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Pontos de reflexão sobre o modelo moral e as drogas

Complemento ao texto anterior, com alguns pontos de reflexão a serem pensados.

Vamos partir primeiro da definição de droga, ou substância psicoativa, algo já abordado em outra ocasião – no texto anterior há um link para outro post que conceituava as drogas. Uma droga ou psicoativo é qualquer substância externa, sob várias formas de apresentação (como bebida, cigarro, pó, selo, comprimido, gás, spray, solução, elixir) e administrada por alguma via (geralmente nasal, oral ou injetável), que provoca alterações fisiológicas no indivíduo, sobretudo no sistema nervoso central. O uso de drogas pode provocar os mais variados efeitos, a depender das características do seu mecanismo de ação: calma, relaxamento, sonolência; agitação, euforia, sociabilidade; alterações de percepção sensorial, temporal e espacial. O que certamente acaba interferindo no comportamento original do indivíduo, mesmo que sutilmente.

A partir disso podemos entender como se dá a percepção que o modelo moral nos dá sobre o uso de drogas.

Vício: Termo que remete à ideia de “mal moral”, conforme citado antes. O vício é um desvio na conduta que é normalmente aceitável em sociedade. Um indivíduo viciado está sujeito a repreensões e julgamentos, como do tipo “falta de vergonha na cara”, que representa uma ausência ou perda de escrúpulos. Um tipo de fala que se mistura ao pensamento de senso comum.

Culpabilização: Atribuir a responsabilidade exclusivamente ao usuário, ignorando os fatores externos ao indivíduo, é uma característica marcante e essencial. Na perspectiva do modelo moral, o usuário e possível dependente é o único “culpado”. Há também a associação com a visão religiosa de mundo, o que nos remete ao próximo ponto.

Pensamento de pecado: A ideia de culpa também pode estar associada à noção de pecado, trazida do âmbito religioso. A remissão do pecado se dá com a aceitação da própria culpa, e a partir disso, existem algumas condutas que podem ser adotadas. Existe esse tipo de trabalho em grupos de ajuda mútua que trabalham a perspectiva moral-religiosa, sobretudo atrelados a paróquias ou a organizadores pouco especializados, mas que buscam realizar algum tipo de filantropia. Oferecer capacitação é uma medida que pode ser realizada juntamente a autoridades competentes e especialistas da área, bem como a popularização do tema.

“Força de vontade”: É outra fala muito comum, ouvida principalmente no cotidiano do senso comum. A noção de que “precisa ter força de vontade” é outra forma de responsabilização exclusiva do indivíduo, como se “bastasse querer”, quando a pessoa perde o controle sobre o seu consumo. Alguns indivíduos, na condição de pacientes, podem chegar a alegar que “param quando querem”, o que pode ser completamente fora de cogitação em certos casos.

“Fundo do poço”: Tão comum quanto a anterior, muitas pessoas são colocadas no “fundo do poço”, como se para elas não houvesse mais saída. Se estão no fundo, é porque alguém acredita que estas precisam ser resgatadas e trazidas de volta à superfície. Estar no fundo do poço representa ter perdido toda a confiança sobre si e dos outros, ou não ter sobrado nenhuma esperança para si.

Primeiro uso experimental: Ainda seguindo os dois primeiros pontos, cabe levar em conta o entendimento que muitas pessoas possuem sobre o uso inicial de uma droga, que pode se tornar abusivo. O pensamento de porta de entrada nem sempre se sustenta, porque nem sempre haverá uma droga de escolha que abrirá o caminho para outras experiências. Varia com o contexto e com a história individual, podendo existir ou não uma única droga que foi a responsável pelo início de uma “linha ascendente” de experimentação, por assim dizer. Essa fala geralmente é utilizada para a maconha, mas há casos comuns em que podemos notar um usuário que iniciou sua vida de consumo a partir do álcool (e combinações, seja com tabaco, energético, antidepressivos, benzodiazepínicos, cocaína); ou até que sequer teve experiências anteriores, começou usando maconha e não fez uso deliberado de qualquer outra droga.

Lícitas e ilícitas: A definição de uma droga como legalmente aceita ou não remete a épocas em que se tinha pouco conhecimento sobre os mecanismos de ação e a interação das drogas com o organismo, praticamente nada se comparado com hoje em dia. Se via muito a questão do uso medicinal como fator considerado. Os avanços nas pesquisas garantem uma melhor separação entre esses dois grupos. Existem substâncias lícitas que possuem um alto potencial de provocar dependência química e psíquica, como os anestésicos opioides, o tabaco e o álcool.

Criminalização: Este é o modelo jurídico-moral, que a partir da separação entre drogas lícitas e ilícitas, rotula consumidores de drogas como criminosos ou não. Aos poucos essa concepção tem decaído com a ampliação de debates sobre a descriminalização ou a despenalização para o consumo e o porte de algumas drogas, ou todas, a depender da corrente de pensamento adotada. A revisão do entendimento, bem como da aplicação, de medidas restritivas de liberdade e das medidas socioeducativas é determinante nesse processo de mudança paradigmática.

Reforço que o modelo moral é ultrapassado, falho e que oferece poucos caminhos a se trilhar. Seu estudo se dá comumente para fins históricos e conceituais. Discutir alternativas baseadas em evidências é perfeitamente possível nos dias atuais.

As referências foram todas postas anteriormente, favor consultar o link acima. Aqui estão mais algumas: (1) (2) (3) (4)

Pedro H. Costa

Pedro H. Costa

Bacharel em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atuo desde 2012 no Centro de Estudos e Pesquisas sobre Álcool e outras Drogas, pela mesma instituição. Interessado em saúde, educação, ciência e filosofia. Faça uma pergunta: ask.fm/phcs91