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O que é um número?

Por Bertrand Russell
Publicado na obra Introdução à Filosofia da Matemática

A pergunta ”que é número?’’ tem sido com frequência feita, mas só foi corretamente respondida em nossa própria época. A resposta foi dada por Frege em 1884, em seus Grundlagen der arithmetik. Conquanto esse livro seja bem pequeno, não seja difícil, e seja da mais alta importância, quase não atraiu atenção alguma e a definição de número que contém permaneceu praticamente desconhecida até que foi redescoberta por este autor em 1901.

Ao buscarmos uma definição de número, a primeira coisa a esclarecer é aquilo que podemos chamar a gramática de nossa indagação. Muitos filósofos, ao tentarem definir número, dedicam-se, na realidade, ao trabalho de definir pluralidade, que é coisa muito diferente. Número é o que é característico de números, como homem é o que é característico de homens. Uma pluralidade não é uma instância de número, mas de algum número determinado. Um trio de homens, por exemplo, é uma instância do número 3, e o número 3 é uma instância de número; mas o trio não é uma instância de número. Esse ponto poderá parecer elementar e dificilmente digno de ser mencionado; no entanto, provou ser por demais sutil para os filósofos, com poucas exceções.

Um determinado número não é idêntico a qualquer coleção de termos que o contenha: o número 3 não é idêntico ao trio consistindo de Brown, Jones e Robinson. O número 3 é algo que todos os trios têm em comum e que os distingue de outras coleções. Um número é algo que caracteriza certas coleções, isto é, aquelas que têm aquele número.

Em vez de falarmos de uma ”coleção”, falaremos, via de regra, de uma ”classe” ou, por vezes, de um ”conjunto”. As outras palavras usadas em matemática para designar essa mesma coisa são ”agregado” e ”multiplicidade”. Teremos muito a dizer depois sobre as classes. No momento, diremos o mínimo possível. Mas há algumas observações que têm de ser feitas imediatamente.

Uma classe ou coleção pode ser definida de duas maneiras que à primeira vista parecem assaz distintas. Podemos enumerar seus termos, como quando dizemos ”A coleção a que me refiro é a de Brown e Robinson”. Ou podemos mencionar uma propriedade que a defina, como quando falamos de ”humanidade” ou de ”habitantes de Londres”. A definição que enumera é chamada definição por ”extensão” e a que menciona uma propriedade definidora é chamada definição por ”intensão”. Desses dois tipos de definição, aquele por intensão é logicamente mais fundamental. Isso é mostrado por duas considerações: 1) a de que a definição extensional pode ser sempre reduzida a uma definição intensional; 2) a de que a definição intensional com frequência não pode ser, sequer teoricamente, reduzida à definição extensional. Cada um desses pontos exige uma palavra de explanação.

  1. Brown, Jones e Robinson possuem, todos, uma certa propriedade que não é possuída por nada mais em todo o universo, a saber, a propriedade de ser ou Brown ou Jones ou Robinson. Essa propriedade pode ser usada para dar uma definição por intensão da classe consistindo de Brown e Jones e Robinson. Considere-se a fórmula ”x é Brown ou x é Jones ou x é Robinson”. Essa fórmula só será verdadeira apenas para os três x, isto é, Brown e Jones e Robinson. A esse respeito, assemelha-se a uma equação cúbica com suas três raízes.  Pode ser tomada como assinalando uma propriedade comum aos membros da classe que consiste desses três homens e peculiar a eles. Tratamento semelhante pode, obviamente, ser aplicado a qualquer outra classe dada por extensão.
  2. É óbvio que, na prática, podemos com frequência saber muito sobre uma classe sem estarmos capacitados para enumerar seus membros. Nenhum homem poderia, de fato, enumerar todos os homens, ou mesmo todos os habitantes de Londres, no entanto sabe-se muito sobre cada uma dessas classes. Isso é suficiente para mostrar que a definição por extensão não é necessária ao conhecimento sobre uma classe. Mas, quando consideramos as classes infinitas, constatamos que a enumeração não é sequer teoricamente possível para os seres que vivem apenas durante um tempo finito. Não podemos enumerar todos os números naturais: são eles  0, 1, 2, 3 e assim por diante. Em algum ponto teremos de contentar-nos  com esse ”e assim por diante”. Não podemos enumerar todas as frações ou todos os números irracionais, ou, inteiramente, qualquer outra coleção infinita. Assim, o nosso conhecimento relativamente a todas essas coleções só pode ser obtido de uma definição por intensão.

Essas observações são relevantes de três maneiras diferentes quando buscamos a definição de número. Em primeiro lugar, os números formam, eles próprios, uma coleção infinita, não podendo, portanto, ser definidos por enumeração. Em segundo lugar, as coleções que tenham um determinado número de termos formam, elas próprias, presumivelmente, uma coleção infinita: é de se presumir, por exemplo, que exista uma coleção infinita de trios no mundo, pois, se assim não fosse, o número total de coisas no mundo seria finito, o que, conquanto possível, parece improvável. Em terceiro lugar, desejamos definir ”número” de tal maneira que possibilite os números infinitos; assim, devemos poder falar do número de termos de uma coleção infinita, e tal coleção deverá ser definida por intensão, isto é, por uma propriedade comum a todos os seus membros e a eles peculiar.

Para muitos propósitos, uma classe e uma característica que a define são praticamente intercambiáveis. A diferença vital entre as duas consiste no fato de haver apenas uma classe com um dado conjunto de membros, enquanto sempre há muitas características diferentes pelas quais uma determinada classe pode ser definida. Os homens podem ser definidos como bípedes implumes ou como animais racionais ou (mais corretamente) pelos traços pelos quais Swift delineia os Yahoos. É esse fato, de uma característica definidora jamais ser única, o que torna as classes úteis; de outro modo, poderíamos contentar-nos com as propriedades comuns e peculiares aos seus membros. Qualquer dessas propriedades pode ser usada em lugar da classe sempre que a unicidade não seja importante.

Voltando agora à definição de número, está claro que número é um modo de reunir certas coleções, isto é, as que têm um dado número de termos. Podemos imaginar todas as duplas em uma coleção, todos os trios em outra, e assim por diante. Dessa maneira obtemos várias coleções de coleções, consistindo cada coleção de todas as coleções que têm um certo número de termos. Cada coleção é uma classe cujos membros são coleções, isto é, classes; assim, cada uma é uma classe de classes. A coleção que consiste de todas as duplas, por exemplo, é uma classe de classes; cada dupla é uma classe com dois membros, e a coleção inteira de duplas é uma classe com número infinito de membros, cada um dos quais é uma classe de dois membros.

Como decidiremos sobre se duas coleções deverão pertencer à mesma coleção? A resposta que se impõe é: ”Determine quantos membros tem cada uma, colocando-as em uma mesma coleção se tiverem o mesmo número de membros”. Mas isso pressupõe que tenhamos definido os números e saibamos como descobrir quantos termos tem uma coleção. Estamos de tal forma acostumados com a operação de contar que tal pressuposição poderá facilmente passar despercebida. Contudo, a contagem, embora familiar, é de fato uma operação logicamente muito complexa; mais ainda, só se dispõe dela, como meio para descobrir quantos termos tem uma coleção, quando esta é finita. Nossa definição de número não deve admitir de antemão que todos os números sejam finitos; e não podemos, de qualquer modo, sem cair em um círculo vicioso, usar a contagem para definir os números, porque estes são usados na contagem.

Necessitamos, portanto, de algum outro método para decidir se duas coleções têm o mesmo número de termos.

Na realidade, é logicamente mais simples descobrir se duas coleções têm o mesmo número de termos do que definir qual é esse número. Um exemplo esclarecerá esse ponto. Se não houvesse poligamia e poliandria em parte alguma do mundo, está claro que o número de maridos vivos a qualquer momento seria exatamente igual ao número de esposas vivas. Não é necessário um censo para nos assegurarmos disso, nem tampouco necessitamos saber o número real de maridos e esposas. Sabemos que o número deve ser igual em ambas as coleções, porque cada marido tem uma esposa e cada esposa tem um marido. A relação entre marido e mulher é chamada relação de ”um-para-um”.

Uma relação é dita de ”um-para-um” quando, se x tem  essa relação com y, nenhum outro x’ tem essa mesma relação com y, e x  não tem a mesma relação com qualquer termo y’ outro que não seja y. Quando é preenchida apenas a primeira dessas condições, a relação é chamada de ”um-para-muitos”; quando preenchida apenas a segunda, é chamada de ”muitos-para-um”. Cabe observar que o número 1 não é usado nessas definições.

Nos países cristãos, a relação entre marido e mulher é de um-para-um; nos países maometanos, é de um-para-muitos; no Tibete,  é de muitos-para-um. A relação de pai para filho é de um-para-muitos; a de filho para pai é de muitos-para-um, mas a do filho mais velho para o pai é de um-para-um. Se n é qualquer número, a relação de n para n+1 é de um-para-um; também é essa a relação de n para 2n ou para 3n. Quando consideramos apenas números positivos, a relação de n para n²  é de um-para-um; mas quando são admitidos números negativos, ela se torna de dois-para-um, portanto n e –n têm o mesmo quadrado. Esses exemplos deverão bastar para esclarecer as noções de relações de um-para-um, um-para-muitos e muitos-para-um, as quais desempenham grande papel nos princípios da matemática, não apenas no tocante à definição dos números como também sob muitos outros aspectos.

Duas classes são ditas ”similares” quando há uma relação de um-para-um que correlaciona cada termo de uma classe com um termo da outra classe, do mesmo modo como a relação de casamento correlaciona os maridos com as mulheres. Umas poucas definições preliminares ajudarão a enunciar mais precisamente essa definição. A classe dos termos que têm uma determinada relação com algo é chamada o domínio daquela relação: assim, os pais são o domínio da relação de pai para filho, os maridos são o domínio da relação de marido para esposa, as esposas são o domínio da relação de esposa para marido, e os maridos e esposas, juntos, são o domínio da relação de casamento. A relação de esposa para marido é chamada inversa da relação de marido para esposa. Do mesmo modo, menor é o inverso de maior, mais tarde é o inverso de mais cedo, e assim por diante. De modo geral, o inverso de uma determinada relação é a relação que existe entre y e x sempre que essa relação exista entre x e y. O domínio inverso de uma relação é o domínio de seu inverso; assim, a classe das esposas é o domínio inverso da relação de marido para esposa. Podemos agora enunciar assim a nossa definição de similaridade:

Uma classe é dita ”similar” a outra quando há uma relação de um-para-um da qual uma classe é o domínio, enquanto a outra é o domínio inverso.

É fácil provar 1) que toda classe é similar a si mesma, 2) que se uma classe α é similar a uma classe ß, então ß é similar a α, 3) que se α é similar a ß e ß é similar a y, então α é similar a y. Uma relação é dita reflexiva quando possui a primeira dessas propriedades, simétrica quando possui a segunda, e transitiva quando possui a terceira. É óbvio que uma relação que é simétrica e transitiva deve ser reflexiva em todo o seu domínio. As relações que têm essas propriedades são muito importantes, valendo observar que a similaridade é uma relação dessa espécie.

É claro ao senso-comum que duas classes finitas têm o mesmo número de termos se são similares, mas não em caso contrário. O ato de contar consiste em estabelecer uma correlação de um-para-um entre o conjunto de objetos contados e os números naturais (excluindo 0) usados no processo. Consequentemente, o senso-comum conclui que há tantos objetos no conjunto a ser contado quantos são os números até ao último número usado na contagem. E também sabemos que, enquanto nos restringirmos aos números finitos, haverá exatamente n números de 1 até n. Segue-se que o último número usado na contagem de uma coleção é o número de termos da coleção, desde que a coleção seja finita. Mas esse resultado, além de ser somente aplicável a coleções finitas, pressupõe o fato de duas classes similares terem o mesmo número de termos, e dele depende; pois o que fazemos quando contamos (digamos) 10 objetos é mostrar que o conjunto desses objetos é similar ao conjunto de números de 1 a 10. A noção de similaridade está logicamente pressuposta na operação de contar, sendo logicamente mais simples, embora menos familiar. Na contagem, é necessário tomar os objetos contados em uma certa ordem, como primeiro, segundo, terceiro, etc., mas ordem não é da essência de número; é um acréscimo irrelevante, uma complicação desnecessária do ponto de vista lógico. A noção de similaridade não exige uma ordem; por exemplo, vimos que o número de maridos é o mesmo que o número de esposas, sem termos de estabelecer uma ordem de precedência entre eles. Também não exige que as classes similares sejam finitas.  Tomemos, por exemplo, os números naturais (excluindo 0), de um lado, e , de outro, as frações que têm 1 como numerador: é óbvio que podemos correlacionar 2 com 1/2, 3 com 1/3 e assim por diante, provando, assim, que as duas classes são similares.

Podemos assim usar a noção de ”similaridade” para decidir se duas coleções deverão pertencer à mesma coleção, no sentido em que levantamos essa questão anteriormente neste capítulo. Queremos formar uma coleção contendo a classe que não tem membro algum: esta será para o número 0. A seguir, queremos uma coleção com todas as classes que têm um membro: esta será para o número 1. A seguir, para o número 2, queremos uma coleção consistindo de todas as duplas; depois, uma de todos os trios, e assim por diante. Dada qualquer coleção, podemos definir a coleção, à qual deve pertencer, como sendo a classe de todas as coleções ”similares” a ela. É muito fácil ver-se que se (por exemplo) uma coleção têm três membros, a classe de todas as coleções similares a ela será a classe dos trios. E, seja qual for o número de termos de uma coleção, as coleções que lhe sejam ”similares” terão o mesmo número de termos.  Podemos tomar essa observação como uma definição para ”ter o mesmo número de termos”. É óbvio que dá resultados em conformidade com o uso enquanto nos limitamos a coleções finitas.

Até agora não sugerimos coisas nem ao mínimo paradoxais.

Mas, quando chegamos à definição real dos números, não podemos evitar o que deverá parecer, à primeira vista, um paradoxo, embora essa impressão logo se desvaneça. Pensamos, naturalmente, que a classe das duplas (por exemplo) seja algo diferente do número 2.  Mas não há dúvida alguma quanto à classe das duplas: é indubitável e não é difícil de definir, enquanto o número 2, em qualquer outro sentido, é uma entidade metafísica de cuja existência jamais podemos estar seguros e cuja pista nunca podemos estar certos haver determinado. É, portanto, mais prudente contentar-nos com a classe das duplas, da qual estamos seguros, do que caçarmos um problemático número 2 que sempre se mostrará fugidio. Consequentemente, estabelecemos esta definição:

O número de uma classe é a classe de todas as classes similares a ela.

Assim, o número de uma dupla será a classe de todas as duplas. Na verdade, a classe de todas as duplas será o número 2, de acordo com a nossa definição. Graças ao emprego de alguma originalidade, essa definição garante precisão e certeza; e não é difícil provar que os números assim definidos têm todas as propriedades que dele esperamos.

Podemos passar agora à definição dos números em geral como sendo qualquer uma das coleções nas quais a similaridade coleciona classes. Um número será um conjunto de classes tais que duas quaisquer sejam similares entre si e nenhuma fora do conjunto seja similar a qualquer uma de dentro do conjunto. Em outras palavras, um número (em geral) é qualquer coleção que é o número de um de seus membros; ou, com simplicidade ainda maior:

Um número é qualquer coisa que seja o número de alguma classe.

Tal definição tem a aparência verbal de ser circular, mas na realidade não o é. Definimos ”o número de uma determinada classe” sem usar a noção de número em geral: podemos, portanto, definir número em geral em termos de ”o número de uma determinada classe” sem cometer qualquer erro lógico.

As definições dessa espécie são na verdade muito comuns. A classe dos pais, por exemplo, teria de ser definida definindo-se primeiro o que é ser o pai de alguém; a classe dos pais será, então, a de todos os que são pais de alguém. Da mesma forma, se queremos definir os números quadrados (digamos), temos primeiro de definir o que queremos dizer quando afirmamos que um número é o quadrado de outro, e, depois, definir os números quadrados como sendo aqueles que são os quadrados de outros números. Essa espécie de procedimento é muito comum, sendo importante considerar-se que é legítimo e, até com frequência, necessário.

Gabriel Jardim

Gabriel Jardim

Cético, Humanista secular, grande apreciador da arte, da ciência e da filosofia.