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A Ilusão dos Fatos Alternativos

Publicado por Susana Martinez-Conde e Stephen L. Macknick na Scientific American
Traduzido por Rodrigo Aben-Athar

A última semana foi marcada pelo juramento de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e pelo momento em que a frase “fatos alternativos” uniu-se à “pós-verdade” (a mais recente palavra do ano pelo Dicionário de Oxford) e à “falsas notícias” em nosso crescente léxico de ambiguidades dignas de Orwell. A ocasião foi o primeiro choque entre o Presidente Trump e a imprensa, cujo foco foi bizarramente mesquinho: o tamanho da multidão presente à sua posse na sexta-feira.

Em seu primeiro discurso, proferido na CIA no sábado, Trump atacou repórteres e redes de televisão por “mentir” sobre a multidão na posse e por mostrar um “campo vazio” no National Mall. “Eu observei e o campo parecia ter um milhão, um milhão e meio de pessoas”, disse Trump. Mais tarde, o secretário de imprensa Sean Spicer partiu em defesa da afirmação de Trump enquanto castigava a mídia. “Essa foi a maior audiência que jamais testemunhou uma posse – ponto – tanto pessoalmente quanto pela televisão”. Esse anúncio foi memorável por contradizer fortemente dados verificáveis: fotografias aéreas mostrando multidões consideravelmente maiores na primeira posse de Barack Obama em 2009. No domingo, a conselheira do presidente, Kellyanne Conway, adicionou combustível à chama ao insistir que Spicer havia sido honesto. “Sean Spicer citou ‘dados alternativos’”, Conway disse ao programa da NBC “Meet the Press”. O dicionário Merriam-Webster ponderou no Twitter, lembrando Conway de que “um fato é um pedaço de informação que possui realidade objetiva.” Mas, se a campanha eleitoral de Donald Trump e sua incipiente presidência fornecem algum indicativo, o debate sobre o que constitui realidade objetiva versus realidade subjetiva está fadado a perdurar.

Nós, os autores desse artigo, somos neurocientistas especializados no estudo percepções equivocadas e ilusões. Nossa pesquisa se concentra nos erros de percepção e cognitivos que cometemos diariamente e nos hábeis truques praticados por pintores e mágicos que nos fazem experimentar algo além do que de fato existe. Pode-se dizer que estudamos o engano e despiste/distração profissionalmente, conceitos que se tornaram surpreendentemente relevantes na cena política.

Nós temos visto seguidamente no laboratório que não devemos confiar em nossos sentidos: não importa o quão seguros nos sentimos sobre nossas percepções dos eventos à nossa volta, ainda assim podemos estar redondamente enganados. Uma parte importante do problema é ninguém experimenta a realidade diretamente. Cada visão, cada som e cada sentimento que qualquer um de nós tenha vivenciado foram filtrados por nosso equipamento biológico e pela programação em nossos cérebros – máquinas de processamento de informações feitas de pequenas porções de água salgada e proteínas. Você jamais experimentou o mundo diretamente, apenas a simulação de seu cérebro sobre ele, que pode ou não corresponder à realidade. Mas mesmo que nossos sentidos não possam inteiramente compreender o mundo à nossa volta, existem regras precisas no jogo de obter conhecimento não-tendencioso e maneiras de medir a realidade objetiva. Veja aqui como o método científico e a ciência da ilusão podem nos ajudar:

Regra Nº1: Não podemos determinar o que é verdadeiro, mas podemos estabelecer o que é falso.

Nossa imagem da realidade evolui a cada vez que aprendemos algo novo sobre o mundo. Sir Isaac Newton demonstrou que a física aristotélica não era toda a verdade. A seu tempo, a física quântica e relativística sucedeu a mecânica newtoniana. Cada descoberta subsequente nos aproximou da verdade maiúscula e absoluta sobre a física, mas permanece a possibilidade de que uma nova, não prevista, observação vá refutar conhecimento já aceito. Portanto, um princípio fundamental da ciência é que, ainda que nenhum montante de informação possa comprovar uma hipótese, uma única observação contraditória pode refutá-la. Em outras palavras, podemos não provar que hipóteses são verdadeiras, mas podemos provar que são falsas. Se há uma coisa na qual o método científico se sobressai é desprovar proposições.

A hipótese de Donald Trump sobre o tamanho da multidão era possivelmente razoável sob seu ponto de vista no dia. Como observou o Washington Post, pode ter parecido a Trump que a multidão se estendia até o final do National Mall. Ou talvez ele tenha apenas mentido. De qualquer maneira, hipóteses apenas sobrevivem à medida que os dados lhes deem suporte: de fotografias aéreas e estimativas de especialistas em multidões, aos números do público em trânsito fornecidos pela WMAT (Trânsito da Área Metropolitana de Washington), os fatos rejeitam a afirmação da Casa Branca de que o público presente à posse de Trump foi o maior da história.

Regra Nº2: Alta convicção não é igual à prova objetiva.

Lembram do vestido viral? O fenômeno das mídias sociais começou com a foto de um vestido tirada sob uma ambígua iluminação azul e amarela. Grosseiramente, metade da humanidade viu a vestimenta como branca e dourada, a outra metade a viu como azul e preta. Ambas as frações se sentiram igualmente convictas de suas avaliações e, embora tentassem, não eram capazes de ver o traje de outra maneira. Você pode entender as duas interpretações do vestido como dois conjuntos válidos de “fatos alternativos”. A não ser por isso: se você iluminasse o vestido como uma simples luz branca, ele pareceria azul e preto para todo mundo.

Todos nós podemos imaginar cenários alternativos para qualquer acontecimento: sequencias de eventos que poderiam ter ocorrido, mas não ocorreram. Deveríamos desculpar Conway se foi isso o que ela quis dizer com “fatos alternativos”. A recente série de tv da Amazon Video, The Man in the High Castle, se passa numa dessas realidades alternativas, um universo distópico no qual o Eixo venceu a Segunda Guerra. Talvez haja uma realidade alternativa na qual o Presidente Trump tenha obtido a maior audiência a jamais testemunhar uma posse. Todavia, isso não é verdade no nosso universo.

O relatório da Casa Branca sobre o tamanho da multidão não era digno de notícia devido sua imprecisão, mas por conta da alta convicção de Trump (e depois de Spice e Conway) em informações incorretas. Se Trump tivesse dito que parecia que havia um milhão de pessoas na posse, mas que não sabia de fato a quantidade, a afirmação pareceria mais cativante – que o presidente estava emocionado pelo evento – do que inquietante.

Como um complemento, no dia após a posse nós comparecemos à Marcha das Mulheres em Washington DC. Amontoados como sardinhas, imaginamos que deveria haver alguns milhões de pessoas no evento e fomos surpreendidos por depois descobrir que, baseado em imagens do alto, em dados de transito da WMAT e em estimativas de especialistas, a marcha deslocou cerca de meio milhão de pessoas. Essa diferença ressalta o quão difícil é estimar o tamanho de uma multidão quando se faz parte dela – até para cientistas dedicados à percepção e acostumados a desconfiar dos seus sentidos.

Regra Nº3: Percepção depende de perspectiva, mas subjetividade não é uma medida da realidade.

Nossa fiação cerebral é tal que é virtualmente impossível para humanos pensar, ou mesmo ver, em termos absolutos. Nossos olhos não são capazes de contar fótons da maneira que o fotômetro de um fotógrafo é. Em vez disso, vemos um mundo como um padrão de contrastes: o mesmo círculo cinza pode nos parecer preto se for cercado por branco ou branco se for cercado por preto. Nossa percepção depende de contexto e perspectiva. Denominamos de ilusões os casos em que nosso relativismo subjetivo distancia-se dramaticamente dos dados objetivos (como quando vemos um círculo cinza como branco, embora o fotômetro prove que não é o caso). Alguns dos mais deslumbrantes truques de percepção baseiam-se no uso engenhoso da perspectiva. Kokichi Sugihara, um matemático do Japão e repetidas vezes campeão do Concurso de Melhor Ilusão do Ano, construiu rampas de cartolina nas quais bolas de madeira parecem rolar para cima. No entanto, um ponto de vista diferente revela que o movimento ascendente é apenas uma ilusão e que, na realidade, as bolas estão rolando para baixo.

Há uma discussão corrente sobre como a percepção pode ter afetado as alegações da Casa Branca sobre o tamanho das multidões na posse. Como mencionado acima, há a questão do ponto de vista de Trump no dia, que pode ter influenciado sua percepção na direção de números mais volumosos. Essa não é a conclusão da Casa Branca. Em vez disso, o secretário de imprensa Spicer adotou a conduta de argumentar que as fotografias aéreas fizeram com a que multidão de Trump parecesse menor do que de fato era graças ao uso sem precedente de coberturas brancas no piso para proteger o gramado do National Mall. Mesmo desconsiderando que deveria ser ainda mais fácil de contabilizar uma multidão de pessoas usando escuros agasalhos de inverno sobre um fundo claro, o aumento de contraste no sistema visual não explica tudo. Sem mencionar que as coberturas no piso foram usadas pela primeira vez em 2013, durante a segunda posse de Obama e ainda estavam no chão – embora menos visível por conta de uma multidão maior – durante a Marcha das Mulheres, no dia após a posse.

Em nossa nova era de notícias falsas e obscurantismo pós-verdade, a busca pela verdade objetiva e fatos (não-alternativos) tem se tornado mais crítica que nunca. Cientistas e jornalistas devem unir forças nessa empreitada comum e não hesitar em apontar falsidades presentes ou futuras, ainda que causadas por erros inocentes ou francas tentativas de deturpação. Visto que a “pós-verdade” é uma ilusão – sem qualquer base na realidade – a “verdadeira” verdade é insensível aos nossos desejos, emoções e crenças. O método científico tem nos ensinado que só vamos obter a verdade despindo com teimosia o caminho até ela de qualquer fração de informação enganosa. Investigações a fundo e verificação agressiva de fatos serão cruciais para nos fazer chegar lá.

Rodrigo Aben-Athar

Rodrigo Aben-Athar

Designer e curtametragista, fascinado por ciência e filosofia. Leitor voraz e tradutor nas horas vagas.