Quem somos nós é um documentário de autoajuda e pseudociência que distorce os principais conceitos da mecânica quântica. Uma pessoa que não tem noção alguma dos princípios da teoria quântica pode acabar acreditando no documentário por falta de informação e pensamento crítico. De fato, para um leigo, que não estudou disciplinas de cálculo avançado, de geometria e de física moderna, é praticamente impossível distinguir a ciência da pseudociência. Contudo, proponho escrever esse texto com a intenção de expor os principais pontos de desinformação promovidos pelo documentário e contribuir para a alfabetização científica do meu país.
Inicialmente, o problema do documentário consiste em misturar coisas que são, a princípio, incompatíveis, como a questão da ciência com a espiritualidade. Um outro ponto é tratar de assuntos pertinentes à investigação filosófica e neurocientífica com base em uma deturpação dos conceitos de consciência e mente.
Quando o documentário propõe a discussão sobre o problema da consciência, ele não está fazendo com base em neurociência, mas com pseudociências e crenças esotéricas da Nova Era e, ao fazê-lo assim, conduz o telespectador ao engano. Em primeiro lugar, a mecânica quântica não tem nada a dizer sobre a espiritualidade, a consciência ou a meditação. A quântica é uma teoria física que lida com coisas menores do que átomos, como partículas elementares, campos, etc. A teoria quântica tenta descrever aspectos imperceptíveis à experiência cotidiana, como os constituintes básicos do universo, utilizando tecnologia adequada para observá-los. Em outras palavras, nenhuma pessoa é capaz de observar em sua vida cotidiana, sem o auxílio de instrumentação adequada, coisas como elétrons, fótons e outras partículas elementares. Em segundo lugar, a ciência ainda não pode explicar o que é a “consciência”; o que cientistas têm são hipóteses mais ou menos compatíveis com a psicologia e a neurociência do momento sobre como emergem nossas experiências subjetivas – ou simplesmente o que nos tornam únicos.
Quem são os “especialistas” do documentário?
Muitas pessoas pensam que o documentário é produzido por uma comunidade de físicos respeitados e com ideias fortemente baseadas em evidência, mas isso é falso. Na verdade, o documentário é apresentado por um ex-padre que pregava o evangelho do irmão gêmeo de Jesus, um médico que acredita “curar” homossexuais, um terapeuta que exerce uma terapia não reconhecida pela ciência, um médium que alega ser praticante de levitação, uma mulher que diz receber um cara morto há 35.000 anos em seu corpo e, de maneira surpreendente, um físico sério enganado pelos discípulos dessa seita maluca.
Quem somos nós em poucas palavras
O documentário faz uma série de alegações equivocadas sobre a mecânica quântica para defender um conjunto de crenças da Nova Era, por exemplo:
- a física quântica diz que a realidade não é fixa – partículas elementares só passam a existir quando são observadas;
- a mente tem um enorme potencial, mas só usamos uma pequena parte dela para o pensamento consciente e perdemos muito do que está acontecendo ao nosso redor;
- se a sua mente é o “observador”, você deve ser capaz de escolher qual das muitas realidades possíveis em torno de você podem existir – você pode criar sua própria realidade.
Todas essas alegações parecem ser boas demais para serem verdadeiras. Contudo, nem tudo que parece é realmente verdade.
O efeito do observador
Amit Goswami, guru das crenças da Nova Era, afirma que “a mecânica quântica calcula apenas possibilidades. Quem ou que escolhe entre essas possibilidades para trazer o evento real da experiência? A consciência deve estar envolvida. O observador não pode ser ignorado”. Contudo, isso não está correto.
O efeito do observador na mecânica quântica não é sobre a consciência das pessoas. O efeito do observador é do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que determina que não podemos medir a posição e o momento das partículas simultaneamente. Heisenberg mostrou que você pode obter de maneira precisa um ou outro resultado, mas nunca ambos simultaneamente. Então, no contexto da teoria quântica, o “observador” pode ser melhor descrito como “aparato de medição” em vez da consciência ou do pesquisador que está anotando os resultados.
Além da existência de partículas
Jeffrey Satinover, que é psiquiatra, diz que “a realidade física é absolutamente uma rocha sólida, que só passa a existir quando batemos contra outro pedaço de realidade física – como nós ou uma pedra”.
Essa ideia pressupõe que a realidade depende do sujeito para existir e, portanto, coloca os seres humanos novamente no centro do universo em nível de importância. Isso não é verdade. Em primeiro lugar, evidências paleontológicas mostram que existiam dinossauros e outras espécies de animais antes da existência de seres humanos. Em segundo lugar, evidências astronômicas mostram que existem objetos no universo mais antigos do que o próprio tempo de vida da espécie humana. Os astrônomos conseguem calcular a velocidade e o tempo com que a luz de objetos distantes leva para chegar até a Terra. Em terceiro lugar, as partículas estão constantemente interagindo umas com as outras, principalmente no interior de estrelas, como o Sol, onde ocorrem reações termonucleares. Os físicos sabem que essas reações físico-químicas estão ocorrendo constantemente, sem que existam seres humanos olhando para elas – e supondo que alguém realmente decida olhar para o Sol com um telescópio, a pessoa certamente ficará cega.
Fred Alan Wolf diz que “as partículas aparecem e desaparecem – para onde vão quando não estão aqui? Uma resposta possível: elas vão para um universo alternativo onde as pessoas estão fazendo a mesma pergunta: ‘onde elas foram?'”.
A verdade é que as partículas não estão indo para lugar algum. O que os físicos assumem é que as partículas são “flutuações”, ou seja, as regras da física dizem que é perfeitamente normal que elas existam em algum momento e/ou lugar e depois inexistam em outro momento e/ou lugar.
Eles estão errados sobre a mente perceber a realidade
Joseph Dispenza, que é quiroprático, diz que “sua mente não pode dizer a diferença entre o que você vê e o que você se lembra”.
É verdade que os exames de PET e MRI revelam que a mesma parte do cérebro é ativada sempre que você olha algo ou apenas lembra de alguma coisa. Contudo, é um grande salto lógico dizer que o cérebro não sabe a diferença entre a visão e a memória.
O cérebro não surgiu ontem. Há algumas pistas contextuais, por exemplo, quando as pálpebras estão abertas ou fechadas, o cérebro pode perceber alguma coisa simplesmente vendo ou lembrando algo. E tem o fator escalar: a atividade cerebral fica muito mais forte quando a pessoa está vendo alguma coisa do que quando está lembrando algo, de acordo com o que foi observado por neurocientistas.
Andrew Newberg, que é médico radiologista, diz que “nosso cérebro recebe 400 bilhões de bits por segundo de informação, mas só somos conscientes de 2000 bits por segundo. A realidade está acontecendo a todo tempo no nosso cérebro – estamos recebendo a informação, mas ela não está sendo integrada”.
Os valores são um pouco flexíveis, mas a ideia de que só somos “conscientes” apenas de uma fração da nossa atividade cerebral é correta e um imenso alívio.
O que pode ser pior do que estar ciente de cada pequeno detalhe que nosso cérebro recebe – desde os níveis de fosfato até a taxa cardíaca e o crescimento capilar. Em analogia, é como ser o presidente de uma gigantesca empresa e escutar o que cada funcionário está fazendo a cada minuto todo o dia.
O único problema com a afirmação de Andrew Newberg é a sugestão de que nosso inconsciente está fazendo coisas realmente interessantes e que estamos, de alguma forma, perdendo tudo isso. Então, se pudéssemos aproveitar o outro zilhão de gigabits poderíamos ser os mestres do nosso destino. No entanto, a verdade é que ninguém tem como testar essa hipótese e mensurar seus possíveis efeitos.
Candace Pert, ex-cientista e atual guru da Nova Era, diz que “só podemos ver o que é possível – os índios americanos nas ilhas caribenhas não puderam ver os navios de Colombo (ao horizonte) pois estavam além do conhecimento deles”.
É difícil apontar em qual parte Candace Pert está sendo desonesta sobre se os índios americanos viram ou não quando Colombo e o seu pessoal atingiram o horizonte. Certamente, Colombo não falava a língua local e os índios não deixaram registros escritos. Contudo, ela estava certa sobre nós não vermos coisas na frente de nossos olhos se não estamos olhando para aquilo. Um experimento clássico sobre processamento visual pediu para pessoas assistirem um vídeo com 6 pessoas passando uma bola de basquete e, em seguida, pressionarem um botão cada vez que um time em particular passar a bola. Invariavelmente, só metade das pessoas notou uma mulher vestida de gorila caminhando no meio da tela durante o jogo.
Eles estão errados sobre a mente afetar a realidade
O documentário fornece dois exemplos de experimentos que mostram o suposto efeito da mente sobre a realidade. Contudo, nenhum dos experimentos confirma essa hipótese.
Efeito da meditação no crime violento em Washington, EUA
John Hagelin descreve um estudo em que ele fez em Washington, EUA, em 1992. No estudo, 4000 voluntários meditaram regularmente para atingir uma redução de 25% no crime violento no final do verão. O autor do estudo afirma que a redução foi atingida. Contudo, o uso do termo “atingida” para Hagelin é um pouco forte. Ele anunciou em 1994, um ano após o estudo, que a redução no crime violento foi de 18%. O telespectador pode pensar que houve 18% menos crimes do que o ano anterior, mas a redução foi relativa ao crescimento previsto por meio de um elaborado trabalho estatístico. Indicadores regulares do crime violento mostram uma versão diferente: o número de assassinatos na verdade aumentou.
A meditação pode não ter ajudado as vítimas do crime violento, mas ajudou Hagelin a ganhar em 1994 o prêmio Ig Nobel da Paz.
O poder dos pensamentos na água
Um seguidor de Masaru Emoto diz que “se pensamentos podem fazer isso com a água, imagina o que nossos pensamentos podem fazer conosco”.
Masaru Emoto costuma fotografar cristais formados em água congelada. De acordo com os seus livros, quando a água é exposta com palavras de carinho, ocorre um tipo de padrão brilhante e bonito, enquanto que a água que é exposta aos pensamentos negativos forma um padrão incompleto e feio. Essas fotos são belas como obras de arte, mas não tem nada de ciência.
Se você gostaria de estudar o impacto dos sentimentos em forma de ações, desenhos ou escritos na suposta formação de cristais na água congelada, você terá que fazer um estudo rigoroso. Para começar, você teria que tirar um monte de amostras de diferentes partes de cada tipo de gelo e fazer o estudo sem saber o que foi “dito” para cada tipo de água para evitar que suas opiniões pessoais não influenciem os resultados.
O cético e ilusionista James Randi, famoso por desmascarar supostos médiuns e paranormais como Uri Geller, ofereceu o prêmio clássico de 1 milhão de dólares em dinheiro para o Masaru Emoto replicar o experimento com o objetivo de alcançar os mesmos resultados. Até agora, o Emoto não aceitou o desafio. Em compensação, ele acabou de lançar o seu terceiro livro de fotos de cristais bonitinhos.
Quem somos nós importa? É apenas um documentário!
Quando você percebe que muitas pessoas estão conversando sobre um assunto é o momento de buscar informações. Contudo, quando você percebe uma quantidade enorme de informações distorcidas para tentar adequar à moldura de sua vida, as coisas começam a ficar um pouco mais confusas: é nessa hora que você deve checar os fatos!
Referências
- HOBBS, Bernie. What the bleep are they on about? ABC Science, 2005. Disponível em: <http://www.abc.net.au/science/articles/2005/06/30/2839498.htm>.
- KUTTNER, Fred & ROSENBLUM, Bruce. Teaching physics mysteries versus pseudoscience. Physics Today, 2006. Disponível em: <https://doi.org/10.1063/1.2435631>.
- REIS, Widson. O Guia Cético para assistir a “What the Bleep do We Know?” O Dragão da Garagem, 2006. Disponível em: <http://dragaodagaragem.blogspot.com/2006/11/o-guia-cetico-para-assistir-what-bleep.html>.
- WILSON, Elizabeth. Review: What the Bleep Do We Know!? Reel Science, 2005. Disponível em: <http://pubsapp.acs.org/cen/reelscience/reviews/whatthe_bleep/?>.
- ———-. The minds boggle. The Guardian, 2005. Disponível em: <https://www.theguardian.com/science/2005/may/16/g2.science>.