Traduzido por Julio Batista
Original de Kai Kupferschmidt para a Science
Quando o número de casos de COVID-19 voltou a aumentar em Manaus, em dezembro de 2020, Nuno Faria ficou pasmo. O virologista do Imperial College London e professor associado da Universidade de Oxford tinha acabado de escrever com colegas um paper para a Science estimando que três quartos dos habitantes da cidade já haviam sido infectados com o SARS-CoV-2, o coronavírus pandêmico – mais do que suficiente, pelo que parecia, para a imunidade do rebanho se desenvolver. O vírus já deveria ter sido encurralado em Manaus. No entanto, os hospitais estavam lotando novamente. “Era difícil conciliar essas duas coisas”, disse Faria. Ele começou a procurar por amostras que pudesse sequenciar para descobrir se mudanças no vírus poderiam explicar o ressurgimento.
No dia 12 de janeiro, Faria e seus colegas postaram suas conclusões iniciais no site virological.org. Treze das 31 amostras coletadas em meados de dezembro em Manaus acabaram por fazer parte de uma nova linhagem viral que chamaram de P.1. São necessárias muito mais pesquisas, mas eles dizem que uma possibilidade é que, em algumas pessoas, a P.1 evite a resposta imunológica humana desencadeada pela linhagem que devastou a cidade no início de 2020.
Variantes emergentes do coronavírus têm estado nas notícias desde que os cientistas deram o alerta sobre a B.1.1.7, uma variante do SARS-CoV-2 que chamou a atenção dos cientistas pela primeira vez na Inglaterra em dezembro e que é mais transmissível do que os vírus que circulavam anteriormente. Mas agora, eles também estão se concentrando em uma nova ameaça potencial: variantes que poderiam acabar com a resposta imunológica humana. Esses “contornos imunológicos” podem significar que mais pessoas que tiveram COVID-19 permaneceriam suscetíveis à reinfecção e que as vacinas comprovadas podem, em algum momento, precisar de uma atualização.
Em reunião da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 12 de janeiro, centenas de pesquisadores discutiram as questões científicas mais importantes levantadas pela onda de novas mutações. A OMS também convocou seu Comitê de Emergência da COVID-19 em 14 de janeiro para discutir o impacto das novas variantes e as restrições de viagens que muitos países estão impondo para contê-las. O comitê pediu um esforço global para sequenciar e compartilhar mais genomas do SARS-CoV-2 para ajudar a rastrear mutações. Eles também pediram aos países que apoiassem “os esforços globais de pesquisa visando entender melhor as sérias incógnitas sobre as mutações e as variantes específicas do SARS-CoV-2”.
A variante mais transmissível, B.1.1.7, já está se espalhando rapidamente no Reino Unido, Irlanda e Dinamarca, e provavelmente em muitos outros países. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA divulgaram um estudo de modelagem na sexta-feira mostrando que a cepa pode se tornar a variante predominante nos Estados Unidos em março. Mas os cientistas também estão preocupados com a 501Y.V2, uma variante detectada na África do Sul. Algumas das mutações que ela carrega, incluindo as chamadas E484K e K417N, alteram sua proteína de superfície, a “spike”, e mostraram em laboratório reduzir a eficiência dos anticorpos monoclonais em combater o vírus. Em um paper pré-publicado no início deste mês, Jesse Bloom, um biólogo evolucionário do Instituto de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson, mostrou que E484K também reduziu a potência de soros convalescentes de alguns doadores em 10 vezes – embora ele tenha sido rápido em acrescentar que isso não significa necessariamente que a mutação iria fazer com que a imunidade das pessoas à nova cepa caia 10 vezes.
A P.1 aumenta as preocupações porque parece ter atingido uma constelação semelhante de mutações e surgiu em um local com um alto nível de imunidade. “Sempre que você vê as mesmas mutações surgindo e começando a se espalhar várias vezes, em diferentes cepas virais em todo o mundo, isso é uma evidência realmente forte de que há alguma vantagem evolutiva para essas mutações”, diz Bloom.
Como a B.1.1.7, a variante identificada em Manaus já está circulando de forma ampla. Quando Faria estava terminando sua análise dos genomas brasileiros, um relatório foi publicado de uma variante detectada em viajantes que chegavam ao Japão vindos do Brasil – e acabou sendo a P.1.
Más companhias
As formas que essas novas variantes estão afetando o curso da pandemia ainda não estão claras. Em Manaus, por exemplo, a P.1 pode não ter nada a ver com o novo surto de infecções; a imunidade das pessoas pode simplesmente estar diminuindo, disse o epidemiologista de Oxford Oliver Pybus. Em uma conferência de imprensa hoje, Mike Ryan da OMS advertiu que as mudanças no comportamento humano ainda são a principal força motriz para o ressurgimento. “É muito fácil colocar a culpa nas variantes e dizer que foi o vírus que fez isso”, disse ele. “Infelizmente, também foi o que não fizemos que colaborou com isso.”
Mesmo que a variante desempenhe um papel crucial, ela pode estar impulsionando o aumento porque é transmitida com mais facilidade, como a B.1.1.7, e não porque pode contornar a resposta imunológica. “É claro que também poderia ser uma combinação desses fatores”, diz Pybus. Da mesma forma, em um recente estudo de modelagem, pesquisadores da Faculdade de Higiene e Medicina Tropical de Londres calcularam que a variante sul-africana 501Y.V2 poderia ser 50% mais transmissível, mas não mais eficiente para contornar a imunidade, ou poderia ser tão transmissível quanto as variantes anteriores, mas capaz de contornar a imunidade em uma em cada cinco pessoas previamente infectadas. “A realidade pode estar entre esses extremos”, escreveram os autores.
Ester Sabino, bióloga molecular da Universidade de São Paulo, está desenvolvendo um estudo para rastrear as reinfecções em Manaus que possam ajudar a decidir entre essas hipóteses para a P.1. Ela também está trabalhando para sequenciar mais amostras de Manaus a partir de janeiro para acompanhar a disseminação da variante. “Ainda não temos os dados, mas acho que agora será 100% de certeza”, disse ela. Estudos de laboratório investigando as variantes também estão em andamento. O Reino Unido lançou hoje um novo consórcio, G2P-UK (abreviação de “genotype to phenotype-UK” ou, na tradução livre, “genótipo para fenótipo-Reino Unido”), liderado por Wendy Barclay do Imperial College London, para estudar os efeitos de mutações emergentes no SARS-CoV-2. Uma ideia discutida na reunião da OMS de 12 de janeiro é a criação de um biobanco que ajudaria os estudos ao abrigar amostras de vírus, bem como o plasma daqueles que receberam vacinas e dos pacientes recuperados.
As interações entre as novas mutações podem tornar mais difícil descobrir seus efeitos. Todas as variantes do Reino Unido, África do Sul e Manaus compartilham uma mutação chamada N501Y, por exemplo, ou Nelly, como alguns pesquisadores a chamam. Mas a mutação, que afeta a proteína spike, também ocorre em algumas variantes que não se espalham mais rápido, sugerindo que a N501Y não opera sozinha, disse Kristian Andersen da Scripps Research: “Nelly pode ser inocente, exceto talvez quando ela está saindo com más companhias.”
Bloom acredita que nenhuma das mudanças irá permitir que o vírus contorne totalmente a resposta imunológica. “Mas eu esperaria que esses vírus tivessem alguma vantagem quando grande parte da população tivesse imunidade” – o que pode ajudar a explicar o aumento em Manaus.
Atualizações de vacinas
Até agora, o vírus não parece ter se tornado resistente às vacinas da COVID-19, disse o vacinologista Philip Krause, que preside um grupo de trabalho da OMS sobre vacinas da COVID-19. “A notícia não muito boa é que a rápida evolução dessas variantes sugere que, se é possível que o vírus evolua para um fenótipo resistente à vacina, isso pode acontecer mais cedo do que gostaríamos”, acrescenta. Essa possibilidade aumenta a urgência de colocar uma boa vigilância em vigor para rastrear tais variantes desde o início, disse a bioestatística Natalie Dean, da Universidade da Flórida (EUA). Mas também aumenta a urgência de vacinar as pessoas, disse Christian Drosten, virologista do Hospital Universitário Charité, em Berlim. “Temos que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para vacinar o máximo de pessoas o mais rápido possível, mesmo que isso signifique correr o risco de selecionar algumas variantes”, diz ele.
Se surgirem cepas de SARS-CoV-2 resistentes à vacina, pode ser necessário atualizar as vacinas. Várias vacinas podem ser facilmente alteradas para corresponder com as mutações mais recentes, mas as agências reguladoras podem hesitar em autorizá-las sem ver os dados atualizados de segurança e eficácia, disse Krause. Se novas variantes circularem com cepas mais antigas, vacinas multivalentes, eficazes contra várias linhagens, podem até ser necessárias. “Para ser claro: essas são considerações posteriores”, diz Krause. “O público não deve pensar que isso é iminente e que novas vacinas serão necessárias”. Mas Ravindra Gupta, pesquisador da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, diz que os fabricantes deveriam começar a produzir vacinas destinadas a gerar imunidade a versões mutantes da proteína spike, porque elas continuam surgindo. “Isso nos diz que devemos ter essas mutações em nossas vacinas, para que você feche uma das vias necessárias para o vírus avançar.”
Por enquanto, o aumento da transmissibilidade é a maior preocupação, disse a virologista Angela Rasmussen, da Universidade de Georgetown (EUA). “Estou intrigada por que [isso] não tem sido tratado como uma parte importante da conversa”, disse ela. O sistema hospitalar dos EUA, disse ela, “está lotado em muitos lugares e aumentos adicionais na transmissão podem nos levar ao limite onde o sistema entra em colapso. Então começaremos a ver aumentos potencialmente enormes na mortalidade.”