Por milênios, a relação do ser humano com a natureza impregnou-se de estupefação, mistérios e medo. O barro do qual fomos feitos, se é que merecemos tal metáfora, nos contagiou com o germe da imaginação religiosa, responsável tanto pela formação de tradições sociais quanto pelas explicações supersticiosas a questões científicas. Como a procriação e a sobrevivência eram prioridade nas comunidades primitivas, não se podia esperar que elas, superando a linguagem mitológica, compreendessem cientificamente os fluidos e engrenagens que fazem o Universo funcionar. Assim, personificaram toda paisagem ao redor, desde a imensidão dos mares, a noite estrelada até o firmamento iluminado pelo Sol, convertendo-as em exemplos palpáveis da coexistência entre deuses e mortais.
Em meio a esmagadoras pressões do ambiente selvagem, diferentes povos em diferentes épocas, através de preces e cultos, tentaram aproximar o divino do profano, o humano do sagrado. Não surpreende que nossos ancestrais tenham engendrado suas idiossincrasias para reverenciar o sobrenatural. Uma delas é demonstrada nos rituais de sacrifício, talvez presente em quase todos os primórdios da religião. Especificar quando e onde surgiu esse hábito, no entanto, é tarefa quase impossível, pois muitos registros contêm mais aspectos literários que históricos, por exemplo, os versos homéricos da famosa Ilíada. Essas experiências revelam, ou ao menos sugerem, que há alguma propensão natural do Homo Sapiens para a espiritualidade e a credulidade. Afinal, num contexto de vida bestial, é mais vantajoso sobreviver como um crente a perecer como um cético.
Ao investigarem certos tipos de holocausto na cultura hindu e hebraica, os antropólogos Marcel Mauss e Henri Hubert, no ensaio intitulado Sobre o sacrifício (1899), lançaram uma nova compreensão geral sobre o tema. Quando pensamos num ritual de sacrifício, nossa imaginação quase imediatamente constrói um cenário macabro, horripilante, no qual pentagramas serpenteiam seus traços no solo e se ergue um altar de pedra para esquartejar cordeiros e criancinhas. Se é verdade que algo parecido foi feito, isso certamente pode ser provável. Basta tomar como referência certas culturas tribais ainda existentes, ou, se preferirmos um exemplo “familiar”, o infanticídio que Abraão se dispôs a cometer contra seu filho Isaac, como prova de fé em Deus.
Mas sacrifícios não se limitam apenas a cerimônias tétricas e cruentas. Na antiga Grécia, por exemplo, sacrificavam-se bolos, frutas e outros vegetais em veneração a divindades menos sádicas. Um sacrifício não se define, obrigatoriamente, com os rios de sangue derramados de uma vítima, e sim com a destruição total ou parcial das oferendas prestadas, podendo estas, conforme os interesses e a finalidade do rito, ser animais ou simples vegetais. De acordo com Mauss e Hubert, contudo, a principal demanda que incide sobre os gestos sacrificiais é observada não somente no martírio da vítima, mas sobretudo na alteração do estado moral da pessoa que a sacrifica, ou seja, o sacrificante deve estar lustrado, livre de impurezas, sem gozar dos prazeres mundanos que o cercam. Somente uma relação consagrada entre sacrificante e vítima produz o orgasmo transcendental.
O arquétipo geral dos sacrifícios, formado pelo sacrificante, o lugar, os instrumentos e a peça central da cerimônia, a vítima, é escolhido com máxima cautela: qualquer falta cometida, qualquer descuido que interrompa a constância e o êxtase do momento, pode suscitar os maus espíritos e deixar os deuses zangados. Mauss e Hubert também explicam que a prática sofre alterações a depender dos próprios fins desejados, como pedir perdão, demonstrar gratidão, solicitar abundância em futuras colheitas, alimentar os deuses etc. Um sacrifício de sacralização confere ao sacrificante ou à vítima um caráter sagrado, embora nem sempre divino. Já o sacrifício de expiação, quando necessário, elimina as falhas de um indivíduo ou grupo, tal como era feito quando os sacerdotes judeus selecionavam um bode, despejavam sobre ele os pecados do povo de Israel e, em seguida, soltavam o animal no deserto, condenando-o à morte.
Sob o prisma da civilização atual, essas práticas contrariam os fundamentos de uma vida guiada pela razão e o progresso. Por mais custoso que seja abandonar soluções supersticiosas, concordamos ser melhor cultivar uma postura crítica e racional perante o mundo. Mas cá entre nós: se vivêssemos em meio às sociedades e clãs primitivos, também seríamos tomados de pavor ao ver raios rasgarem o céu feito tecido, ou ocas derrubadas por fortes ventanias; veríamos deuses onde houvesse somente incêndios florestais, vulcões ativos ou proliferação de pragas contra plantações de trigo. Felizmente, alguns conseguem romper as correntes da crendice, enquanto outros, no entanto, seguem agrilhoados em direção à sepultura.