Em sociedade, criamos leis e normas com o objetivo de preservar o progresso funcional da população, que naturalmente apresenta certo nível de heterogeneidade cultural e religiosa. O senso de comunidade, entretanto, pode ser perturbado pela convergência entre valores puramente legislativos e aqueles de origem dogmática, que normalmente são característicos de apenas uma fração dos componentes deste sistema(1). Em tal contexto, o secularismo é um princípio que apresenta, essencialmente, duas proposições: a completa separação entre estado e instituições religiosas, e a igualdade de direitos para pessoas de diferentes crenças e religiões(2).
Dados sugerem que 81% da população britânica acredita que a prática religiosa é uma questão pessoal e deve ser separada da vida política e econômica do país. Destes, 76% concordam que líderes religiosos não deveriam influir no processo eleitoral. Além disso, 71% dos entrevistados é contra a participação de líderes religiosos nas decisões do governo(3). Nota-se, entretanto, que a atuação implícita (e explícita) dessas organizações no âmbito das políticas públicas se mantém resiliente, permeada por entre nuances e brechas legislativas. O simples fato de um representante popular se mostrar abertamente religioso compeli-lo-á a posicionar-se em favor de leis amigáveis a princípios inerentes a si e a seus representados.
A inserção, na lei, da moralidade pregada por grandes instituições religiosas, torna díspar o conhecimento e acesso a outras formas de cultura e crença, ou mesmo a ausência de uma. Atualmente (em 2015), mais de 90% (491 de 535) do congresso americano se declara cristão (exempli gratia, protestantes, católicos e mórmons), enquanto que o restante dos parlamentares é pertencente a outras religiões de larga abrangência (Judeus, Budistas, Muçulmanos e Hindus). De forma semelhante, cerca de 90% do senado americano é também composto por cristãos autodeclarados(4). A polaridade religiosa encontrada no sistema político norte-americano é espelhada em diversos países do mundo, e se torna um indubitável fardo na tomada de decisões sobre direitos cívicos, como o aborto(5) e a eutanásia(6), e no desenvolvimento da ciência/(bio)tecnologia, retardando pesquisas com células-tronco(7) e engenharia genética(8).
Uma das características regularmente comuns a indivíduos que seguem ideais seculares é a busca por educação, formal ou informal, como uma ferramenta para o desenvolvimento de pensamento e análise crítica. De fato, resultados de um estudo populacional nos Estados Unidos indicam que a educação formal afeta negativamente o engajamento religioso(9). E dados recentes, coletados através de avaliação da população canadense, corroboram com a noção de que o nível de escolaridade atenue substancialmente a possibilidade de que um indivíduo se identifique com tradições religiosas comuns(10). O desenvolvimento de tecnologias de aprendizado mais acessíveis e o aumento do acesso à informação são, portanto, fatores-chave na propagação de valores seculares, que crescem exponencialmente nas últimas décadas, propelindo a criação de organizações e mobilizando milhares de pessoas em defesa de leis livres de viés religioso(11).
Carl Sagan, astrofísico, autor e divulgador científico norte-americano escreve, em seu livro “Os dragões do Éden”:
“Observamos hoje no Ocidente (mas não no Oriente) o ressurgimento do interesse por doutrinas vagas, anedóticas e muitas vezes experimentalmente errôneas que, se verdadeiras, anunciariam pelo menos um universo mais interessante, mas também que, se falsas, implicam um descuido intelectual, uma ausência do espírito de luta e um desvio de energias não muito promissor para nossa sobrevivência.”
Os dragões do Éden, pg. 179(12).
O livro, ganhador do prêmio Pulitzer de 1977, retrata um panorama atual, onde apesar da difusão de conhecimento e valores seculares, observa-se o resgate de doutrinas improdutivas ou pouco compreensivas, que são incapazes de prover resultados factuais e muitas vezes estão associados a práticas religiosas. Entre 2000-2012, o Centro Nacional para Medicina Alternativa e Complementar, um subdepartamento do Escritório de Medicina Alternativa dos Institutos Nacionais de Saúde (em inglês National Institutes of Health ou NIH/EUA), concedeu mais de $ 76 milhões de dólares a escolas médicas com o intuito de propagar o ensino/pesquisa de terapias alternativas e complementares (TAC), que muitas vezes são originárias de tradições ascéticas. Além disso, a publicação dos resultados de ensaios clínicos utilizando TAC é um evento raro, dificilmente feito em revistas de alto impacto acadêmico com rígido sistema de revisão por pares. Apesar disso, o NIH disponibilizada, anualmente, milhões de dólares para pesquisas médicas incapazes de sedimentar evidências na literatura científica(13).
Um dos propósitos da política secular é concentrar a utilização de recursos públicos em áreas fundamentais ao desenvolvimento social, como a educação, saúde e seguridade, permitindo o florescimento de qualquer crença ou tradição cultural em um ambiente imparcial. Segundo Fink (2008), a ação de instituições privadas, decisões partidárias e interesses econômicos são justificativas rudimentares para a rigidez de leis referentes a pesquisa embrionária. Sob análise quantitativa, fatores culturais são considerados a variável mais significativa para o fenômeno e, segundo o autor, sociedades prevalentemente católicas legislam de maneira mais rígida sobre o assunto. Fink destaca que, embora a extrapolação desses dados seja uma questão empírica, “…existem boas razões para suspeitar que a influência religiosa ainda é a força que políticas publicas comparativas devem levar em conta.”(14).
Dados da British Social Attitudes indicam que, em 1985, cerca de 64% da população britânica se declarava cristã, e apenas 34% dos indivíduos não era vinculado a instituições religiosas. Em 2012, porém, observa-se uma inversão significativa nos parâmetros de religiosidade populacional, onde o número de cristãos decai (id est, 46%), enquanto o de indivíduos não religiosos cresce para 48%(15). É tentador, dessa forma, especular que o futuro da sociedade britânica seja voltado para valores mais abrangentes, uma fuga após séculos de prevalência religiosa e política do catolicismo no país. De fato, o Reino Unido ocupa atualmente a 1ª posição no ranking mundial de educação. Além disso, o país é considerado o 3º melhor do mundo segundo pesquisa do projeto Best Countries(16). Embora seja simplista propor uma relação de causalidade, dados têm apontado para um forte impacto da educação sobre a desvinculação de princípios religiosos(9,10).
Em contrapartida ao receio de grupos ascéticos, especialmente aqueles cujo envolvimento político é intrínseco, os seculares não procuram suprimir os direitos ou a praxis religiosa, mas permitir a todos o acesso a normas plurais e transparentes, capazes de suprir sem oprimir, prover sem tomar, proteger sem ferir. Segundo o ilustre escritor Robert A. Heinlein, “Quase toda seita, culto, ou religião irá legislar seu credo na lei se obtiver o poder político para fazê-lo.”(17). Em uma sociedade secular, portanto, o conhecimento e a autocrítica devem ser pilares, para que possamos livrar dos ombros o fardo da ignorância.
Referências
1. Berger BL. Belonging to Law: Religious Difference, Secularism, and the Conditions of Civic Inclusion. Osgoode Legal Studies Research Paper Series No. 16/2014, Vol. 10, No. 5, 2014.
2. National Secular Society. Facts and figures on religious belief, secularism and values. Disponível em: www.secularism.org.uk/data.html. Acesso em: 24/07/2016.
3. National Secular Society. What is Secularism? Disponível em: www.secularism.org.uk/uploads/what-is-secularism.pdf. Acesso em: 24/07/2016.
4. Pew Research Center. Faith on the Hill: The Religious Composition of the 114th Congress. Disponível em: http://www.pewforum.org/2015/01/05/faith-on-the-hill/. Acesso em: 24/07/2016.
5. Clements B. Religion and Abortion. Chapter: Religion and Public Opinion in Britain. pp 127-163, 2015. doi: 10.1057/9781137313591_5.
6. Moulton B, Hill TD and Burdette A. Religion and Trends in Euthanasia Attitudes among U.S. Adults, 1977–2004. Sociological Forum, Volume 21, Issue 2, pp 249-272, 2006.
7. Zahedi-Anaraki F and Larijani B. Stem Cells: Ethical and Religious Issues. Bioethics in the 21st Century, InTech, November 25, 2011. doi: 10.5772/19298.
8. Dragojlovic N and Einsiedel E. Playing God or just unnatural? Religious beliefs and approval of synthetic biology. Public Understanding of Science 22(7) 869–885, 2012.
9. Arias-Vazquez FJ. A note on the effect of education on religiosity. Economics Letters 117, 895–897, 2012.
10. Hungerman DM. The effect of education on religion: Evidence from compulsory schooling laws. Journal of Economic Behavior & Organization 104, 52–63, 2014.
11. The Reason Rally Coalition. About. Disponível em: http://reasonrally.org/about/. Acesso em: 24/07/2016.
12. Sagan C. Os Dragões do Éden. Random House 1st Ed., 1977.
13. Mielczarek EV and Engler BD. Selling Pseudoscience: A Rent in the Fabric of American Medicine. Skeptical Inquirer Volume 38.3, May/June 2014.
14. Fink S. Politics as Usual or Bringing Religion Back In? The Influence of Parties, Institutions, Economic Interests, and Religion on Embryo Research Laws. Comparative Political Studies Volume 41, Number 12, 1631-1656, 2008.
15. British Social Attitudes. Explore the British Social Attitudes survey. NatCen Social Research, 2015 Edition. Disponível em: http://www.bsa-data.natcen.ac.uk/#morality. Acesso em: 25/07/2016.
16. U.S. News Best Countries. Best Countries for Education. Disponível em: http://www.usnews.com/news/best-countries/education-full-list. Acesso em: 25/07/2016.
17. Goodreads. Robert A. Heinlein. Disponível em: www.goodreads.com/author/show/205.Robert_A_Heinlein. Acesso em: 24/07/2016.