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O problema do livre-arbítrio

Livre-arbítrio… algo que parece tão natural para nós. Algo que pelo menos aparenta ser parte de cada momento de nossas vidas. O nosso aparente poder de fazer escolhas nos faz enxergar a vida pela perspectiva de que somos os autores independentes de nossas ações, como se fôssemos autores destacados de qualquer mecanismo externo à nossa consciência. Mas será que esse conceito é compatível com a lógica e com as evidências científicas? Somos mesmo fundamentalmente livres?

Para responder a essas perguntas, consideremos o início do universo e a seleção natural. Desde o big bang, que podemos chamar de causa primária*, houve uma série de eventos que mudaram o estado das coisas a cada momento que se passava. Uma coisa levou a outra, até que surgiram organismos auto-replicantes aqui na Terra. Esses organismos foram, então, sendo selecionados naturalmente de acordo com o meio em que viviam, levando à existência de todos os seres vivos que hoje conhecemos. Ainda nessa série de eventos de ‘causa e efeito’, por conta da combinação variada de características em cada um desses organismos, o meio ambiente favoreceu a existência de algumas dessas combinações genéticas, fazendo com que os seres mais aptos a sobreviver se replicassem mais e as passassem para gerações futuras. Tudo isso, depois de aproximadamente 3,7 bilhões de anos de seleção natural, nos fez o que somos hoje. Todas as nossas características foram frutos desse desencadeamento, inclusive as nossas vontades e modo de pensar: a vontade de nos alimentarmos, a aversão que temos diante de situações aparentemente perigosas, o modo de armazenarmos e processarmos informações novas em nosso cérebro, e muito mais.

Em outras palavras, podemos dizer que não tomaríamos as decisões que tomamos hoje se não fosse por todos esses acontecimentos passados, pela estrutura de nosso cérebro, e por sua interação com o meio ambiente. Podemos ver em várias áreas da ciência que fatores imperceptíveis são causas bem expressivas de como pensamos e de quais decisões tomamos:

  • A biologia descobriu links entre a genética de indivíduos e o grau de agressividade destes. 1
  • Existem estudos que mostram que o grau de impulsividade de certas pessoas está correlacionada com a produção de dopamina no cérebro. 2
  • A sociologia também encontra correlações fortes entre o comportamento problemático de crianças que foram expostas à violência doméstica. 3
  • Na psicologia, descobriu-se que pessoas tendem a tomar decisões específicas dependendo de uma simples história que foi contada a eles anteriormente (o efeito Macbeth sendo um exemplo disso).4
  • Há também indícios de que a psicopatia está associada a uma menor atividade no córtex pré-frontal e uma amígdala menor do que pessoas normais 5.
  •  Podemos até fazer com que uma pessoa simpatize mais com outra pessoa se apenas dermos uma bebida quente à ela, em vez de uma bebida fria 6.
  •  Neurocirurgiões da U.C.L.A. estimularam a área motora pré-suplementar de alguns de seus pacientes, e eles sentiram a vontade de mover alguns de seus membros 12.
  • Michel Desmurget, da INSERM, e Angela Sirigu do Instituto de Ciências Cognitivas na França também descobriram algo parecido ao estimular o córtex parietal posterior – seus pacientes sentiram a vontade de mover o pé, ou a língua 12.
  •  Existem vários casos de mudança de personalidade após algum tipo de dano em partes específicas do cérebro 7 8 9 – o primeiro e famoso caso conhecido é o de Phineas Gage, que teve seu córtex pré-frontal perfurado por uma barra de metal 10.

Em outras palavras: estamos sendo CAUSADOS a termos vontades e a tomarmos decisões por inúmeros fatores que são imperceptíveis para nós.

Obviamente, não conseguimos prever o comportamento de um ser humano em alguma situação específica com 100% de precisão, visto que nossos cérebros contém 100 bilhões de neurônios e 100 trilhões de conexões 11. Sem contar que pessoas com genes específicos podem reagir à mesma situação diferentemente de outras pessoas com outros genes. A interação que todas as variáveis possíveis do meio ambiente possui com todas essas conexões é extremamente complexa, e prevê-las com tal precisão é impossível com o conhecimento científico que temos hoje. Mas uma coisa é certa: estamos descobrindo cada vez mais fatores que nos levam a tomar as decisões que tomamos. E não há nada de surpreendente nisso, pois somos frutos de toda a matéria que obedece às leis da física, química e biologia da matéria não-viva. A única diferença entre nós e a matéria não-consciente é a combinação dos átomos e moléculas. Se isolarmos um neurônio, ele não será capaz de fazer grande coisa, mas a combinação de 302 neurônios são capazes de fazer com que uma minhoca sobreviva e seja completamente funcional – capaz de sentir o que há em seu arredor, tomar decisões (de acordo com todas as reações eletroquímicas que a compõe), e mandar comandos para seu corpo. 11

Algumas pessoas, geralmente as que distorcem o funcionamento da física quântica, como Deepak Chopra, dizem que o livre-arbítrio é possível porque acham que os pensamentos humanos funcionam de acordo com o princípio da incerteza da física quântica. Esse princípio diz que partículas podem estar em lugares aleatórios, sem causa para estarem onde estão. Ou seja, para eles, não fazemos parte desse desencadeamento de acontecimentos citado acima, então somos independentes de qualquer mecanismo prévio que esteja fora do nosso controle. 12 O problema desse argumento pode ser dividido em dois: o primeiro é que essas aleatoriedades seguem leis quânticas fixas – exatamente por isso se torna possível o estudo da física quântica, pois podemos prever a distribuição probabilísticas das aleatoriedades. Quando juntamos várias dessas partículas, temos uma distribuição fixa de probabilidades de onde as partículas podem estar, e como nosso cérebro é formado conjuntos imensuráveis de subpartículas que, em combinação, formam moléculas que obedecem às leis da química clássica, esse princípio provavelmente não deve aplicar-se.12 Ou seja, não parece que nossas ações são aleatórias como as de uma partícula. O segundo problema é que mesmo se nosso cérebro se comportasse desse jeito, ainda estaríamos presos à própria aleatoriedade de onde as partículas estão. É como se jogássemos um dado e nossas decisões dependessem do resultado do dado. Não há liberdade assim também. De qualquer modo, mecanismos quânticos no cérebro como os ditados pelo princípio da incerteza, nunca foram encontrados empiricamente e são apenas hipóteses. 12 13

O que foi mencionado até agora apenas mostra que estamos presos a, pelo menos, muitas variáveis biológicas e ambientais. No mínimo, grande parte de nossas decisões não serão apenas influenciadas por essas variáveis, mas LEVADAS por elas. E mesmo se a alma existir, o argumento persiste, pois ela também será regida ou por uma cadeia causal ou aleatória. Alguém poderia talvez argumentar que uma pessoa tem, por exemplo, a escolha de matar alguém ou não neste momento, mas podemos dizer que a decisão final só é possível por conta de seu histórico e de sua constituição. No caso de serial killers psicopatas por exemplo, a menor atividade cerebral no córtex pré-frontal, junto com suas experiências de vida, provavelmente os levam a tomar a decisão de matar pessoas. Se qualquer um que estiver lendo este texto estivesse no lugar de um psicopata assassino – tivesse os mesmos genes, o mesmo histórico de vida, e até mesmo, caso ela exista, a mesma alma – , você faria exatamente as mesmas coisas que esse psicopata em questão faria. Outra estatística interessante é que até mesmo antes de nascermos, muito provavelmente até a ação de nossas mães tem influência em nosso comportamento futuro: mães que fumam durante a gravidez possuem três vezes mais chance de terem filhos criminosos violentos do que mães que não fumam – embora seja um número bem expressivo, talvez fumar não seja a causa, mas é inegável exista algum fator causal envolvido. 14 Se sabe também que pais que vão à programas que ensinam técnicas para educar filhos tem menos chance de que seus filhos tenham comportamentos antissociais. 15 Ou seja, não escolhemos ter nossos genes, nossos pais, viver no ambiente em que vivemos, ou até mesmo termos a alma que supostamente temos. Sendo assim, podemos dizer que não somos os autores de nossas escolhas, apenas somos “causados” a fazer escolhas. Basicamente, onde está o livre-arbítrio, se a decisão de nossas ações provêm de nossas vontades, sendo que nossas vontades são resultado de causas prévias em que não tivemos absolutamente nenhuma escolha em ter-las?

Quais são as implicações morais se pensarmos que o livre-arbítrio é uma ilusão então? Bom, a premissa básica que dá suporte ao livre-arbítrio é basicamente que se você pudesse ter feito alguma decisão diferente no passado, você teve livre-arbítrio. Porém, segundo o argumento feito nos parágrafos anteriores, se todas as nossas decisões foram “causadas”, então não haveria como termos tomado alguma outra decisão. Isso nos isentaria de culpa. Muitas pessoas então perguntariam: “Por que punir alguém se ela não foi culpada?”. Bom, acontece que mesmo se fomos “causados” a tomarmos uma ação específica, a ação em si não se torna moralmente correta por isso, e se pudermos também, como sociedade, “causar” o indivíduo a mudar seu comportamento futuro, ou prevenir outras pessoas de fazerem a ação errada, isto seria o certo a se fazer. Por exemplo, não haveria como o psicopata mencionado acima ter reagido de outro modo, mas isso não quer dizer que a ação do psicopata (mesmo sendo fruto de outros acontecimentos) não estivesse moralmente errada. Não poder ter agido de outra maneira não nos impede de tentar consertá-lo por seus erros morais. Em outras palavras, se considerarmos o livre-arbítrio uma ilusão, não devemos punir pessoas apenas por punir, porque elas “merecem sofrer”, como a maioria das pessoas aparentemente acha ser o correto, mas punir para chegarmos a um melhor futuro para todos. No caso, a prisão deveria servir apenas como um “remédio” e uma “prevenção” para crimes futuros, e não como um castigo sem fundamento. Algumas prisões nórdicas agem de acordo com essa filosofia, pois elas tem como objetivo principal reabilitar os prisioneiros. 16 Naturalmente, a psicopatia não necessitaria apenas de uma prisão ou algum tipo de reeducação. Até onde sabemos, não há “cura” para ela, então não seria correto soltá-los no meio de pessoas comuns, mas talvez fazer com que eles tenham vidas relativamente agradáveis longe de não-psicopatas, desde que já tenham cumprido pena de pessoas normais.

Notem que a palavra ‘culpado’ está sendo usada no texto no sentido filosófico: o de que a pessoa não tem uma “culpa primordial” para ter os comportamentos que ela tem. Porém, por questão de praticidade, nada impede de ainda usarmos a palavra “culpado” para designar um ser humano como a causa de um crime. Embora o indivíduo em questão não seja culpado por suas próprias ações, por ter sido vítima de causas prévias, é útil usarmos essa terminologia, pois assim estaremos demonstrando que ele foi o agente do crime. Assim poderemos tomar as devidas providências para “remediar” e prevenir males morais dentro de nossa sociedade. Para visualizarmos melhor, se algum de nós for atacado por um crocodilo, a maioria dos leitores provavelmente não vai querer que ele sofra por suas ações porque ele “merece”, pois não tem culpa de “ter sido causado” a tomar a ação do ataque. Porém, nada nos impede de tomar as devidas providências para que nós não sejamos atacados de novo pelo animal, pois ele foi o agente da ação (o culpado da ação específica). No caso dele, simplesmente o deixaríamos em seu habitat natural e não nos aproximaríamos dele. No caso de um humano assassino, seu habitat é o mesmo que dos outros humanos não-assassinos, então teríamos de deixá-lo em quarentena e tentar reabilitá-lo.

Embora os argumentos acima possam ser contrários à crença de muitos religiosos, e soar mal a eles, não parece haver implicações ruins nesse raciocínio. Pelo contrário, pensar sobre o problema do livre-arbítrio e que somos causados a fazer o que fazemos nos permite pensar sobre como tratar outras pessoas de maneira mais tolerante, humanitária e solidária: não as punindo porque elas “merecem sofrer e serem odiadas para sempre”, mas porque elas precisam ser consertadas para que no final tanto ela quanto todos no planeta tenham vidas melhores.

*é possível que haja outra causa antes, mas como este é o máximo que conseguimos chegar cientificamente, por praticidade, chamarei de causa primária

Referências:

  1. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21994088
  2. http://www.scientificamerican.com/article/dopamine-impulsive-addiction/
  3. http://link.springer.com/article/10.1023/A:1024910416164#page-1
  4. http://isites.harvard.edu/fs/docs/icb.topic1092050.files/Kahneman_Daniel._Thinking_Fast_and_Slow_pp._50-58.pdf
  5. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2784035/
  6. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2737341/?ref=nf
  7. http://www.scientificamerican.com/article/can-you-make-sociopath-through-brain-injury-trauma/
  8. http://www.scientificamerican.com/article/can-personality-improve-after-a-stroke/
  9. https://www.psychologytoday.com/blog/professor-cromer-learns-read/201203/after-brain-injury-the-dark-side-personality-change-part-i
  10. https://www.youtube.com/watch?v=9QXI_BxlY7M
  11. http://www.scientificamerican.com/article/100-trillion-connections/
  12. http://www.scientificamerican.com/article/finding-free-will/
  13. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1845/ ; http://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1847/ ;
    http://blogs.scientificamerican.com/scicurious-brain/scicurious-guest-writer-quantum-machines-become-reality/
  14. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1447496/
  15. The Psychopathology of Crime: Criminal Behavior as a Clinical Disorder, Adrian Raine
  16. https://www.youtube.com/watch?v=HfEsz812Q1I
Tiago Carneiro

Tiago Carneiro

Um amante da filosofia e da ciência. Me interesso muito na ética, na epistemologia (mais especificamente, na justificação), na filosofia da ciência, e na ciência em geral (psicologia, ciências sociais e astronomia, principalmente). No momento, estou cursando filosofia na UFRJ, e me especializando em epistemologia.