma propriedade. As mulheres nesta parte do mundo tem a opção de fazer a sua própria escolha. Em muitas partes do mundo muçulmano, incluindo as comunidades muçulmanas do Ocidente, elas não têm escolha, e querem fazer sua própria escolha.
Muçulmanos consideram as mulheres como inferiores?
Irshad Manji: Sim, eu acho que a maioria dos muçulmanos fazem isso, e na verdade eles que estão em uma posição inferior. Muitas mulheres muçulmanas não se consideram como inferiores, mas usam um véu porque elas se sentem como mulheres dignas. Porque elas querem se proteger dos olhares e julgamento dos homens. Mas se as mulheres são tão dignas, por que há um fardo para as mulheres em se cobrir, a fim de proteger-se dos olhares dos homens? Por que não podem ser aceitas pelos homens, que deveriam controlar seus próprios instintos ou comportamento animal? Esta é uma pergunta que eu nunca tenho ouvido uma resposta satisfatória de qualquer mulher muçulmana. E eu vou continuar fazendo essa pergunta. Precisamos urgentemente de uma “operação Ijtihad” para libertar as mulheres muçulmanas de seu status inferior.
Muitas pessoas do mundo árabe se opõem a Israel. Qual é a sua opinião sobre esta atitude?
Irshad Manji: Eu passei algum tempo em uma “madrassa”, uma escola religiosa islâmica. O programa de ensino era caracterizado em dois temas: as mulheres são inferiores e os judeus são traiçoeiros. A minha visita a Israel no verão de 2002 me mostrou algo totalmente diferente. A maioria dos muçulmanos que se opõem à existência do Estado Judeu de Israel são influenciados por um monte de propaganda sobre a vitimização do povo palestino. Eu não estou negando que os palestinos foram vítimas, mas não todos. Mas eles também são vítimas de sua própria liderança e não apenas pelos israelenses. Por exemplo, desde 1937-1938, qualquer proposta de um Estado palestino independente havia sido rejeitada pela liderança palestina, que, portanto, nunca consultou o povo palestino. Isto é democrático? Também é importante ressaltar que os países árabes apoiam a luta dos palestinos contra Israel, mas no Líbano é contra a lei os palestinos terem propriedades ou um emprego em tempo integral. Após a primeira guerra do Golfo, o governo do Kuwait expulsou 300.000 palestinos como uma forma de puni-los por causa do apoio de Arafat a Saddam Hussein. Meu ponto aqui é que há muita hipocrisia no mundo árabe. Espero que mais europeus tomem uma posição pública para denunciar o extremismo islâmico e não apenas o extremismo de Israel.
Na maioria dos países europeus, partidos de direita são bem sucedidos. Eles se opõem aos estrangeiros em geral e aos muçulmanos em particular. Qual a sua opinião sobre isso?
Irshad Manji: Esta é uma evolução triste. Mas os ocidentais não-muçulmanos também têm de parar de silenciar e censurar a si mesmos. O Alcorão não pode mais ser tomado literalmente por muçulmanos e o multiculturalismo não pode mais ser tomado literalmente por não-muçulmanos. Amin Malouf, o romancista árabe-Francês, expõe isto muito bem quando diz que “tradições merecem respeito apenas na medida em que elas próprias são respeitáveis”. Não podemos aceitar assassinatos de honra, circuncisões religiosas, casamentos forçados ou outras formas de opressão ás mulheres. Algumas pessoas dizem: “esta é a nossa cultura!”, mas isso não pode ser uma desculpa. As pessoas têm de assumir as suas responsabilidades. Eu não apoio partidos de direita não só porque eles odeiam imigrantes, mas também porque eles rejeitam homossexuais, mães solteiras e assim por diante.
Quais são suas expectativas quanto à forma como este livro vai ser recebido quando ele finalmente for publicado no mundo árabe?
Irshad Manji: (rindo) Para ser honesta, eu não acho que eu vou encontrar uma editora de língua árabe [que o publique]. Mas vou postar uma versão em árabe do meu livro no meu site até o final deste ano. E eu tentarei distribuí-lo no mundo árabe em cassetes de áudio. nem que seja por distribuição subterrânea. Se pudermos espalhar estas ideias revolucionárias por aquele caminho, por que um jovem muçulmano ocidental não poderia fazer o mesmo?
Você não tem medo de sua vida?
Irshad Manji: (séria) Absolutamente não. Há uma razão para viver. Em minha casa, em Toronto, eu tenho a parte superior cheia de sistemas de segurança de ponta, janelas à prova de bala e um guarda-costas, isso feito após a recomendação da polícia. Mas eu não tenho medo, porque eu sinto que eu estou fazendo pelas razões certas. Eu não acho que eu vou morrer por causa disso, mas se eu morrer, posso te dizer que ficaria muito feliz em ter vivido com grande efeito.