Traduzido por Julio Batista
Original de John Horgan para o Scientific American
Em uma coluna recente, “Why We’re Still Fighting over Freud” (“Por que ainda estamos brigando por causa de Freud?”, na tradução livre), comentei sobre um debate na Universidade de Nova York sobre o status científico da psicanálise, que Freud inventou há mais de 100 anos. Reiterei meu argumento sobre por que Freud não está morto: sim, a psicanálise é profundamente falha, mas também são falhos todos os outros paradigmas para explicar e tratar a mente, do behaviorismo à psicofarmacologia. Mais tarde, recebi um e-mail do crítico mais perspicaz de Freud, o estudioso literário Frederick Crews, professor emérito da Universidade da Califórnia em Berkeley, EUA. Crews vem refutando Freud com talento há décadas, sendo mais recentemente em Freud: The Making of an Illusion (Metropolitan, 2017; Picador, 2018). Falei bastante sobre Crews em meu livro de 1999, The Undiscovered Mind, em um capítulo intitulado “Por que Freud não está morto”. Eu disse que sua “maneira superficialmente reservada, até tímida, escondia uma feroz determinação e autoconfiança”. Abaixo está a resposta de Crews à minha coluna sobre Freud. – John Horgan
John Horgan e eu podemos traçar nossa conexão desde abril de 1998, quando nos encontramos em New Haven, EUA,, na véspera de uma conferência da Universidade de Yale, “Whose Freud? The Place of Psychoanalysis in Contemporary Culture” (Freud para quem? O Lugar da Psicanálise na Cultura Contemporânea, na tradução livre). Nesse caso, por acaso, a pergunta “Freud para quem?” havia sido estabelecida de antemão: Freud pertencia exclusivamente a seus admiradores. Entre vinte e quatro palestrantes convidados, todos conhecidos por seus pontos de vista sobre a psicologia profunda, eu era o único que duvidava da doutrina psicanalítica.
Lembro-me muito bem de uma parte do evento de dois dias. Minha breve palestra, que pode ser lida em um livro subsequente com o mesmo título (Yale University Press, 2000), foi saudada por gargalhadas anômalas no meio de uma frase. Foi pelo relato de John Horgan sobre o processo que descobri o motivo. Um colega palestrante no palco, o psicanalista e eminente professor de Cornell, Robert Michels, provocou a hilaridade do público fazendo caretas durante minha apresentação.
Sou grato a John por esse pouco de esclarecimento. Desde o início, porém — mesmo antes do início das reuniões de Yale —, ele e eu nos encontramos em desacordo com as afirmações de Freud sobre a mente. Para mim, uma teoria psicanalítica ex-freudiana castigada cientificamente equivalia a uma pseudociência (mais sobre isso abaixo). John, em contraste, já mantinha a posição que recentemente resumiu neste blog.
Naquela ocasião, John estava descrevendo ainda outro debate sobre Freud, este escrupulosamente equilibrado entre dois defensores e dois céticos. John estava relutante em contestar até mesmo as acusações mais prejudiciais dos opositores: que Freud distorceu seus resultados terapêuticos, falsificou suas supostas descobertas e apresentou hipóteses que eram tão vagas e confusas que se tornaram sem sentido operacional. No entanto, ele insistiu que ainda não podemos dispensar Freud.
Duas considerações levaram John a manter firmemente essa opinião desde a década de 1990 até agora. Primeiro, ele notou que uma variedade de figuras dignas, incluindo alguns neurocientistas e também pacientes agradecidos, permanecem leais ao fundador da psicanálise. Este ponto, no entanto, cheira a circularidade. Precisamos indagar se esses obstinados freudianos expressaram independentemente justificativas sólidas para sua lealdade. Nesse sentido, os exemplos que John forneceu recentemente não são tranquilizadores.
Um ex-acadêmico jurídico que sofria de transtornos psicóticos, relatou John, “superou a esquizofrenia com a ajuda da psicanálise e medicamentos” – deixando-nos incertos sobre a contribuição da psicanálise e igualmente inseguros se essa contribuição foi possibilitada por postulados freudianos validados. Mais uma vez, John repassa a citação de um debatedor sobre a cordialidade do vencedor do Nobel Eric Kandel em relação a Freud. Mas a afinidade freudiana de Kandel foi formada em sua pré-científica juventude vienense, e seu brilhante trabalho sobre a base molecular da memória não deve nada à psicanálise. John também se impressiona com a comparação do pesquisador do cérebro Mark Solms de Freud a Newton e Darwin. John sabe que Solms é um psicanalista praticante que, contrariando o procedimento empírico sólido, vasculha dados neurológicos em busca de sinais de convergência com as ideias freudianas que ele dá como aceitas? A suposta disciplina de “neuropsicanálise” de Solms repousa inteiramente sobre essa areia movediça epistêmica.
O outro motivo de John para ser cauteloso com Freud é mais substantivo e amplamente compartilhado, mas não é menos ilógico. Como freudianos mais ávidos do que ele – especialmente o filósofo Jonathan Lear vem à mente – John acredita que a sabedoria psicanalítica é o único recurso restante para aqueles de nós que resistem a um empobrecimento mecanicista e farmacológico da vida mental. “Freud continua vivo”, é citado, “porque a ciência não produziu um paradigma mente-corpo potente o suficiente para derrubá-lo de uma vez por todas”.
A premissa não declarada aqui é que somente Freud oferece uma visão propriamente holística da psique. Se assim for, isso seria surpreendente. Centenas de psicoterapias existentes são acompanhadas por pretensões de sondar as profundezas psicológicas. Por que destacar Freud, que, apesar de sua poesia romântica sobre o fervilhante caldeirão do inconsciente, era ele próprio um determinista e reducionista neurológico? Aos olhos do público leigo, por mais que isso valha a pena, foi o Jung místico e otimista, e não Freud, que monopolizou o mercado psicológico da “busca da alma”.
John pode querer insistir, com Lear, que o modelo psíquico freudiano é singularmente complexo e cheio de nuances. A complexidade, porém, é de valor zero se, como no caso de Freud, for gerada meramente por um rito metodológico. O cartola de truques padrão de Freud, não suas observações, o levou a inverter motivos aparentes, decretar que todo evento mental é uma “formação de compromisso” com causas “sobredeterminadas” e perceber o simbolismo genital, desejos de incesto e homossexualidade latente onde quer que ele colocasse os olhos. O único conhecimento que pode ser extraído de tais práticas com marcas registradas é o conhecimento sobre Freud. Ele concedeu a si mesmo uma licença absoluta para “Freudianizar” sem se preocupar com explicações mais plausíveis, e ele rotineiramente atribuiu erroneamente suas obsessões pessoais a outras pessoas.
É verdade, em todo caso, que devemos nos apegar a proposições psicológicas nebulosas e arbitrárias até que o problema mente-corpo seja definitivamente resolvido? Podemos sentir fortemente, como John, que existem características da psique além daquelas que até agora sobreviveram a testes rigorosos. Mas tanto a ciência quanto a justiça social nos encorajam a garantir, na medida do possível, que proposições infundadas não sejam permitidas para produzir novas inferências. Dentro da memória viva, psicólogos, psiquiatras, educadores, autoridades em educação infantil, juízes e júris tiveram conclusões imprudentes do folclore psicanalítico que mais tarde se descobriu ser puro viés. Ao favorecer uma indulgência especial para Freud, John parece quase acolher uma volta àqueles tempos.
Se eu fosse um jornalista científico, ainda gostaria de tirar lições de Freud, não sobre o inconsciente, mas sobre os ingredientes clássicos de uma pseudociência. Precisamos ter a percepção de que Freud criou a pseudociência mais engenhosa e completa já inventada. Compreender sua lógica escorregadia é estar preparado contra empreendimentos semelhantes que possam acontecer.
Como o falecido filósofo Frank Cioffi sustentou de forma convincente, uma pseudociência pode ser reconhecida não por suas afirmações falsas, mas pelo comportamento de seus proponentes quando uma de suas crenças é refutada ou se mostra vazia. Então os defensores contestarão a refutação, citarão provas imaginárias, caluniarão o crítico, cooptarão a crítica anexando provisões ad hoc à sua doutrina, ou fingirão que sua teoria significava algo completamente diferente.
Freud empregou prolificamente todas as cinco táticas, com o resultado de que, mesmo durante sua vida, o discurso psicanalítico tornou-se uma vasta confusão de contradições, evasivas retóricas e cláusulas de escape. Mas Freud foi ainda mais longe, primeiro invocando regras de interpretação exclusivamente autoconfirmadoras e depois anulando todas as objeções antes de ouvi-las. Ele incluiu, dentro de sua própria teoria, um “diagnóstico clínico” do impulso patológico de “resistir” à verdade psicanalítica. Nem a astrologia, nem o mesmerismo, nem a frenologia jamais se aproximaram desse apogeu da combinação de ilusão e engano.
Os partidários da psicanálise gostam de dizer que estão além de Freud. Claro que sim; conceitos como a inveja do pênis, o orgasmo vaginal, o masoquismo feminino inato e o instinto de morte se desgastaram em sua recepção social. Mas a pergunta a ser feita — e espero que John Horgan finalmente se interesse por ela — é se os analistas enfrentaram a obstinação fatal do método de seu mestre. Eles renunciaram ao avanço de hipóteses por meio de evidências anedóticas egoístas? Eles submetem essas hipóteses a uma revisão evidencial imparcial, ponderando alternativas de fontes não psicanalíticas? Seus institutos de treinamento agora ensinam o método científico em oposição ao evangelho dos líderes locais? E eles estão preparados para contemplar a probabilidade de que todo o edifício freudiano seja um castelo de cartas, ou seja, com alta probabilidade de colapsar? Se não, não precisamos dar mais crédito a nenhuma de suas reivindicações. – Frederick Crews