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O ensino domiciliar: do isolamento social aos impactos cognitivos e psicológicos

Dentre as medidas prioritárias do governo Bolsonaro está a regulamentação do ensino domiciliar, conhecida também como “homeschooling” [1]. Nessa modalidade, o estudante não frequentaria a escola e passaria a ter aulas em casa. Em 2012, Lincoln Portela – PR/MG apresentou o PL 3179/2012 no qual previa a regulamentação do ensino domiciliar, sugerindo a incorporação do seguinte parágrafo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [2]:

“§ 3º É facultado aos sistemas de ensino admitir a educação básica domiciliar, sob a responsabilidade dos pais ou tutores responsáveis pelos estudantes, observadas a articulação, supervisão e avaliação periódica da aprendizagem pelos órgãos próprios desses sistemas, nos termos das diretrizes gerais estabelecidas pela União e das respectivas normas locais.” (grifo nosso)

O projeto em questão foi arquivado. Depois, inúmeras tentativas na Câmara de Deputados foram articuladas para aprovação de projetos com o mesmo conteúdo. Em 2018, o STF proibiu o ensino domiciliar pelo fato de não ter tido uma aprovação via Congresso Nacional. No entanto, entendimento majoritário do STF foi de que o ensino domiciliar não era inconstitucional [3].

A discussão do ensino domiciliar que aparentemente tinha amornado com a decisão do STF volta a ganhar força com o governo Bolsonaro. A maior defensora da pauta é  a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alvez. A Ministra afirmou que uma MP (Medida Provisória) pode ser aplicada nos próximos dias para que haja a regulamentação. Após a publicação da MP, ela passa a ter força de lei por 180 dias, precisando ser aprovada no Congresso para seguir vigente após esse prazo.

Um dos argumentos defendidos pela  Ministra é que “O pai que senta com o aluno duas, três horas por dia, pode estar aplicando mais conteúdo que a escola durante quatro, cinco horas por dia” [4]. Ninguém se contrapõe à contribuição dos pais no processo de ensino e aprendizagem, auxiliando nos deveres de casa por exemplo. Pelo contrário, se incentiva. No entanto, o que a Ministra propõe é a substituição dos professores pelos pais.

O preocupante é que tanto na fala da Ministra quanto no Projeto de Lei apresentado em 2012, a presença de um professor com formação acadêmica é dispensável. Isso porque cabe aos pais ou a um “tutor” conduzir o processo de aprendizagem. Assim, mesmo que o foco central da educação seja “o conteúdo”, o mesmo já estaria prejudicado. Isso porque se exigiria dos pais ou “tutor” o conhecimento de inúmeras áreas como: Genética, Química Inorgânica, Eletromagnetismo, História Moderna, Geometria Analítica e Figuras de Linguagens, etc.

No entanto, a presença de um tutor sem necessidade de formação acadêmica vai além de um combate ao ensino formal. Mas também representa um questionamento ao acúmulo  científico e histórico construído pela humanidade como a Teoria da Evolução, as Vacinas, o Formato do Planeta, a Ditadura Militar, etc.

Um segundo problema dessa concepção é que ela encara a escola como apenas um local para se aprender conteúdo. Mas a escola vai muito além disso. Para Silvia Colello, Psicóloga e Doutora em Educação pela USP:  “A escola não é um estoque de conteúdos, é uma experiência muito mais complexa, que se beneficia da convivência em grupo e da pluralidade de experiências cognitivas, sociais, culturais e afetivas.”

A posição da professora Silvia Colello representa uma posição majoritária entre educadores e principais teóricos da Psicologia e Educação. A Ministra Damares que já mentiu ser Mestre em Educação e Direito [5] parece ter um completo desdém acerca das pesquisas acadêmicas na área da Educação, além de construir um sentimento de hostilidade em relação aos professores, colocando em xeque suas capacidades de ensinar.

Mesmo assim, o aspecto mais grave do ensino domiciliar é o isolamento social e seus impactos cognitivos e psicológicos. Os defensores do ensino domiciliar afirmam que não necessariamente o ensino domiciliar levaria ao isolamento social já que o jovem poderia frequentar outros espaços sociais. Aqui é preciso ressaltar que o convívio social não é suprimido por “saidinhas para ver o mundo”.

Existe em curso no país o uso  desenfreado  de celulares e computadores sem fins pedagógicos, levando jovens a um quase isolamento completo da vida social que só não é completo por causa da presença da escola. É na escola que esse jovem faz amizades, brinca, lida com a diversidade de estudantes, realiza trabalhos em grupo, faz Educação Física, aprende a respeitar regras e etc. Em última instância, a escola se transformou em um escudo protetor contra a imersão quase que completa em um mundo digital.

O Brasil é o país onde a população passa mais tempo no celular. Um estudo realizado apontou que em 2016 a média de tempo que os brasileiros ficavam no celular era de 4 horas e 48 minutos, mais que o dobro da média de 2012 [6]. Já as crianças brasileiras passam 50% de tempo a mais na internet do que a média global [7], o que são números preocupantes que exigem de pais e educadores um alerta.

Uma série de estudos mostra que o uso excessivo celulares, Facebook e jogos no computador estão associados a um risco maior da pessoa desenvolver ansiedade, depressão, insônia e outros problemas psicológicos [8][9][10]. A escola, inclusive, pode utilizar a tecnologia com mediação e objetivos pedagógicos. Dessa forma, podendo contribuir com o processo de aprendizagem.

Frente ao uso desenfreado  de aparelhos eletrônicos a  escola tem se tornado uma contrapressão ao isolamento social. É comum relatos de pais que afirmam que em geral o principal convívio dos filhos com pessoas reais se dá através da escola. Isso se deve ao fato de que esse jovem em casa fica imerso nas redes sociais e jogos eletrônicos.

O isolamento social, inclusive o causado pelo uso excessivo de redes sociais, pode gerar importantes reflexos na cognição e no desenvolvimento cerebral. Um estudo realizado por pesquisadores japoneses publicado na Scientific Reporter [11] mostrou que várias estruturas cerebrais são impactadas pelo isolamento social. Existe uma correlação inversamente proporcional entre o isolamento social e o desenvolvimento de substância branca cerebral. Ou seja, quanto maior o isolamento social do indivíduo menor é o desenvolvimento da substância branca. A subsistência branca consiste em axônios dos neurônios responsáveis por transmitir informações produzidas em neurônios e realizar conexões entre diferentes estruturas cerebrais.

Além disso, o isolamento social também está associado ao declínio cognitivo e perda da memória, ou seja, quanto menor a interação social de um indivíduo mais limitado será seu desenvolvimento cognitivo ou acelerada sua perda [12].

Os conjuntos de interações sociais que a criança estabelece nos primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento cerebral. É nos períodos iniciais que ocorre o desenvolvimento da bainha de mielina no axônio. O nível de mielinização do axônio de um neurônio está relacionado com a velocidade dos impulsos nervosos. Além da mielinização dos neurônios, as interações sociais estabelecidas por crianças contribuem para formação das conexões neurais.

Outro estudo em modelo animal realizado por pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) contribuiu para elucidar os mecanismos relacionados entre isolamento social e memória e aprendizagem. Eles demonstraram  que os níveis de um dos neurotransmissores responsáveis para a formação da memória, o glutamato, tem seus níveis diminuídos no Hipocampo (uma das estruturas responsáveis pela memória) em organismos isolados socialmente. Segundo a pesquisadora responsável pelo estudo e professora da UFMG,  Dra. Grace Pereira: “Esses achados contribuem ainda mais com um conjunto de evidências que apontam que a socialização é um componente essencial para aprendizagem e como o isolamento pode afetar esse processo”.        

Um conjunto de evidências apontam para a importância da socialização e a necessidade da escola na aprendizagem. Isso não exclui a participação dos pais. Os pais devem participar do processo pedagógico, auxiliando nas tarefas escolares, participando das reuniões com os professores de uma forma mais ativa e se sentindo parte da escola.

Evidente que as escolas apresentam uma série de problemas. Em geral, decorrente de baixos investimentos por parte dos governos e da pouca valorização e reconhecimento dos educadores. Mas diante desse cenário o caminho é fortalecer as escolas e não o contrário. Infelizmente, as medidas do atual governo engata uma marcha ré na educação prometendo impor duros retrocessos. Nunca foi tão necessária a unidade em defesa da razão, do conhecimento e do acúmulo científico conquistados pela humanidade.

Referências

  1. G1. Regulamentar a educação domiciliar é uma das metas prioritárias dos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro. Globo, 23 de jan. de 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/01/23/regulamentar-a-educacao-domiciliar-e-uma-das-metas-prioritarias-dos-100-primeiros-dias-do-governo-bolsonaro.ghtml>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  2. PORTELA, Linconl. PL 3179/2012. Câmara dos Deputados, 8 de fev. de 2012. Disponível em: <http://bit.ly/377YlPn>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  3. BRÍGIDO, Carolina; MARIZ, Renata.. STF decide que pais não podem educar filhos em casa, sem matricular em escola. Globo, 12 de set. de 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/stf-decide-que-pais-nao-podem-educar-filhos-em-casa-sem-matricular-em-escola-23062742>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  4. SADI, Andréia. Damares: educação domiciliar permite a pais ensinar ‘mais conteúdo que a escola’. Globo, 25 de jan. de 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2019/01/25/damares-educacao-domiciliar-permite-a-pais-ensinar-mais-conteudo-e-gerenciar-aprendizado.ghtml>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  5. BALLOUSSIER, Anna V. Sem diploma, Damares já se apresentou como mestre em educação e direito. Folha de São Paulo, 31 de jan. de 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/sem-diploma-damares-ja-se-apresentou-como-mestre-em-educacao-e-direito.shtml>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  6. ARMSTRONG, Martin. Smartphone Addiction Tightens Its Global Grip. Statista, 24 de maio de 2017. Disponível em: <https://www.statista.com/chart/9539/smartphone-addiction-tightens-its-global-grip/>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  7. DOL. Crianças brasileiras passam 50% de tempo a mais na internet do que a média global, Diário Online, 19 de out. de 2018. Disponível em: <https://www.diarioonline.com.br/noticias/brasil/noticia-549553-criancas-brasileiras-passam-50-de-tempo-a-mais-na-internet-do-que-a-media-global.html>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  8. DEMIRCI, Kadir; AKGÖNÜL, Mehmet; AKPINAR, Abdullah. Relationship of smartphone use severity with sleep quality, depression, and anxiety in university students. Journal of Behavioral Addictions, v. 4, n. 2, p. 85-92, 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1556/2006.4.2015.010>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  9. ANDREASSEN, Cecilie Schou et al. The relationship between addictive use of social media and video games and symptoms of psychiatric disorders: A large-scale cross-sectional study. Psychology of Addictive Behaviors, v. 30, n. 2, p. 252, 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1037/adb0000160>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  10. SHAW, Ashley M. et al. Correlates of Facebook usage patterns: The relationship between passive Facebook use, social anxiety symptoms, and brooding. Computers in Human Behavior, v. 48, p. 575-580, 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.chb.2015.02.003>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  11. NAKAGAWA, Seishu et al. White matter structures associated with loneliness in young adults. Scientific Reports, v. 5, p. 17001, 2015. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4653806/pdf/srep17001.pdf>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
  12. SHANKAR, Aparna. Social isolation and loneliness. English Longitudinal Study of Ageing. Disponível em: <https://www.ifs.org.uk/conferences/AShankar_ELSA_Presentation.pdf>. Acesso em: 13 de fev. de 2019.
Lucas Sena

Lucas Sena

Mestre e doutorando em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).