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Os sentidos de “materialismo”

“Materialismo” provoca confusão, mas podemos arrumar as coisas ao distinguir os principais sentidos do termo na discussão filosófica:

Materialismo dialético/histórico: a tese clássica do marxismo, é materialismo na medida em que é a alegação de que tudo que existe é material ou fundado na matéria. É dialético porque inclui a alegação de que a realidade teria certa dinâmica (que ficaria evidente na história da nossa civilização): tese, antítese e síntese, nos diz o clichê.

Materialismo/fisicismo/naturalismo metafísico: “materialismo” aqui continua sendo a tese de que tudo que existe é material ou fundado na matéria, mas “fisicismo” passou a ser preferido por três razões: i) porque “materialismo” se popularizou como sinônimo de “materialismo dialético”; ii) porque o materialismo seria uma tese metafísica e iii) porque o compromisso com “matéria” se tornou questionável. A razão original foi ii, pois o termo “fisicismo” foi introduzido pelos positivistas lógicos como uma tese semântica (a saber: para qualquer enunciado verdadeiro haveria um enunciado físico verdadeiro com significado equivalente), não como uma tese metafísica (sobre a natureza da realidade). Porém, com o declínio do positivismo lógico e a recuperação da metafísica, “fisicismo” passou a ser usado para expressar a tese metafísica (de que tudo que há é físico ou fundado no que é físico) e foi favorecido (em vez de “materialismo”) por causa de i e iii. A razão i gradualmente perdeu força, tornou a ser corrente entender “fisicismo” e “materialismo” como sinônimos (ainda que o uso de “fisicismo” prevaleça), e a razão iii permanece como um detalhe que pode ser importante: a noção de “matéria” não é mais tão central na Física, tanto que se comprometer com a tese de que a Física revela a realidade em seu nível mais fundamental não exige que a noção de “matéria” (em vez das noções de “campo” e de “força”, por exemplo) seja importante ao ponto de ser definidora da posição (do que não segue que não existam físicos e filósofos que consideram “matéria” bem importante, é uma questão aberta até o momento).

No caso da noção de “naturalismo metafísico” (alguns usam apenas “naturalismo” para designar essa tese), ela é mais recente que “fisicismo” e talvez um pouco menos difundida. O naturalismo metafísico seria mais forte que o fisicismo: geralmente é entendido como o fisicismo complementado pela tese de que há relações causais na natureza, e que a natureza é causalmente fechada (ou seja: a tese é de que só há relações causais entre o que é físico, e de que tudo que existe é físico). Podemos ver, portanto, o naturalismo metafísico como um fisicismo fortalecido.

Por outro lado, podemos considerar também o realismo científico, que é a tese de que a realidade realmente (ou muito aproximadamente) é conforme descrita pelas nossas melhores teorias científicas (ou seja, a tese de que a realidade de fato contêm os objetos e/ou relações que essas teorias “dizem” que ela contêm). O fisicismo parece pressupor o realismo científico (átomos e forças realmente existiriam, e estariam nas bases de tudo), mas o contrário não se sustenta: o realismo científico é uma tese mais fraca, compatível com a defesa de que existam (além daquilo que a ciência nos diz que existe) entidades e propriedades extrafísicas: propriedades mentais irredutíveis, objetos abstratos e seres sobrenaturais, por exemplo.

Materialismo eliminativista: essa é uma tese mais específica, importante na Filosofia da Mente, segundo a qual não há estados mentais (como crenças e desejos), mas apenas estados neurológicos (e, portanto, termos como “crença” e “desejo” seriam tão vazios quanto “unicórnio”, seriam partes de um vocabulário que deveríamos eliminar se pretendemos descrever a realidade). Nesse caso a parte do “materialismo” serve apenas para dar ênfase ao fato de que nessa perspectiva o que há é aquilo que é neurofísico (em oposição ao mental). Não chega a ser uma tese que se compromete mais profundamente com o fisicismo, podendo ser defendida por alguém que simplesmente aceita o realismo científico e rejeita propriedades ou fatos mentais, por exemplo.

Referências

Gregory Gaboardi

Gregory Gaboardi