Por Richard Bates
Publicado no The Conversation
A França tem um problema com o autismo. A mais alta corte administrativa do país estima que existam 700.000 pessoas autistas na França. No entanto, apenas 75.000 foram diagnosticadas. As crianças autistas são historicamente diagnosticadas mais tarde na França do que nos países vizinhos. Elas eram frequentemente excluídas da educação regular e não tinham acessos a serviços de apoio e atividades extracurriculares.
Muitos autistas franceses estão confinados a hospitais e instituições de acolhimento, isolados da comunidade e frequentemente incapazes de se comunicar por meio da fala – enquanto nos EUA, por exemplo, as escolas públicas são obrigadas por lei a incluir totalmente crianças autistas na educação convencional em sala de aula. Durante anos, as famílias no nordeste da França levaram crianças autistas à Bélgica com o intuito de receberem serviços superiores.
O governo francês reconhece essas deficiências. Ele foi forçado a reconhecê-las em 2004 por uma série campanha nacionais e pressão internacional: o Conselho da Europa julgou que as disposições sobre autismo da França violavam a Carta Social Europeia. Esse julgamento ocorreu em vários casos subsequentes. Em 2016, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU também se preocupou com o fato dos autistas franceses “continuarem sujeitos a violações generalizadas de seus direitos” à educação e apoio.
A resposta foi uma série de “Plans Autisme”, os chamados “Plano Marshall”, direcionando o investimento para melhorar os resultados. O último plano desse tipo – o quarto – foi lançado no início de abril pelo presidente francês, Emmanuel Macron, e continuará até 2022. Ele procura recrutar milhares de assistentes de ensino para permitir que crianças autistas frequentem escolas regulares, além de facilitar mais diagnósticos. No entanto, sua própria existência demonstra que os resultados dos três planos anteriores foram decepcionantes.
A força da psicanálise
Por que a França ficou para trás? A culpa parece estar na influência dominante da psicanálise sobre a psiquiatria francesa nas últimas décadas. Muitos psicanalistas argumentam, em desacordo com o que é globalmente aceito, que o autismo não é um distúrbio de neurodesenvolvimento com um alto grau de herdabilidade genética. Em vez disso, eles o veem como uma condição gerada psicologicamente, originada em um ambiente familiar perturbado – especificamente, problemas no relacionamento da criança com sua mãe.
Como o analista Charles Melman, um defensor dessas posições, colocou em uma entrevista de 2014, uma criança autista:
“Ela sofreu de algo muito simples. Sua mãe… não foi capaz de transmitir a sensação de que seu nascimento foi um presente para ela… a prosódia do discurso materno desempenha um papel no desenvolvimento do autismo”.
Historicamente, muitos psicanalistas – principalmente nos EUA do pós-guerra – viram o autismo como uma forma de psicose, ou “esquizofrenia infantil”. Esses analistas defendiam a psicoterapia psicanalítica como a principal forma de intervenção, em vez de estratégias focadas no comportamento e na comunicação, que hoje têm uma base de evidências cada vez mais forte.
Desde a década de 1990, as mudanças na França são lideradas por organizações formadas por pais, indignadas com o fato de que a profissão médica parecia culpá-los pela condição de seus filhos.
O grupo da campanha Vaincre l’Autisme organizou uma série de manifestações em 2012-13, denunciando o tratamento do autismo psicanalítico. Um documentário de 2011, Le Mur, atacou a abordagem psicanalítica do autismo, causando polêmica quando três psicanalistas entraram com uma ação e temporariamente conseguiram banir o filme. No entanto, o caso foi anulado em recurso em 2014 – um indicador do declínio do poder do lobby psicanalítico francês.
Cada vez mais, há um amplo acordo político na França para que as abordagens psicanalíticas ao autismo sejam desacreditadas. Uma recente declaração da ministra Sophie Cluzel, responsável pelo novo plano, de que a França precisa “colocar a ciência de volta no coração da política do autismo” vem nesse contexto.
Como historiador das ideias, estou interessado em saber como a França chegou a esse ponto. O destaque intelectual e cultural da psicanálise na França desde 1968 é incomum internacionalmente. Nos EUA, por exemplo, a psicanálise foi definitivamente retirada dos manuais psiquiátricos na década de 1980, quando surgiram técnicas comportamentais e comunicativas. Por que a França não seguiu o exemplo?
Um artigo recente do The Independent destacou a importância de Jacques Lacan, o teórico carismático da psicanálise, e a hipótese da mãe-geladeira de Bruno Bettelheim, que postulava que o autismo era causado pela falta de excitação emocional da mãe.
No entanto, o impacto desses pensadores só faz sentido dentro de um contexto em que a psicanálise e o pensamento psicanalítico se tornaram profundamente enraizados na cultura francesa. Na França, a psicanálise emergiu fortalecida dos agitos culturais do período de 1968 – amplamente vista como uma ferramenta que poderia ajudar a “destravar” a França da burocracia entorpecida e regimentada do período pós-guerra. Sua influência se espalhou em várias áreas da sociedade francesa.
O impacto de Françoise Dolto
Minha pesquisa, por exemplo, estuda o impacto de Françoise Dolto, uma psicanalista infantil, que nas décadas de 1970 e 1980 alcançou uma espécie de status de “tesouro nacional”. Dolto teve um programa de rádio muito popular na emissora estatal, France Inter, respondendo a membros do público que a contataram com dilemas da educação infantil. Ela lançou uma rede de centros infantis, a Maison Verte, em parte composta por psicanalistas.
Ela publicou mais de 40 livros, nos quais comunicou o pensamento psicanalítico a um público amplo, visando mães em particular. Seu livro mais vendido, Le cas Dominique, mostrou como a “psicose infantil” poderia resultar do ambiente familiar. Livros como esse ainda estão nas prateleiras de muitos pais, avós e psicólogos franceses. Centenas de escolas e alas hospitalares na França têm o nome de Dolto.
A partir dessa influente abordagem, Dolto afirmou que a “regressão” infantil – autismo e dificuldades de aprendizagem – foi causada pela maternidade patogênica. Em um livro de 1985, ela definiu o autismo como “um processo reativo de adaptação a uma provação”, no qual a “relação afetiva ou simbólica com a mãe” foi perdida. Esses argumentos, combinados à oposição de Dolto ao feminismo e à suposição de que era preferível ao desenvolvimento de uma criança se sua mãe ficasse em casa, certamente contribuíram para sentimentos de culpa entre mães de crianças autistas. Seu trabalho também reforçou a resistência posterior dos psicanalistas à mudança de como o autismo é tratado na França, já que Dolto – a mãe fundadora da psicanálise francesa de crianças – era tão clara quanto a isso.
A questão do autismo mostra que o fascínio incomum da França pela psicanálise, que a carreira de Dolto traz à tona, teve consequências reais. Não acho que o impacto tenha sido totalmente negativo. Porém, onde causou problemas, como no autismo, ela não mostrou uma forma simples de desvendá-lo.