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Racionalidade e Política

Frente a recente onda de irracionalidade motivada por questões políticas, é extremamente necessário que se divulgue ferramentas para que essas questões tão importantes para todos nós sejam discutidas de maneira racional e objetiva. Esse texto se dividirá em duas partes: a primeira parte se encarregará de tentar entender por que há tanto fanatismo e irracionalidade nas discussões de cunho político e social, e a segunda parte se encarregará de fornecer algumas dicas para que possamos discutir mais racionalmente esse tema e não cairmos no fanatismo.

I – Por que o fanatismo?

Primeiramente, tentarei expor alguns motivos que impulsionam a polarização de opiniões e a onda de fanatismo. A saber:

  • O viés de confirmação

É muito bem documentada a tendência das pessoas de procurarem informações que condizentes com suas crenças prévias e prestar atenção apenas nos fatos que confirmem essas crenças. Essa tendência é conhecida como viés de confirmação, um tipo de viés cognitivo. Por exemplo, se uma enfermeira que trabalha em uma maternidade acredita que nascem mais bebês durante a Lua cheia, ela irá prestar mais atenção nas noites de Lua cheia em que nascem mais bebês, ignorando quando não nascem. O viés de confirmação é a principal origem das crenças supersticiosas, e também, da polarização ideológica.

  • Bolhas ideológicas

Como consequência do viés de confirmação, se forma as chamadas bolhas ideológicas. É tendência natural das pessoas se agruparem com outras pessoas com gostos e opiniões parecidas com as suas, o que não tem problema nenhum à princípio. O problema é quando a pessoa limita seu círculo de relações somente a quem pensa parecido com ela. Também, a pessoa tende a seguir somente veículos de mídia e formadores de opinião com os quais ela já concorda, dessa maneira, gente de esquerda tende a acompanhar publicações de esquerda, e gente de direita tende a acompanhar publicações de direita. Para o de esquerda (direita), as publicações de direita (esquerda) são mentirosas e manipuladoras, enquanto as publicações de esquerda (direita) são isentas e verídicas. Dessa maneira, veículos de mídia e formadores de opinião aglomeravam em torno de si as pessoas que seguem aquela linha de pensamento, e formam um séquito. As consequências são a polarização de opiniões, o fanatismo e a intolerância.

Enquanto a rede de conhecidos se limitava a o círculo familiar e de amigos, era muito propício a formação dessas bolhas ideológicas. Com o advento da internet, tivemos uma oportunidade como nunca antes na história da humanidade, de ter acesso a informação e conviver com pessoas das mais variadas orientações de pensamento. Tínhamos oportunidade de um ambiente plural necessário para o exercício do livre pensamento e a emergência de um mundo mais plural.

No entanto, o que ocorreu foi o contrário. As pessoas limitaram sua lista de contatos em redes sociais somente àqueles que pensam de forma parecida. Vimos muito isso nas últimas eleições, em que várias amizades foram desfeitas entre pessoas que apoiavam candidatos diferentes. Essa tendência é intensificada pelo que o pesquisador Eli Pariser chama de “Filtro Bolha, os algoritmos que sites de busca e redes sociais utilizam que tornam mais visíveis para o usuário somente informações e conteúdos de acordo com os interesses e crenças deste. Segundo Eli Pariser “O filtro bolha tende a amplificar dramaticamente o viés de confirmação. De certa forma, ele é feito para isso. Consumir informações que corroborem com suas ideias de mundo é fácil e prazeroso; consumir informações que nos desafiem a pensar de novas formas ou questionar nossas presunções é frustrante e difícil”. As consequências disso é que as opiniões tendem a ficar mais polarizadas e os usuários mais extremistas.

  • Ignorância racional e irracionalidade racional

A teoria da ignorância racional e da irracionalidade racional está muito bem explicada nos textos “Por que as pessoas são irracionais sobre política? e no texto Por que políticos ruins se reelegem?”, e, portanto, não me alongarei aqui discutindo esse tema. Mas resumidamente, o termo ignorância racional vem da teoria econômica da escolha pública. Ele se refere ao fato que muitas vezes os custos de colher informações para embasar uma decisão excedem os ganhos. Para exemplificar, no caso de eleições, o custo para um eleitor de pesquisar candidato por candidato excede em muito o ganho individual, já que o voto individual dificilmente vai alterar o resultado das eleições. Por isso que aqueles políticos que já tem visibilidade e reputação (mesmo que má) acabam se elegendo, pois é mais cômodo para os eleitores votarem em quem já conhecem (mesmo sabendo que é um patife) do que pesquisar novos nomes.

Já o termo irracionalidade racional se refere ao fato que muitas vezes, as pessoas pensam irracionalmente por que é de seu interesse pensar assim. Esse conceito vem da distinção entre dois tipos de racionalidade: a racionalidade instrumental (o que eu preciso fazer pra alcançar um determinado objetivo) e a racionalidade epistêmica (pensar de maneira logicamente consistente e com boas evidências empíricas). Resumindo: se for vantajoso para alcançar determinado objetivo, eu pensar de maneira ilógica, então pensarei de maneira ilógica.

  • O debate político é dominado por ideólogos

Por fim, segue o fator que eu considero mais grave, porque se aproveita dos fatores anteriormente descritos. Os principais formadores de opinião são ideólogos. Por ideólogos, eu me refiro àqueles que têm compromisso antes com um projeto político/ideológico do que com os fatos. O ideólogo faz uso do viés de confirmação, para ele os únicos fatos relevantes são aqueles que se encaixam na sua concepção ideológica de mundo, ou que são uteis para o seu projeto político/ideológico. Os que não se enquadram são ignorados ou se faz um malabarismo argumentativo para que eles possam se enquadrar.

Outra marca do ideólogo é a relativização de valores, em que bem e mau, certo ou errado, verdade ou falsidade; depende de quem faz. Quando alguém da tribo ideológica deles comete algo que ele condena na tribo “inimiga”, ele relativiza/releva/ignora/nega.

Não que não existam estudiosos sérios debatendo questões políticas, mas o alcance deles é muito reduzido. Para a maioria das pessoas, segundo os conceitos de ignorância racional e irracionalidade racional, é mais fácil consumir análises rasas e terceirizar o pensamento. E dessa maneira, os ideólogos reúnem um verdadeiro séquito em torno de si, e insufla um sentimento de “nós x eles”, partindo para a total desumanização do adversário.

O objetivo dos ideólogos é ficar em evidência para que sua mensagem atinja o maior número de pessoas possíveis. Por isso, ele está pouco preocupado com a consistência lógica e compatibilidade com os fatos da mensagem que ele divulga, já que ele sabe que tem um séquito que irá aceitar à priori tudo que ele diz. Também ele sabe que tem os haters, aqueles que irão rejeitar à priori tudo que ele diz. Das duas formas, agradando seus seguidores e irritando seus haters, ele consegue visibilidade.

Quem mais se prejudica com essa polarização são aqueles que assumem posições mais moderados, pois recebem ataques dos extremistas dos dois lados. A racionalidade leva a moderação, a entender que não existem respostas finais e soluções fechadas para a maioria dos problemas. Se você tende a uma posição mais de centro, acaba sendo “acusado” de esquerdista pelos extremistas de direita, e de direitista pelos extremistas de esquerda.

II – Como podemos debater racionalmente?

Agora que vimos algumas das causas para tanto fanatismo, darei algumas sugestões para aqueles, que antes de qualquer posicionamento político/ideológico, valorizam a razão, a evidência e o livre pensamento.

  • Saia das bolhas ideológicas

Como vimos limitar sua rede de contatos somente àqueles que pensam de maneira parecida conosco, e seguir veículos de comunicação e formadores de opinião, com os quais já tendemos a concordar, reforça o viés de confirmação. Se nos isolarmos em bolhas ideológicas, nunca iremos ter oportunidade de confrontar nossas opiniões e assim, não saberemos quão boa elas são.

Sair das bolhas ideológicas também é importante pra percebemos que quem pensa diferente não necessariamente é algum tipo de monstro, ou algum imbecil. Entender as razões que levam a pensar daquela maneira, mesmo que não concordemos, é importante para não desumanizar o adversário. Em minha opinião, a internet contribuiu muito para essa desumanização do diferente, pois nas discussões cara a cara, é mais fácil desenvolver empatia, enquanto que nas virtuais, o que temos é um perfil, e aí é mais difícil medir o impacto do que falamos sobre as outras pessoas.

  • Procure diversas fontes de informação

Quando se trata de política, sejamos realistas: não existem veículos de informação isentos! Os interesses envolvidos são muitos, e os veículos de mídia sempre vão dá informações que favoreçam um lado e comprometam outro. O pior é que muitos consideram os veículos de mídia que se posicionam contrariamente a linha que eles defendem como tendenciosos e mentirosos, enquanto que aqueles que se posicionam na mesma linha como confiáveis e isentos.

O que aqueles que valorizam opiniões formadas com base em evidências devem fazer quanto a isso? O volume de informações que nos chegam é muito grande, e é humanamente impossível verificar a veracidade de todas elas. A recomendação que eu dou é: acompanhe veículos de mídia das mais variadas orientações, pois já que todos tem um lado, procure reconhecer aquele que é mais coerente em relação aos fatos. Como vimos os ideólogos não estão preocupados com a coerência dos seus argumentos, apenas em defender um discurso ideológico. Se um veículo de mídia, a despeito de sua orientação ideológica, é coerente em seus argumentos, isso mostra que ele é confiável.

  • Admita sua própria ignorância

Frequentemente somos intimados a nos posicionar pelos extremistas, e quem prefere manter a cautela é logo rotulado pejorativamente de “insentão”. Lembre-se: a ignorância pode ser uma bênção! Muitas das questões debatidas (como a do impeachment) exigem conhecimentos especializados de direito, sociologia, economia, história, ciência política, etc. É melhor ser “insentão” e admitir que você não tem competência de julgar certas coisas pra formar uma opinião embasada do que repetir clichês ideológicos prontos e seguir manadas.

  • Esteja disposto a mudar de opinião

Não há problema nenhum em defender causas políticas e sociais, pelo contrário, isso é muito nobre. Mas não podemos nos deixar cegar pelas ideologias de nossa preferência e simplesmente ficar alheio aos fatos. Formar uma opinião com base em certas informações, e ao se deparar com uma informação nova, mudar de opinião (um procedimento bayesiano que será tema de um artigo futuro) é algo louvável. Denota humildade e respeito às evidências.

Também seja crítico em relação às informações que você recebe, independente de elas se alinharem ou não ao que você acredita. Por exemplo: não é por que saiu uma denúncia de corrupção envolvendo um político que você não gosta que a denúncia necessariamente seja verdadeira, assim como se sair uma denúncia em relação a um político que você apoia que ela seja falsa. Sempre vá atrás da veracidade da informação, independente de ela te agradar ou não. Uma boa dose de ceticismo é sempre bem vinda.

Outra coisa: quando você se deparar com um texto argumentando uma posição contrária àquela que você defende, antes de procurar furos na argumentação e ensaiar uma “refutação” (eu não gosto dessa palavra), procure entender os argumentos apresentados no texto, eles podem ser bons e você aprender algo novo com eles! Ou eles podem ser ruins e você consegue ficar mais seguro de suas crenças. Das duas formas, você ganha.

Conclusão

Todos têm a ganhar com o debate racional, e todos perdem com a polarização de opiniões. A finalidade de um debate não é humilhar e refutar (por isso que eu não gosto dessa palavra) aqueles com posição diferente, mas sim chegar a um esclarecimento mútuo e solucionar problemas que nos afetam.  É o que ocorre na ciência, em que cientistas debatem teorias diferentes, comparam com os dados disponíveis para ver qual a que melhor corresponde a esses dados. Dessa maneira a ciência progride.

Um adendo: cientistas são pessoas e não estão imunes a vieses cognitivos, filtros bolha ou desonestidade pura e simples. Mas o método científico e o compartilhamento de trabalhos para ser submetidos ao crivo crítico da comunidade científica acabam por minimizar esses efeitos, ainda mais se compararmos como o que ocorre em outras áreas, como a política e religião, por exemplo. Em debates científicos, os debatedores normalmente saem de um estado de maior ignorância para um de menor ignorância, enquanto que nos debates políticos e religiosos, os debatedores saem de um estado de ignorância para um de maior ignorância ainda. Nos debates científicos, o ganho é mútuo por que cientistas estão cientes da sua ignorância, enquanto que em debates políticos e religiosos os dois lados estão certos de que sua posição é a verdadeira, e o prejuízo é mútuo.

Para que a democracia progrida, é necessário um ambiente de livre pensamento, com respeito a quem pensa diferente e valorização da racionalidade epistêmica (consistência lógica e respeito às evidências empíricas). Como diz Bertrand Russel, se você sente raiva de alguém com uma opinião diferente da sua, é por que provavelmente sua opinião não é bem fundamentada.

Riis Rhavia Assis Bachega

Riis Rhavia Assis Bachega

Riis Rhavia Assis Bachega possui graduação em física pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestrado em Cosmologia pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente é doutorando dessa mesma universidade.