Por Natália Pasternak e Carlos Orsi
Publicado no The Skeptic
Tradução de Julio Batista
Em seu livro agora clássico de 2016 sobre o uso da negação da ciência como arma política, ‘Lies, Incorporated‘, o jornalista estadunidense Ari Rabin-Havt enfatiza o papel da negação como uma deixa para a inação: enquanto houver incerteza, e como enquanto “a ciência não está de fato estabelecida”, não há “razão” para, por exemplo, agir contra as mudanças climáticas, o tabagismo passivo ou – trazendo a questão mais para o contexto de nossos dias – a COVID-19. Afinal, o que realmente sabemos sobre esses lockdowns arbitrários e covardes? Não seria mais sensato deixar as pessoas continuarem a viver como de costume até que tenhamos mais informações, para não prejudicar a economia por nada?
A resposta, claro, é não – assim que ficou claro que o vírus é transmitido via saliva e gotículas de muco, coisas como máscaras e distanciamento social se tornaram indispensáveis. No entanto, como Rabin-Havt mostra de maneira apropriada, o objetivo principal do negacionista não é estar certo: o que eles realmente querem é nos impedir de agir, ou, mais especificamente, impedir o governo de agir e regulamentar. Manter a polêmica viva preserva o status quo. Ninguém quer ser indevidamente severo diante da incerteza. Vamos parar e esperar.
Sobre o papel da negação científica e até mesmo da mentira descarada sobre a ciência nos Estados Unidos durante a última década, Rabin-Havt escreveu em seu livro que “nossa democracia foi hackeada, manipulada por praticantes políticos que reconhecem que, enquanto não houver verdade, não pode haver progresso”. Esta equação entre negação e paralisação de políticas públicas parece se aplicar muito bem em vários campos (aqui no Brasil, por exemplo, a negação do desmatamento desenfreado na Amazônia mantém a destruição sem punição), mas a atual pandemia destacou pelo menos um campo em que a negação parece equivaler a apelos à ação: saúde. Mais precisamente, o uso de tratamentos não comprovados ou inúteis para uma variedade de condições de saúde.
No Brasil, o mesmo Governo Federal que afirma que os dados sobre o desmatamento são duvidosos e, portanto, o combate à extração ilegal de madeira não deve ser uma prioridade, também vende tratamentos não comprovados, como hidroxicloroquina e ivermectina, contra a COVID-19. Além disso, eles fazem isso com o apoio de médicos que argumentam que esses tratamentos ainda não foram completamente “refutados” pela pesquisa, portanto, usá-los é razoável e desejável.
Nesse caso, então, a negação dos resultados científicos – a disseminação da dúvida sobre o atual consenso científico de que esses medicamentos não são recomendados para a COVID-19 – serve não para paralisar a formulação de políticas públicas, mas para justificar a implementação de um temerário.
O caso de amor do governo brasileiro com a hidroxicloroquina tem sido notado em todo o mundo, mas a associação entre negação de evidência e ação em saúde vai além da crise atual. O argumento “qual é o problema” tão frequentemente usado pelos proponentes de terapias alternativas pode ser interpretado como uma forma de negação proativa.
Os médicos esperam – e são esperados – tratar as pessoas. Isso significa cuidar delas, dar conselhos e, claro, prescrever tratamentos. Com o tempo, a prescrição foi ganhando cada vez mais destaque, e alguns pacientes passaram a se sentir enganados se saíssem do consultório sem receita de comprimido ou tratamento. É claro que essa medicalização não é exclusiva da medicina convencional: é um componente principal da medicina alternativa, na forma de pílulas de açúcar ou energia curativa. Mas a lição importante para o paciente é que o médico/profissional de saúde/curador psíquico está na verdade “fazendo” alguma coisa.
Se o médico simplesmente nos mandar para casa e nos disser para descansar um pouco e beber bastante líquido, ficamos frustrados… e o médico também. Eles também querem ‘fazer’ alguma coisa. Eles se sentem impotentes se não fizerem. Infelizmente, isso pode nos levar ao uso generalizado de todos os tipos de pílulas e intervenções de saúde inúteis. Isso ficou claro em toda a pandemia com o hype da hidroxicloroquina – os médicos se sentiram melhor prescrevendo-a, só para garantir. Eles não queriam ser responsabilizados por omissão caso o tratamento funcionasse.
Surpreendentemente, a noção de que poderia prejudicar o paciente não parecia passar por suas cabeças. O mesmo acontece com a medicina alternativa. E mesmo quando os céticos tentam explicar que essas práticas não funcionam, muitas pessoas apontam que, mesmo que seja apenas um placebo, qual é o problema? O pior que pode acontecer é nada.
Infelizmente, isso não é verdade. O pior que pode acontecer é a morte, e isso acontece com mais frequência do que a maioria das pessoas pensa. Vários estudos mostram que o uso de medicamentos alternativos aumenta os riscos de complicações e morte. Edzard Ernst, em seu livro ‘More Harm Than Good‘, afirma alguns exemplos: a medicina alternativa tem o potencial de realmente matar pacientes diabéticos, os conselhos dados a pacientes asmáticos por quiropráticos têm o potencial de causar danos graves e os médicos antroposóficos geralmente aconselham os pacientes a não se vacinarem, o que pode causar graves crises de saúde pública, como surtos de sarampo. Como estamos vendo agora, especialmente, o conselho dos antivacinas pode ter consequências graves.
Estudos publicados no JAMA Oncology também mostram risco aumentado de morte para pacientes com câncer que usam medicina alternativa, geralmente porque abandonam, total ou parcialmente, o tratamento regular.
Tratamentos médicos não comprovados e contestados para COVID-19, como hidroxicloroquina, ivermectina, nitazoxanida, foram amplamente prescritos no Brasil durante a pandemia, porque os médicos querem prescrever algo e acabam prescrevendo qualquer coisa. E provavelmente acreditam realmente que, se não estão ajudando, pelo menos não estão fazendo mal.
Assim como no caso geral da medicina alternativa, isso não é verdade. Esses medicamentos têm o potencial de prejudicar o paciente diretamente, por causa dos efeitos colaterais, e indiretamente, por criar uma ilusão de segurança. A pessoa está medicada, e sente-se segura para se reunir com a família, esquece de usar máscaras e de outras medidas preventivas.
Resumindo, ser proativo pode ser uma coisa boa. Mas não fazer nada é melhor do que fazer algo estúpido. É até um velho clichê da sabedoria médica: em primeiro lugar, não faça mal. Esse é o verdadeiro “conhecimento tradicional” de que precisamos agora.