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O guia de 10 etapas para verificar alegações de teorias da conspiração

Traduzido por Julio Batista
Original de Brian Eggo para o The Skeptic

Não é fácil não saber muito. Quanto mais consciente do quanto você não sabe, mais difíceis as coisas também se tornam. Isso dificulta a tomada de decisões, principalmente quando se trata de questões de saúde. A vida pode ser assustadora e existem muitas armadilhas por aí para impedir que você se apegue a sua própria existência.

Eu não sou um médico, ou qualquer tipo de especialista em saúde para esse assunto. Não sou epidemiologista (e tive que confiar na verificação ortográfica ao digitar o termo) ou estatístico. Eu tenho um diploma, mas é em Engenharia, que às vezes parece bom no papel, mas raramente me fornece munição quando as intervenções de saúde devem ser consideradas.

Para aumentar as minhas limitações pessoais acima, há uma enxurrada interminável de informações conflitantes espalhadas em todas as nossas direções a partir de uma infinidade de fontes orientadas por algoritmos e, claro, de humanos de níveis variados de inteligência e especialização e vieses igualmente variados.

Então, no meio de tudo isso, como você analisa e tira conclusões quando algo particularmente chocante e emotivo vem em sua direção?

Geralmente, é uma aposta de menor risco seguir a multidão e confiar nos especialistas: se o seu banheiro estiver entupido, 99,9% dos encanadores recomendarão que você pegue um desentupidor e talvez ajuste a quantidade de fibras em sua dieta. No entanto, você pode encontrar um encanador independente que proclama em voz alta que os banheiros entupidos são devido a dispositivos de monitoramento patrocinados pelo governo e sua primeira prioridade deve ser obter uma gaiola de Faraday em torno de sua tubulação (que ele pode fornecer por uma quantia muito razoável). Ele também tem um vídeo do YouTube que você deve assistir, que explica que uma pequena quantidade de efluentes no chão do banheiro ajudará a treinar seu sistema imunológico caso você precise recriar aquela cena de embrulhar o estômago em Um Sonho de Liberdade.

Porém, não é uma garantia: os especialistas às vezes cometem erros, os governos às vezes mentem e as conspirações acontecem. Como tal, há um equilíbrio a ser encontrado quando quiser dar uma investigada nas reivindicações que contrariam a narrativa convencional e, felizmente, existem algumas etapas guiadas pelo bom senso a seguir para aqueles que estão dolorosamente cientes de sua falta de experiência.

Permita-me elaborar usando um exemplo específico: no que está se tornando uma ocorrência deprimente comum, tive uma discussão online recentemente. Nesse caso, foi com alguém que estava tentando me vender uma falsa cura para o câncer de minha esposa (falarei mais sobre isso em um artigo futuro). Nossas idas e vindas nos levaram, quase inevitavelmente hoje em dia, ao tema das vacinas contra a Covid. Ele disse que a vacinação era uma causa provável para o câncer de minha esposa e passou a citar várias fontes de ‘evidências’ para os perigos da vacinação. O mais impressionante deles foi a suposta morte repentina de 32 médicos canadenses desde o lançamento da vacinação – conforme exposto neste artigo no ‘Daily Sceptic’ (esse nome não condiz muito com o site). O artigo existe principalmente para dar uma plataforma a uma carta alarmante enviada pelo Dr. William Makis à Associação Médica Canadense exigindo uma investigação sobre essas mortes, com a afirmação de que as vacinas são de alguma forma as culpadas.

Portanto, com minha falta de experiência pairando ameaçadoramente sobre minha cabeça, uma abordagem estruturada e de bom senso é sempre bem-vinda. Veja como eu analisei as coisas neste artigo – uma abordagem que deve te atender razoavelmente bem em situações semelhantes.

1: Avalie a confiabilidade da fonte

The Daily Skeptic é um veículo de Toby Young, um renomado fomentador da negação da mudanças climáticas que parece estar aplicando níveis semelhantes de seu pobre rigor ao tema a nossa mais recente pandemia global. Inicialmente começando sua carreira como o boletim Lockdown Skeptics, ele expandiu o veículo para um site completo e, desde então, foi criticado várias vezes por informações imprecisas sobre a COVID-19 e o programa de vacinação. Um exemplo notável foi a tentativa factualmente imprecisa de culpar a vacina pelo aumento das mortes de adolescentes.

Claro, isso não significa necessariamente que o artigo é inerentemente falso, mas seus sentidos céticos deveriam tinir pelo menos.

2: Verifique outras fontes

Neste ponto, é aconselhável verificar se existem outras fontes cobrindo a mesma história. Infelizmente, isso geralmente é inútil, pois muitas fontes de notícias são conteúdos copiados. Se você tiver sorte, poderá encontrar um artigo mais detalhado que permite que você vá mais fundo na toca do coelho. Além disso, se você obtiver uma narrativa semelhante em ambos os lados de qualquer divisão política ou ideológica, isso pode apontar mais para uma reportagem precisa, embora possa ser apenas um jornalismo consistentemente preguiçoso.

No caso do artigo dos 32 médicos, não há muito mais informação por aí, além de sites obscuros que repetem as mesmas afirmações ou afirmações semelhantes. Certamente não foi reproduzido por nenhuma fonte de notícias mais proeminente. Claro, os teóricos da conspiração culpariam a ‘grande mídia’ por estar sob o controle de forças obscuras que estão suprimindo as ‘notícias reais’. Essas alegações vistas racionalmente não devem se sustentar, especialmente se você considerar algumas das fontes de notícias muito proeminentes que demonstraram espalhar desinformação sobre a Covid (exemplos da Fox News e GB News vêm à mente).

A falta de aceitação para esta história, mesmo de veículos simpatizantes de sua narrativa, deve ser vista no mínimo como suspeita.

3: Procure o marco zero

O artigo dos 32 médicos é baseado principalmente nas alegações do (vivo) Doutor William Makis, que atualmente parece estar dividindo seu tempo livre entre desinformação conspiratória sobre vacinas e acusações conspiratórias contra seu ex-empregador por uma aparente demissão construtiva. Ele pode muito bem ter um pézinho no sistema médico ‘convencional’, mas certamente não está sozinho quando se trata de culpar a vacinação por qualquer situação trágica – como o mais recente caso da parada cardiorrespiratória do jogador de futebol americano Damar Hamlin sendo cobrado por militantes antivacinas para revelar mais evidências sobre a ‘causa’.

Portanto, aqui temos alguns sinais confusos: um (possivelmente ex) profissional médico está tentando alertar algo. Em geral, você deve levar as coisas a sério se alguém com experiência relevante estiver expressando preocupações, mas parece haver aspectos problemáticos em seu status como profissional de saúde e suas reivindicações não estão ganhando força entre seus colegas. Também fica claro ao ler o artigo que Makis tem vasculhado as postagens das redes sociais dos falecidos e de suas famílias para tentar sustentar seus argumentos. Alguns podem considerar isso uma forma válida de trabalho investigativo, especialmente se revelar alguma conspiração massiva, mas é consideravelmente mais provável que ele esteja revirando o que pode para tentar sustentar um argumento frágil. Considerando que as acusações em questão são surpreendentemente semelhantes à retórica antivacina padrão, seus sentidos céticos devem estar em alta agora.

4: Examine as motivações

É bastante comum entre a comunidade antivacina atribuir motivações a indivíduos e organizações que são pró-vacina. Normalmente, as acusações são financeiras (‘A Grande Indústria Farmacêutica’), mas ocasionalmente isso escala para controle populacional e eugenia. Embora seja apropriado se indignar ao examinar este artigo, é importante permanecer objetivo ao fazer isso.

Claramente, o Daily Skeptic tem um histórico de negação da ciência, e Makis tem um passado na carreira médica, mas não há nenhuma indicação óbvia de quaisquer incentivos financeiros diretos. Provavelmente é justo supor motivações ideológicas, mas isso por si só não é motivo para descartar algo, então uma investigação mais aprofundada é válida.

5: Avalie as reivindicações individualmente

Dividir as coisas pode tornar as coisas um pouco mais digeríveis e ajudar a separar o fato da ficção (ou pelo menos ver a conjectura):

Temos 32 médicos mortos? Provavelmente sim. Pelo menos, não há nenhuma razão específica para desacreditar disso. Uma verificação rápida em alguns dos nomes certamente oferece obituários, homenagens etc.

Todos foram vacinados? Não sabemos, mas é provável. Claro que não temos acesso aos registros de saúde, mas é uma suposição razoável que os profissionais de saúde sigam as orientações de vacinação.

Todos receberam doses de reforço? Não sabemos, mas é provável. Além do que foi dito acima, podemos fazer uma suposição razoável de que, como profissionais de saúde, eles estariam seguindo o calendário de vacinação apropriado.

Todos esses médicos eram ‘anteriormente saudáveis’? Não sabemos, e isso é quase certamente falso. Alguns dos médicos em questão morreram tragicamente de câncer, o que ridiculariza essa afirmação. Makis, no entanto, faz uma alegação subsequente de que esses médicos ‘desenvolveram cânceres agressivos de início súbito’. Não há como ele saber disso e, na melhor das hipóteses, isso é especulação. Além disso, não é preciso ser médico para saber que muitos tipos de câncer que parecem súbitos e agressivos apenas parecem ser assim por causa de um diagnóstico tardio. De qualquer forma, sem acesso direto aos registros médicos ou relacionamento próximo com o falecido, quase não há probabilidade de que isso seja preciso. Claro, nenhuma evidência corroborativa é fornecida.

Todos os médicos eram jovens? Bem, isso depende muito da sua definição de jovem. Cinco deles tinham 60 anos ou mais, metade deles tinha 50 anos ou mais, a idade média era de pelo menos 48 (a idade precisa não foi revelada para alguns dos médicos, então isso é baseado em uma estimativa mais baixa). Como um homem que está prestes a completar 50 anos, ficaria animado em ouvir minha faixa etária sendo descrita como ‘jovem’, mas, realisticamente, parece que Makis está exagerando na credulidade aqui mais uma vez.

Assim, com uma mistura de verdades, meias-verdades, especulações e absoluta imprecisão, o próximo passo lógico é olhar para o quadro geral.

6: Contextualize as afirmações

A premissa central do artigo é que tantas mortes em tão pouco tempo apontam para uma única causa unificadora. Dar um passo para trás e olhar para alguns números relevantes ajuda a colocar uma perspectiva mais realista sobre as reivindicações:

O artigo não menciona o número total de médicos no Canadá. De acordo com o Canadian Institute for Health Information, havia 93.998 médicos em 2021. Se você comparar isso com as taxas de mortalidade por dados de faixa etária do Statistics Canada, espera-se que o número de mortes entre a população de médicos seja significativamente maior que 32.

Se fôssemos tirar o mesmo tipo de conclusões instintivas de Makis, estaríamos dizer com certeza que a vacinação contra a Covid parece dar a você algum tipo de superpoder para evitar a morte (isso está além dos poderes reais de evitar a morte pela Covid que já sabemos que você obtém com a vacina, é claro). Mais realisticamente, porém, o que isso quase certamente nos mostra é que as 32 mortes de médicos que Makis colheu da Internet são um conjunto de dados incompletos. As chances são de que mais de 32 médicos morreram durante esse período. Porque, bem, as pessoas morrem. É uma das únicas coisas de que podemos ter certeza.

Outra falha na narrativa é que, se fôssemos tão macabros quanto Makis, poderíamos facilmente descobrir uma enxurrada de mortes de médicos canadenses antes do lançamento da vacina contra a  Covid. Os recursos de pesquisa avançada do Google facilitam essas coisas. Sem dúvida poderíamos encontrar causas semelhantes de morte em idades semelhantes em anos passados. Não há nenhuma tentativa de descobrir se as 32 mortes mencionadas no artigo são de alguma forma anômalas em comparação com os anos anteriores (pré-pandêmicos). As chances maiores são de que não são.

7: Verifique a consistência

Conforme abordado acima, já sabemos que temos um conjunto de dados incompleto em escala maior, mas até mesmo as informações que recebemos são um tanto insatisfatórias. Temos médicos com uma variação de idade de mais de quatro décadas, diferenças de gênero, etnia, condições de saúde subjacentes, níveis de condicionamento físico, dieta e assim por diante. Não há informações sobre quais vacinas eles receberam e quando, e quais reforços, então provavelmente podemos assumir uma quantidade significativa de variação. Nem mesmo temos a causa da morte de todos os 32 médicos. Nove deles simplesmente “morreram inesperadamente” – o que deixa muitas opções (deixe sua imaginação correr solta).

Parece que a única coisa que essas 32 almas infelizes têm em comum é que eles eram médicos e, infelizmente, faleceram. Tentar traçar algum tipo de ligação com uma única causa unificadora dessas mortes trágicas simplesmente não parece provável.

8: Procure afirmações questionáveis

Além das motivações diretas do que você está analisando, você deve prestar atenção à linguagem principal, editorial e declarações feitas como se fossem fatos já aceitos e estabelecidos, quando esse não é o caso. O artigo e a carta nele contidos têm vários exemplos disso, incluindo: “as circunstâncias das mortes são realmente consistentes com lesões causadas por vacinas”, “CMA promoveu de forma agressiva e antiética o uso de vacinas experimentais contra a COVID-19”, “mandatos obrigatórios ilegais e não científicos de vacina contra a COVID-19”, “médicos que morreram repentina e inesperadamente” e “produtos farmacêuticos defeituosos”.

A linguagem da carta de Makis é particularmente inflamatória, o que deve ser motivo de preocupação. O redator do Daily Skeptic enquadra a carta de uma maneira um pouco mais matizada, que aparece como a abordagem de ‘apenas o direito de fazer perguntas‘. Nenhuma dessas abordagens deve deixá-lo confiante com relação à precisão do artigo como um todo.

9: Faça o ‘teste do olfato’ de plausibilidade

Ok, então eu deliberei se deveria ou não colocar isso mais adiante na minha lista. Se você estiver com pouco tempo, isso pode ser uma economia de tempo útil, mas também pode levá-lo a descartar algo erroneamente sem uma investigação apropriada ou até mesmo fazer com que você seja tendencioso em sua abordagem à investigação.

Aplicado a este artigo, porém, o teste de olfato não produz um aroma agradável. Claro, é plausível que qualquer intervenção médica possa ter efeitos adversos, mas para uma intervenção de saúde que já foi administrada bilhões de vezes, esperaríamos ter dados robustos e consistentes. Uma pequena amostra de profissionais de saúde de um país específico com idades, condições de saúde e causas de morte variadas simplesmente não aponta para um problema potencial com a intervenção de saúde em questão.

10: Pergunte a um especialista (se puder)

A autoconsciência é importante. Ter uma ideia razoável de suas limitações intelectuais pode impedir que você interprete mal os dados ou deixe de considerar fatores adicionais que podem não ser imediatamente óbvios. Se você não conhece ninguém pessoalmente, por que não entrar em contato com seu amigo da vizinhança The Skeptic [N.T. ou com a gente da Universo Racionalista]? Mesmo que não possamos comentar algo pessoalmente, temos bons contatos que podem.

Para concluir, é improvável que este artigo influencie alguém que ainda não tenha caído na teia de crenças anti-vacinas e teorias da conspiração, mas é um excelente campo de treinamento para ajudá-lo a aprimorar suas habilidades céticas quando algo um pouco mais refinado e matizado vem em sua direção – o que inevitavelmente acontecerá.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.