Por Richard Dawkins
Publicado na obra A Magia da Realidade
Todas as tribos humanas tiveram o seu próprio mito de criação, o que chamamos hoje de cosmogonia. Muitos desses mitos tentam explicar por que determinados tipos de animais são como são: eles “explicam” coisas como por que leopardos têm manchas e por que coelhos têm cauda. Mas parece que não há muitas histórias sobre a origem dessa imensa variedade de animais.
Os povos Pueblo e Navajo, da América do Norte, têm um mito que lembra remotamente a ideia de evolução: a vida surgiu da Terra como um planta que brotou e foi crescendo em uma sequência de etapas. Os insetos subiram de seu mundo, o Primeiro Mundo ou Mundo Vermelho, e chegaram ao Segundo Mundo, o Mundo Azul, onde viviam as aves. Com isso, o Segundo Mundo ficou populoso demais, e as aves e os insetos voaram para o Terceiro Mundo, ou Mundo Amarelo, onde viviam as pessoas e os demais mamíferos. O Mundo Amarelo então ficou muito populoso e a comida escasseou, por isso todos os seres, insetos, aves e outros animais fugiram para o Quarto Mundo, o Mundo Preto e Branco do dia e da noite. Nele os deuses haviam criado pessoas melhores, que sabiam cultivar a terra e ensinaram essa prática aos recém-chegados.
Parece não existir nenhum mito que trate especificamente do imenso número de tipos de animais. Isso é surpreendente, já que há evidências indiretas de que os povos tribais sempre tiveram uma boa noção do fato de que as variedades de animais são muito numerosas.
O mito judaico da criação faz um pouco mais de justiça à diversidade, mas não procura realmente explicá-la. Na verdade, o livro sagrado do judaísmo contém dois mitos de criação. No primeiro, o deus judaico criou tudo em seis dias. No quinto dia, criou os peixes, as baleias e todos os seres marinhos, além das aves. No sexto dia, criou o restante dos animais terrestres, inclusive o homem. O mito dá alguma atenção à variedade dos seres vivos. Por exemplo: “Criou, pois, Deus os monstros marinhos, e todos os seres viventes que se arrastavam, os quais as águas produziram abundantemente segundo as suas espécies; e toda ave que voa, segundo a sua espécie” e fez “os animais selvagens segundo suas espécies”. Mas por que tamanha variedade? Isso não é dito.
No segundo mito, vemos uma alusão à possibilidade de o deus ter julgado que seu primeiro homem precisava de companheiros. Adão, o primeiro homem, é criado sozinho e posto num lindo jardim. Mas o deus percebeu que “não é bom que o homem esteja só”, assim “da terra formou, pois, o Senhor Deus todos os animais do campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem, para ver como lhes chamaria”.
Agora que você já entendeu as explicações míticas que nossos antepassados criaram para explicar o mundo que os rodeava (e não podemos culpá-los, o único modo de averiguar a realidade disponível à época era a observação deliberada e supersticiosa da natureza, por isso mesmo que não se vê mitos de criação envolvendo animais invisivelmente minúsculos como ácaros ou coisas estonteantemente longínquas mas enormes e ainda assim invisíveis a olho nu, como galáxias) imagino que deva estar se perguntando: afinal…
Por que realmente existem tantos tipos de animais?
A tarefa de Adão, nomear todos os animais, era difícil – mais difícil do que os antigos hebreus imaginavam. As estimativas são de que 2 milhões de espécies animais tenham nome científico, e essa é apenas uma pequena fração do número de espécies que ainda precisam ser nomeadas.
Como é que decidimos se dois animais pertencem à mesma espécie ou não? No caso dos que se reproduzem sexualmente, podemos dar uma definição. Animais pertencem a espécies diferentes quando não podem procriar entre si. Há casos duvidosos, como o dos cavalos e jumentos, que podem cruzar e se reproduzir, mas, quando isso acontece, a cria (que chamamos de mula) é infértil, ou seja, não pode ter filhos. Por isso, colocamos o cavalo e o jumento em espécies diferentes. Já os cavalos e os cães são obviamente de espécies diferentes porque nem sequer tentam cruzar, e mesmo que fizessem não poderiam gerar filhos, nem mesmo inférteis. Já o cocker spaniel e o poodle pertencem à mesma espécie porque cruzam sem problema algum, e os filhotes que nascem desse cruzamento são férteis.
Todo nome científico de animal ou planta consiste em duas palavras em latim, geralmente grafadas em itálico. A primeira palavra designa o “gênero” ou grupo de espécies, e a segunda, a espécie individual pertencente a esse gênero. Homo sapiens (“homem sábio”) e Elphas maximus (“elefante muito grande”) são exemplos. Cada espécie pertence a um gênero. Homo é um gênero e Elephas, outro. O leão é Panthera leo, e o gênero Panthera inclui também Panthera tigris (tigre), Panthera pardus (leopardo ou pantera) e Panthera onca (onça-pintada). O Homo sapiens é a única espécie sobrevivente do nosso gênero, mas temos fósseis que receberam nomes como Homo erectus e Homo habilis. Outros fósseis têm semelhanças com os humanos, mas diferem suficientemente do gênero Homo para ser classificados em outro gênero, como o Australopithecus africanus e o Australopithecus afarensis.
Cada gênero pertence a uma família, cujo nome geralmente é escrito com inicial em maiúscula. Os felinos (leões, leopardos, guepardos, linces e muitos felinos menores, inclusive o seu gatinho de estimação) compõem a família Felídeos. Cada família pertence a uma ordem. Cães, gatos, ursos, doninhas e hienas pertencem a diferentes famílias da ordem Carnívoros. Macacos, grandes primatas (incluindo o homem) e lêmures pertencem a diferentes famílias da ordem Primatas. E cada ordem pertence a uma classe. Todos os mamíferos são da classe Mamíferos.
Você consegue visualizar uma árvore enquanto lê a descrição dessa sequência de agrupamentos? É uma árvore filogenética: tem muitos ramos, cada um com sub-ramos, com sub-sub-ramos. As pontas dos menores galhos são as espécies. Os demais grupos – classe, ordem, família, gênero – são os ramos e sub-ramos. Completa, essa árvore representa toda a vida na Terra.
Pense por que as árvores têm tantos ramos. Eles se ramificam. Quando temos suficientes ramos de ramos de ramos, o número total pode ser imenso. É isso que acontece na evolução. O próprio Charles Darwin desenhou uma árvore ramificada na única ilustração de seu famoso livro A origem das espécies. Abaixo você vê uma versão inicial dessa figura, que Darwin esboçou em um de seus cadernos alguns anos antes. No topo da página ele escreveu uma misteriosa mensagem a si mesmo: “Eu acho”. Há outras coisas manuscritas na página, mas são difíceis de decifrar.
Imagine uma espécie ancestral que se divide em duas. Imaginou? Se cada uma dessas duas por sua vez se dividir em duas, teremos quatro. Se cada uma dessas se dividir em duas, teremos oito, e assim por diante: 16, 32, 64, 128, 256, 512… Você pode ver que, se essa duplicação de cada espécie continuar, não demorará que haja milhões delas.
Isso provavelmente faz sentido para você, mas talvez esteja se perguntando por que raios uma espécie se dividiria gerando mais espécies. Bem, na verdade, é mais ou menos pela mesma razão pela qual as línguas se dividem. Aliás, falando em línguas, há uma semelhança entre a evolução das línguas e a evolução das espécies, portanto, antes de continuar, faremos um paralelo com a origem das línguas.
Desmembramento: como as línguas e as espécies se dividem
Segundo o mito judaico da Torre de Babel, antigamente todas as pessoas do mundo falavam a mesma língua. Assim, podiam trabalhar juntas harmoniosamente na construção de uma grande torre, pela qual pretendiam subir até o céu. Deus descobriu e não gostou nada dessa história de todo mundo entender todo mundo. O que mais poderiam aprontar sendo capazes de falar uns com os outros e trabalhar juntos? Por isso, ele decidiu confundir a linguagem deles para que uma pessoa não entendesse a outra. É por essa razão, diz o mito, que existem tantas línguas diferentes, e que, quando as pessoas tentam conversar com gente de outra tribo ou outro país, sua fala geralmente soa como um monte de sons sem sentido.
Embora a lenda da Torre de Babel não seja verdadeira, ela inspira uma pergunta interessante: por que existem tantas línguas?
Assim como algumas espécies são mais semelhantes do que outras e nós as classificamos na mesma família, também existem famílias de línguas. Espanhol, italiano, português, francês e muitos idiomas e dialetos europeus, como romanche, o galego, o occitano e o catalão, são razoavelmente semelhante umas às outras. Juntas, elas são chamadas de línguas latinas. Esse nome provém de sua origem comum no latim, a língua de Roma. Usemos como exemplo uma expressão de amor. Dependendo do país em que você estiver, pode declarar seus sentimentos com uma das seguintes frases: “Ti amo”, “Amo-te”, “T’aimi” ou “Je t’aime”. Em latim, seria “Te amo”, exatamente como em espanhol e português modernos.
Para se declarar no Quênia, Tanzânia ou Uganda, você poderia dizer em suaíli “Nakupenda”. Um pouco mais para o sul, em Moçambique, na Zâmbia ou no Malauí você poderia dizer, na língua chinyanja: “Ndimakukonda”. Em outras línguas chamadas bantas, da África meridional, você poderia dizer “Ndinokuda”, “Ndiyakuthanda”, ou para um zulu, “Ngiyakuthanda”. Essa família das línguas bantas é bem distinta da família das línguas latinas, e ambas diferem muito da família germânica, que inclui o holandês, o alemão e as línguas escandinavas. Veja que usamos a palavra “família” para as línguas, como fazemos para as espécies (a família felina, a família canina) e também, é claro, para nossas famílias (a família Silva, a família Pereira, a família Dawkins).
Não é difícil perceber como as famílias de línguas aparentadas surgiram no decorrer dos séculos. Preste atenção no modo você e seus amigos conversam entre si e compare com o modo como seus avós falam. O modo de falar deles é um pouco diferente, e você pode entendê-los facilmente. É que eles são de apenas duas gerações antes da sua. Agora imagine como seria conversar com o seu 25º avô. Isso poderia levá-lo mais ou menos ao tempo do Descobrimento do Brasil, quando Pero Vaz de Caminha escreveu sua famosa carta ao rei d. Manuel, que incluía o seguinte trecho:
A feiçam deles he serem pardos maneira de vermelhados, de boas rostros e boas narizes bem feitos. Amdam nuus sem nenhuma cubertura nem estimam nenhuma coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas, e estam açerqua disso com tamta jnocemçia como teem em mostrar o Rostro.
Podemos reconhecer a língua como português, mas aposto que todos nós teríamos dificuldade de entender as palavras se fossem faladas por alguém daquela época. Se houvesse uma diferença muito maior do português que usamos atualmente, poderíamos chegar ao ponto de considerar esta uma linha distinta, tão diferente quanto o espanhol do italiano.
Portanto, a língua, em qualquer lugar, muda no decorrer dos séculos. Poderíamos dizer que “deriva” para algo diferente. Além disso, as pessoas que falam a mesma língua e moram e lugares diferentes não têm muitas oportunidades de ouvir umas às outras (ou pelo menos não tinham antes da invenção do telefone, do rádio e da internet), e elas derivam em diferentes direções nos diversos lugares. Isso se aplica ao modo como a língua é falada e também às próprias palavras: repare, por exemplo, nos sotaques carioca, gaúcho e nordestino. Um escocês distingue facilmente o sotaque de Edimburgo do sotaque de Glasgow ou das ilhas Hébridas, três localidades do países. Com o passar do tempo, tanto o modo como a língua é falada como as palavras usadas tornam-se características de uma região, quando dois modos de falar derivaram e se distanciaram muito, dizemos que são diferentes “dialetos”.
Após séculos, os diferentes dialetos regionais por fim se tornam tão díspares que as pessoas de uma região não conseguem mais entender as da outra. Nesse ponto, dizemos que falam línguas separadas. Foi o que ocorreu quando o alemão e o holandês derivaram cada qual numa direção a partir de uma língua ancestral hoje extinta. Ou quando o francês, o italiano, o espanhol e o português derivaram independentemente do latim em suas respectivas regiões da Europa.
Podemos desenhar uma árvore das famílias de línguas, com “primas” como o francês, o português e o italiano em ramos vizinhos e ancestrais como o latim mais abaixo na árvore – assim como Darwin fez com as espécies.
Assim como as línguas, as espécies mudam com o passar do tempo. Antes de entender por quê, precisamos saber como isso acontece. Nas espécies, o equivalente das palavras é o DNA, a informação genética que todo ser vivo possui em sua estrutura e que determina como ele é feito. Quando indivíduos se reproduzem sexualmente, seu DNA é misturado. Chamamos de “fluxo gênico” a migração de membros de uma população para outra região que encontram uma população diferente e nela introduzem seus genes através do cruzamento.
O equivalente da deriva do italiano e do francês, por exemplo, é a diferenciação do DNA de duas populações separadas de uma mesma espécie com o passar do tempo. O DNA de cada uma dessas populações passa a ser cada vez menos capaz de se misturar ao da outra e produzir filhos. Cavalos e jumentos podem acasalar, mas o DNA do cavalo derivou e se distanciou tanto do DNA do jumento que os dois não conseguem mais se entender. Ou melhor, entendem-se de maneira rudimentar – os dois “dialetos” de DNA conversam apenas o suficiente para produzir outro ser vivo, uma mula, mas não para gerar um que seja capaz de procriar: as mulas, como já vimos, são estéreis.
Uma diferença importante entre as espécies e as línguas é que as línguas podem pegar palavras “emprestadas” umas das outras. O inglês, por exemplo, muito depois de se desenvolver como idioma distinto a partir de suas fontes românicas, germânicas e celtas, adotou as palavras “shampoo” do hindi, “iceberg” do norueguês, “bungalow” do bengali e “anorak” do inuíte. Mas as espécies animais nunca (ou quase nunca) voltam a trocar DNA depois de ter derivado o suficiente e perdido a capacidade de se cruzar.
Ilhas e isolamento: o poder da separação
O DNA das espécies, como as palavras das línguas, deriva quando há separação. Por quê? O que inicia a separação? Uma possibilidade óbvia é o mar. Populações de ilhas separadas não se encontram, ou pelo menos não com frequência, por isso seus genes podem derivar para longe um do outro. Assim, as ilhas são extremamente importantes para a origem de novas espécies. Podemos imaginar que uma ilha não é apenas uma porção de terra cercada por água por todos os lados. Para uma rã, um oásis é uma “ilha” onde ela pode viver, cercada por um deserto onde não pode. Para um peixe, um lago é uma ilha. As ilhas são importantes, tanto para as espécies como para as línguas, porque sua população não tem contato com outras populações (o que corta o fluxo gênico no caso das espécies). Com isso, as populações das ilhas ficam livres para evoluir numa direção oposta.
O segundo aspecto importante é que a população de uma ilha não precisa estar isolada para sempre: às vezes, genes podem transpor a barreira que os cerca, seja ela de água ou de terra inabitável.
Em 4 de outubro de 1995, uma esteira formada por toras e árvores arrancadas foi levada pela água e acabou encalhando numa praia na ilha caribenha de Anguilla. Nessa esteira havia quinze iguanas, vivas depois do que parece ter sido uma perigosa jornada partindo de outra ilha, provavelmente Guadalupe, a 160 km de distância. Dois furacões, chamados Luis e Marilyn, haviam assolado o Caribe no mês anterior, arrancando árvores e jogando-as ao mar. Ao que parece, um desses furacões derrubou as árvores em que as iguanas estavam (esses bichos adoram ficar trepados em árvores) e varreu tudo para o mar. Quando chegaram a Anguilla, as iguanas desembarcaram do seu insólito meio de transporte e começaram uma nova vida na praia, alimentando-se, reproduzindo-se e transmitindo seu DNA para gerações futuras, em uma ilha que antes não tinha iguanas.
Sabemos que isso aconteceu porque pescadores do Anguilla viram as iguanas chegar. Séculos antes, embora não houvesse ninguém para testemunhar o fato, quase certamente algo semelhante levou os ancestrais daquelas iguanas para Guadalupe. E quase sem dúvida um acidente parecido explica a presença desses animais em Galápagos, que é para onde vamos agora na nossa história.
As ilhas Galápagos têm uma importância histórica porque provavelmente inspiraram as primeiras ideias de Charles Darwin sobre a evolução quando ele as visitou em 1835, como membro de uma expedição que viajava no navio Beagle. Trata-se de um grupo de ilhas vulcânicas no oceano Pacífico próximo ao equador, quase mil quilômetros a oeste da América do Sul. São todas jovens (surgiram há apenas alguns milhões de anos), formada por vulcões que emergiram do fundo do mar. Isso significa que todas as espécies de animais e plantas dessa ilha vieram de outro lugar, presumivelmente do continente sul-americano, e recentemente, segundo os padrões evolucionários. Ali chegadas, as espécies podem ter feito travessias mais curtas de ilha para ilha, com frequência suficiente para ocupar todo o arquipélago (talvez uma ou duas vezes a cada século), mas não tão raramente que pudessem evoluir à parte – “derivar” – durante os intervalos entre as raras travessias.
Ninguém sabe quando as primeiras iguanas chegaram a Galápagos. Provavelmente vieram em uma jangada de troncos arrancados e impelidos do continente, como os que aportaram em Anguilla em 1995. Hoje em dia, a ilha mais próxima do continente é São Cristóvão (Darwin a conhecia pelo nome inglês Chatham), mas milhões de anos atrás havia também outras ilhas, hoje submersas. As iguanas poderiam ter chegado primeiro a uma das ilhas hoje afundadas, depois feito a travessia até outras ilhas, entre elas as que hoje continuam acima da água. Uma vez ali, tiveram oportunidade de prosperar em um novo lugar.
As primeiras iguanas em Galápagos se diferenciaram de seus primos do continente pela evolução, em parte apenas “derivando” (como as línguas) e em parte porque a seleção natural favoreceu novas habilidades de sobrevivência: uma ilha vulcânica relativamente árida é um lugar muito diferente do continente sul-americano.
As distâncias entre as várias ilhas são bem menores do que a distância de qualquer uma delas até o continente. Assim, a travessia marítima acidental entre as ilhas seria relativamente comum: talvez uma por século em vez de duas por milênio. E as iguanas acabariam por chegar à maioria daquelas ilhas. A travessia para uma nova ilha teria sido um evento suficientemente raro para permitir alguma deriva evolucionária nas diversas ilhas nos intervalos entre as “contaminações” dos genes entre uma travessia acidental e outra: raro o bastante para permitir que as iguanas se desenvolvessem tanto que, quando finalmente reencontrassem uma de outra ilha, não pudessem mais cruzar com ela. O resultado é que hoje existem três espécies distintas de iguana terrestre em Galápagos, as quais não são mais capazes de intercruzamento.
A Conolophus pallidus é encontrada apenas na ilha de Santa Fé. A Conolophus subcristatus vive em várias ilhas, entre elas Fernandina, Isabela e Santa Cruz (a população de cada uma delas pode estar a caminho de se transformar em uma espécie distinta). A Conolophus marithae está confinada ao mais setentrional da cadeia de cinco vulcões da grande ilha Isabela.
Você deve se lembrar de que um lago ou um oásis pode ser visto como uma ilha, mesmo não sendo terra cercada de água, certo? Pois bem: o mesmo vale para os cinco vulcões em Isabela. Cada um está cercado por uma zona de vegetação densa que é uma espécie de oásis separado do vulcão vizinho por um deserto. A maioria das ilhas de Galápagos possui apenas um vulcão grande, mas Isabela tem cinco. Se o nível do mar subir (por causa do aquecimento global, por exemplo), Isabela poderá se transformar em cinco ilhas separadas pelo mar. Atualmente, você pode considerar cada vulcão uma espécie de ilha dentro de uma ilha. É assim que pareceria a uma iguana (ou uma tartaruga gigante) que precisaria se alimentar da vegetação encontrada nas encostas ao redor dos vulcões.
Qualquer tipo de isolamento por uma barreira geográfica que possa ser transposto de vez em quando leva à ramificação evolucionária. Uma vez que as populações tenham derivado o suficiente para não serem mais capazes de cruzar, a barreira geográfica deixa de ser necessária. As espécies podem prosseguir seu caminho evolucionário separadas, sem nunca mais “contaminar” o DNA da outra. Separações desse tipo são a principal fonte das novas espécies que já surgiram no planeta – até, como veremos, da separação original entre os ancestrais das lesmas e os ancestrais de todos os vertebrados, inclusive o homem.
Em algum momento da história das iguanas, ocorreu uma ramificação que conduziu a uma nova espécie muito peculiar. Numa dessas ilhas, não sabemos qual, uma população de iguanas mudou totalmente seu modo de vida. Em vez de comer plantas nas encostas dos vulcões, elas desceram para a praia e passaram a comer algas marinhas. A seleção natural foi então favorecendo os indivíduos que nadavam bem, e hoje seus descendentes têm o habito de mergulhar para se alimentar de algas submersas. São chamados de iguanas marinhas e, diferentemente das iguanas terrestres, não vivem em nenhum lugar fora de Galápagos. Possuem estranhas características que lhes permitem viver no mar, e isso as torna muito diferentes das iguanas terrestres de Galápagos e de todos os outros lugares do planeta. Com certeza evoluíram de iguanas terrestres, mas não são parentes muito próximas das que habitam galápagos atualmente. É possível que tenham evoluído de um gênero mais antigo, hoje extinto, que chegou do continente e colonizou as ilhas muito antes da Conolophus atuais. Em Galápagos existem raças diferentes de iguanas marinhas, mas não espécies diferentes. No futuro, provavelmente essas diferentes raças derivarão o suficiente para serem consideradas espécies distintas do gênero iguana marinha.
A história é semelhante para tartarugas gigantes, lagartos, estranhos biguás que não voam, sabiás, pintassilgos e muitos outros animais e plantas de Galápagos. E o mesmo tipo de coisa ocorre no mundo todo, Galápagos é apenas um exemplo particularmente claro. Ilhas (incluindo lagos, oásis e montanhas) forjam novas espécies. Um rio pode fazer a mesma coisa. Se for difícil para um animal atravessá-lo, os genes nas populações dos dois lados podem derivar, do mesmo modo que uma língua pode derivar formando dois dialetos, que depois podem derivar e se transformar em duas línguas. Cadeias montanhosas também podem desempenhar o mesmo papel de separadoras. E o mesmo podemos dizer da distância pura e simples.
Os camundongos da Espanha podem estar ligados por uma cadeia de camundongos que cruzaram através de todo o continente asiático. Mas demora tanto para um gene variar de um camundongo para outro por essa imensa distância que eles até poderiam ser considerados habitantes de ilhas separadas. E a evolução dos camundongos na Espanha e na China poderia derivar em direções distintas.
As três espécies de iguana terrestre de Galápagos tiveram apenas alguns milhares de anos de evolução para se distanciar pela deriva. Depois de decorridos centenas de milhares de anos, os descendentes de uma única espécie ancestral podem ser tão diferente quanto, digamos, uma barata e um crocodilo. De fato, num passado muito, muito remoto existiu um ancestral das baratas (e de muitos outros animais, entre eles lesmas e caranguejos) que também foi o mais antigo ancestral (o “grancestral”, o mais antigo ancestral que duas ou mais espécies compartilham) dos crocodilos (sem falar de todos os outros vertebrados). Mas teríamos de retroceder muito tempo, talvez mais de 1 bilhão de anos, antes de encontrar um grancestral tão antigo quanto esse. É uma época tão remota que nem podemos supor qual teria sido a barreira original responsável pela separação dos animais. Seja qual for, deve ter ocorrido no mar, pois naqueles tempos longínquos nenhum animal vivia em terra firme. Talvez a espécie grancestral só pudesse viver em recifes de corais, e duas populações tenham ido parar em recifes separados por águas profundas e inóspitas.
Como hoje cientificamente se sabe, para localizar o ancestral comum entre humanos e chimpanzés, teríamos que retroceder cerca de 6 milhões de anos. É recente o bastante para que possamos especular que barreira geográfica poderia ter ocasionado a divisão original. Já foi sugerido que essa barreira foi o vale do Grande Rift, na África, e que os humanos evoluíram do lado leste e os chimpanzés do lado oeste. Mais tarde, a linhagem ancestral dos chimpanzés dividiu-se em chimpanzés comuns e bonobos. Neste segundo caso, a hipótese é de que a barreira foi o rio Congo.
O grancestral de todos os mamíferos sobreviventes viveu há cerca de 185 milhões de anos. Desde então, seus descendentes ramificaram-se muitas vezes, produzindo as milhares de espécies de mamíferos que vemos hoje, incluindo 231 espécies de carnívoros (cães, gatos, doninhas, ursos, etc.), 2.000 de roedores, 88 de baleias e golfinhos, 196 de animais de casco fendido (vacas, antílopes, porcos, veados, ovelhas, etc.), 87 coelhos e lebres, 977 de morcegos, 68 de cangurus, 18 de grandes primatas (incluindo os humanos) e muitas que se extinguiram pelo caminho (incluindo um bocado de espécies humanas, conhecidas apenas por fósseis). Ok, você já deve ter relacionado as coisas: somos todos primos, em menor ou maior grau. E isso é espetacular.
Revolver, selecionar, sobreviver
Em ciência, fala-se muito em reservatório gênico (além de fluxo gênico, que foi mencionado de passagem anteriormente) e agora devemos nos debruçar com mais atenção ao seu significado. Obviamente é impossível que haja literalmente um reservatório de genes. A palavra “reservatório” sugere um líquido no qual os genes poderiam ser revolvidos. Mas os genes só são encontrados nas células dos organismos vivos. Então por que falar em reservatório gênico?
A cada geração, a reprodução sexual causa uma mistura de genes. Você nasceu com os genes de seu pai e sua mãe misturados, o que significa que os genes dos seus quatro avós também entraram na disputa. O mesmo se aplica a todos os indivíduos da população no decurso do longuíssimo tempo evolucionário: milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de anos. Durante esse tempo, o processo de mistura sexual assegura que os genes da população inteira sejam tão misturados, tão revolvidos, que faz sentido falar em um imenso e revolto reservatório de genes: o “reservatório gênico” ou gene pool, em inglês.
Você se lembra da nossa definição de espécie como um grupo de animais ou plantas capazes de cruzar entre si e procriar? Agora já pode ver por que essa definição é importante. Se dois animais são membros da mesma espécie na mesma população, isso significa que seus genes estão misturados no mesmo reservatório gênico. Se dois animais pertencem a espécies distintas, não podem ser membros do mesmo reservatório gênico, pois seu DNA não se mistura pela reprodução sexuada, ainda que vivam na mesma área e se encontrem com frequência.
Quando populações da mesma espécie são geograficamente separadas, seus reservatórios gênicos podem se diferenciar pela deriva genética – a tal ponto que se por acaso tornarem a se encontrar podem não ser mais capazes de se cruzar e procriar. Agora que seus reservatórios gênicos não se misturam mais, esses grupos pertencem a espécies diferentes e podem continuar a se diferenciar por milhões de anos até um dia diferirem tanto quanto um homem e uma barata, por exemplo. A vida na Terra data de, mais ou menos, 3.5 bilhões de anos. Tendo em mente que houve deriva genética o suficiente de lá pra cá (lembre-se da Pangeia, e de como o afastamento dos continentes durante milhares de milhões de anos pôde favorecer a deriva), você esperaria ver algo como isto:
Evolução significa mudança em um reservatório gênico, o que quer dizer que alguns genes se tornam mais numerosos e outros, menos. Genes que antes eram comuns tornam-se raros ou desaparecem por completo. Os que eram raros tornam-se comuns. E o resultado é que a forma, o tamanho, a cor ou o comportamento de membros típicos da espécie mudam. Portanto, a espécie evolui pelas mudanças nos números de genes no reservatório gênico. É isso que significa evolução.
Mas por que os números de genes no reservatório gênico mudam com as gerações? Ora, podemos dizer que o surpreendente seria se não mudassem, pois estamos falando em períodos de tempo imensos. Pense no modo como uma língua muda com o passar dos séculos. Palavras como “vosmecê”, “sinhá”, “cáspite” e interjeições como “macacos me mordam” ficam praticamente aposentadas. Por sua vez, expressões como “tipo assim”, que seriam incompreensíveis duas décadas atrás, hoje são comuns. Assim como “tá” querendo dizer “sim”.
Até agora não precisei avançar muito além da ideia de que os reservatórios gênicos de populações separadas podem derivar e se tornar muito diferentes, como ocorre com as línguas. Mas, na verdade, no caso das espécies ocorre muito mais do que uma simples deriva. Esse “muito mais” é a seleção natural, o processo de suprema importância que foi a grande descoberta de Charles Darwin. Mesmo sem ela, seria de prever que, quando se separassem, os reservatórios gênicos acabassem por se diferenciar pela derivação, só que derivariam a esmo. A seleção natural direciona a evolução, direciona para a sobrevivência. Os genes que sobrevivem em um reservatório gênico são aqueles que têm aptidão para isso. E o que é um gene com aptidão para sobreviver? É aquele que ajuda outros genes a construir corpos aptos para sobreviver e se reproduzir: corpos que sobrevivem por tempo suficiente para transmitir os genes que os ajudaram a sobreviver.
Como eles fazem isso varia de acordo com a espécie. No corpo de aves e morcegos, os genes sobrevivem ajudando a construir asas ágeis. No corpo das toupeiras, os genes sobrevivem ajudando a construir patas dianteiras fortes e parecidas com pás. No corpo dos leões, os genes sobrevivem ajudando a construir pernas velozes, garras e dentes afiados. No corpo de antílopes, os genes sobrevivem ajudando a construir pernas velozes, audição e visão aguçadas. No corpo do bicho-pau, os genes sobrevivem fazendo esse inseto ser quase indistinguível de um graveto. Sejam quais forem as diferenças, para todas as espécies a chave é a sobrevivência do gene no reservatório gênico. Da próxima vez que você encontrar um animal – qualquer um – ou uma planta, diga a si mesmo: isso que estou vendo é uma refinada máquina para transmitir os genes que a construíram. Da próxima vez que se olhar no espelho, pense: eu também.
Colaboração de Matheus.