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O ceticismo do cético

Por Michael Shermer
Publicado na Scientific American

A ciência valoriza dados e estatísticas e defende as virtudes da evidência e da experimentação. Aqueles que assim como nós “observam o mundo através de uma ótica racional” possuem a sua disposição uma ferramenta pouco utilizada: a lógica afiada de Christopher Hitchens, um lógico experiente treinado em retórica. Hitchens – que está “deixando a festa um pouco mais cedo do que eu gostaria” por causa de um câncer de esôfago, como lamentou Charlie Rose em uma recente entrevista na rede de televisão PBS – tem algo profundamente importante a oferecer sobre como pensar em reivindicações não científicas. Embora ele não tenha nenhum treinamento formal em ciência, eu o coloco contra qualquer um dos provedores de falatório pseudocientífico em razão de sua habilidade única e invejável em descascar de volta as camadas de um argumento e cortá-lo em seu núcleo.

Todos nós faríamos bem em observar e abstrair seu poder de detectar e dissecar bobagens através do pensamento claro. Na verdade, depois de ver um charlatão curandeiro espancando os pobres da Índia em uma tarde de domingo, o beletrista expressou desagrado numa coluna de 2003 da Revista Slate: “O que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas”. A observação é digna de elevação a um dito.

É claro que, como cientistas, preferimos juntar evidências, quando disponíveis, a análises lógicas em apoio a uma argumentação ou a oferecer uma contraprova que conteste uma reivindicação. Um exemplo admirável do pensamento perspicaz de Hitchens, ligado ao emprego efetivo da contra-evidência, é sua reação a um episódio da série de televisão Planet Earth . Enquanto observava, ele teve uma revelação das falhas profundas do criacionismo. O episódio foi na série Life in the Undergrowth, durante o qual Hitchens notou que a salamandra cega tinha “olhos” que “eram representados apenas por pequenas concavidades ou recortes”, como ele relatou em um comentário de 2008 da Slate: “Mesmo quando eu estava compreendendo as implicações disso, a bela voz de Sir David Attenborough estava me dizendo quantos milhões de anos foram necessários para que esses habitantes do submundo perdessem os olhos que outrora possuíram”.

Os criacionistas fazem uma grande discussão sobre o olho, insistindo que o passo a passo do gradual processo da seleção natural não poderia ter esculpido um instrumento tão complexo por causa da “complexidade irredutível”, significando que a remoção de qualquer parte a tornaria inútil. Até mesmo Charles Darwin se preocupou com o olho em Sobre a Origem das Espécies: “Supor que o olho, com todos os seus inimitáveis mecanismos ​​para ajustar o foco a várias distâncias, para admitir diferentes quantidades de luz e para fazer a correção da refração esférica e cromática, poderia ter sido formado por seleção natural, parece, eu confesso livremente, absurdo no mais alto grau possível”.

Se Deus criou o olho, então como os criacionistas explicam a salamandra cega? “O máximo que eles podem fazer é alegar que ‘o Senhor dá e o Senhor tira’”, afirmou Hitchens. “Considerando que a probabilidade de que a cegueira postulatória das salamandras subterrâneas seja outro aspecto da evolução pela seleção natural, parece, a meu ver, quando se pensa sobre isso, tão esmagadoramente provável que constitui uma quase certeza”. Para confirmar seus instintos, Hitchens consultou o biólogo evolucionário Richard Dawkins, que concordou: “Por que diabos Deus criaria uma salamandra com vestígios de olhos? Se ele queria criar salamandras cegas, por que não criar apenas salamandras cegas? Por que dar-lhes olhos fictícios que não funcionam e que parecem herdados de ancestrais avistados?

O ponto de Hitchens é ainda mais profundo, no entanto, quando ele aplica o argumento contrafactual de regressão ao cosmos em si, observando que “há uma utilidade dialética para considerar os argumentos convencionais contrários, por assim dizer. Por exemplo, para a antiga questão teísta: “Por que existe algo em vez do nada”? “agora podemos contrapor as descobertas do professor Lawrence Krauss e outros, sobre a previsível morte térmica do universo”… Assim, a questão pode e deve ser reformulada: “Por que nosso breve ‘algo’ será tão logo substituído por nada?” É somente quando abalamos nossa própria crença inata no “caminho direto” e consideramos os muitos recuos pelos quais passamos e sofremos que compreendemos a estupidez grosseira daqueles que repousam sua fé na providência divina e no ideal sagrado”.

A utilidade dialética da lógica clara, agregada à prosa elegante (sobreposta no topo da quantidade tradicional de dados), não pode ser exagerada e deve ser considerada pelos cientistas como outro instrumento de persuasão na batalha por ideias.

Carlos Germano

Carlos Germano

carlosgermanorf@gmail.com