Por Mario Bunge
Publicado em Perfil
Como é sabido, a Península Ibérica foi a única região da Europa Ocidental que escapou dos grandes movimentos de ideias, sentimentos e instituições que moldaram a modernidade: o Renascimento, a Reforma Religiosa, a Revolução Científica e o Iluminismo.
No século XVIII, a Espanha gastava mais para censurar livros dos Iluministas do que para colocar em dia os cérebros dos sacerdotes que ainda pregavam contra as heresias de Copérnico, Galileu, Descartes, Harvey, Vesalius, Boyle e outros gigantes modernos.
A editora Laetoli está preenchendo uma enorme lacuna na história do mundo hispânico ao publicar muitas obras do Iluminismo, em particular a sua faixa radical, liderados pelos redatoras da Enciclopédia, como Diderot, Holbach, Helvétius, La Mettrie, Meslier e outros autores que tiveram milhares de textos proibidos ou mesmo incenerados pelos guardiões do antigo regime, que acabariam sendo vítimas da invenção do doutor Guillotin.
Esse poderoso movimento de novas ideias, que agora atravessa os Pirinéus com quase três séculos de atraso, foi “o que mais contribuiu para moldar os valores sociais e culturais básicos da era pós-cristã”, como escreve um dos maiores especialistas nesse movimento (Jonathan Israel, A Revolution of the Mind). O mesmo acrescenta que esse tipo de pensamento “também tem se convertido na principal esperança e inspiração de numerosos humanistas, igualitários e defensores dos direitos humanos de assediados e hostilizados” em uma época em que ressurge o fanatismo, a opressão e o preconceito.
A faixa radical do Iluminismo francês tinha alguns poucos capangas estrangeiros, como os alemães Lessing e Heine, o holandês Anarcharsis Cloots e o americano Tom Paine. Esses pensadores radicais foram rejeitados pelos moderados como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e Turgot, bem como pelos iluministas escoceses (David Hume, Adam Smith e Adam Ferguson) e os alemães (Kant e o rei da Prússia Federico, o Grande), todos os quais se opuseram aos ideais democráticos dos radicais franceses. Por outro lado, os cientistas iluministas, como Beccaria, Buffon, Condorcet, D’Alembert, Lambert e Lavoisier, seguiram fazendo o que melhor sabiam fazer, mas dois deles foram vítimas de fanáticos que temiam a ciência.
Durante esse período, todo o imenso império espanhol produziu muito ouro e prata, mas apenas um grande sábio: o botânico José Celestino Mutis. E as reformas dos modernistas do reinado de Carlos III, como Floridablanca e Jovellanos, foram tímidas em comparação com as grandes novidades concebidas e executadas pelo Iluminismo do outro lado dos Pirenéus.
No entanto, nenhum desses grandes pensadores foi inteiramente consequente. Por exemplo, Holbach teve a ingenuidade de dedicar-se a sua Etocracia: o governo fundado na moral, a sua dissoluta soberana. Rousseau propôs a tese genial de que a desigualdade é a mãe de todos os males sociais, ao mesmo tempo que assegurou que o “sentimento” supera a razão, motivo pelo qual seu ajudante Robespierre mandou guilhotinar Cloots por criticar o intuicionismo de Rousseau.
Tanto o deísta Voltaire como o ateu Kant, que tanto fizeram para desprestigiar o dogmatismo religioso e prestigiar a nova física de Newton (que nenhum deles entendia), escreveram contra a democracia. Por outro lado, Goethe rechaçou a revolução newtoniana, mas se entusiasmou com a francesa. As revoltas estudantis da década de 1960, de Berkeley a Paris, e de Buenos Aires a Montreal, repetiram semelhantes dissonâncias entre a política e a cultura.
Outro caso paradoxal é o de Marx, Engels e Lenin, que disseram ser herdeiros dos iluministas radicais, ao mesmo tempo que desdenhavam a democracia “formal” (política) e exaltavam o pequeno Ludwig Fuerbach enquanto ignoravam o gigante Holbach. Marx, desde o seu pináculo eurocêntrico, julgou o visionário Simón Bolívar como um líder a mais. E os fundadores da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, bem como seu capanga Habermas, atacaram o pensamento iluminista acreditando que estavam à sua esquerda, quando na verdade os seus ensopados de Freud, Hegel e Marx acabaram sendo mais um exemplo de obscurantismo pós-moderno.
O caso dos socialistas utópicos é mais interessante e menos estudado seriamente. É verdade que Engels dedicou todo um livro que me parece superficial e cheio de erros. Na verdade, ele ignorou Louis Blanc, o primeiro teórico do cooperativismo e qualificou Henri de Saint-Simon de socialista, quando na verdade ele foi o primeiro tecnocrata. Na verdade, Saint-Simon não propôs socializar a produção, mas racionalizá-la e longe de se aproximar dos sindicatos, cultivou a amizade de potentados como o empresário de Lesseps e o financista Pereyra. Engels chamou de “utópico” Robert Owen, embora a principal realização dele foi a de organizar empresas cooperativas, tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos da América.
Para piorar, Engels não advertiu que Charles Fourier foi mais estatista do que socialista, porque, longe de favorecer a emancipação da participação popular na administração do bem comum e a autogestão das empresas, propôs que o Estado planeasse em detalhe e impusesse o papel de todos na sociedade. Engels elogiou o precursor do totalitarismo contemporâneo e se atreveu a profetizar que lembrariam o seu nome ao mesmo tempo que o distinto matemático Joseph Fourier seria esquecido, quando na verdade ocorreu justamente o contrário.
Em nenhum desses casos de duplicidade houve hipocrisia, mas em todos eles faltavam uma cosmovisão ampliada, coerente, cientificista e humanista, bem como uma investigação rigorosa dos problemas sociais. O caso da romancista e pseudofilósofa pop Ayn Rand foi muito pior: ela difundiu versões grosseiras do racionalismo, do materialismo e do realismo filosófico, ao mesmo tempo que defendeu o “egoísmo racional”, que se propõe maximizar suas ganâncias, embora seja à custa de nosso bem-estar e do bem comum, cujo o guardião deveria ser o Estado.
Os iluministas inspiraram quase todos os movimentos políticos do século seguinte, em particular o laicismo, o liberalismo clássico de Mill, os socialismos (o democrático e o autoritário), os anarquismos (tanto o destrutivo ou individualista de Proudhon como o construtivo ou socialista de Bakunin), o sufragismo, o pacifismo de Kant e o abolicionismo décadas antes que reaparecesse na Inglaterra.
O Iluminismo também inspirou novas formas de convivência, como o cooperativismo (Louis Blanc), o feminismo (Mary Wollstonecraft) e a planificação familiar, bem como reformas na educação (María Montessori), a saúde pública, o direito penal (John Howard) e o tratamento dos loucos (Philippe Pinel). Enquanto o famoso utilitarista Jeremy Bentham desenvolveu seu Panóptico para melhor vigiar os presos, John Howard, agora quase esquecido, propôs a humanização do regime brutal carcerário britânico.
Três séculos de nascimento do Iluminismo, continuamos desfrutamos de suas realizações excepcionais: laicismo, debate racional, investigação e humanistarismo. Mas também continuamos sofrendo versões empoeiradas de seus adversários: violência, fanatismo religioso, intolerância política, ressurgimento da tortura, obscurantismo e falsificação da moeda cultural (ruído em vez de música, tachismo em vez de pintura, etc.).
Parece que todo grande movimento progressivo é seguido por uma reação, que por sua vez pode provocar um renascimento. Necessitamos urgentemente de um novo Iluminismo. Quem e quando nos atreveremos a construí-lo?