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Se é natural, é bom?

Para quem não sabe o que é “premissa”, veja antes a explicação abaixo do texto.

Em muitas discussões polêmicas, infelizmente ouvimos muitos argumentos com nenhum, ou praticamente nenhum, embasamento. Provavelmente, você já ouviu alguns argumentos parecidos com esses:

  1. “Ser homossexual é errado, pois não é natural”
  2. “Comer carne não é errado, pois é natural comer carne”
  3. “Bonobos não são monogâmicos, e já que seus comportamentos são naturais, também não devemos ser monogâmicos”
  4. “Guerras não são naturais, então não devemos guerrear”
  5. “Produto X é natural, e produto Y não. Então devemos comprar X em vez de Y”

Detectou algum problema em comum neles? Talvez muitos dos leitores apenas vejam erros científicos nesses exemplos. Por exemplo, se “natural” significar “o que é visto na natureza”, o número 1 e 4 seriam cientificamente falsos: O número 1 porque atos homossexuais na natureza já foram bem documentados em mais de 500 espécies de animais diferentes, e observada em mais de 1500.1 – 5 E o número 4, pois podemos observar grupos de outras espécies guerreando, como no caso dos chimpanzés – claro que com a diferença de eles não usarem arma de fogo. 6, 7, 8

Porém, o problema que todos os exemplos acima possuem em comum é que eles tiram uma conclusão de que algo DEVE SER de um certo jeito simplesmente a partir de informações sobre como a natureza É, ou seja, que algo é correto simplesmente porque é natural. E isso é um pulo injustificado para uma conclusão, como denuncia o que na filosofia se chama de “guilhotina de Hume”. Simplesmente porque algo é naturalmente de um jeito, não significa que esse algo deva continuar sendo do mesmo jeito, ou que está correto que esse algo seja desse jeito. A conclusão não pode ter mais informações do que aquelas contidas em suas premissas. Para que os argumentos acima sejam válidos, então, eles precisam adicionar alguma outra premissa ao argumento. No caso, seria preciso adicionar que “tudo o que é natural é bom”. Se não houver essa premissa, todas as frases acima ficariam sem sentido nenhum. Afinal, o que elas querem dizer com “é natural” se natural não quer dizer que seja bom, ou que devamos agir em prol do que é natural?

Então, em que se baseia a pressuposição de que tudo que é natural é bom? Se tudo o que é natural for bom, podemos dizer que eventos como desastres naturais, tortura, envenenamento por plantas ou por insetos venenosos, e instintos como a vontade por vingança são bons? Provavelmente, a maioria aqui não concordaria com isso. Mas talvez possamos evitar essas conclusões se especificarmos o que queremos dizer por “natural”. Dependendo de qual característica da natureza estamos usando para dizer que “tudo o que é natural é bom”, talvez possamos chegar a conclusões mais satisfatórias. Ou não? Para tentar resolver esses problemas, devemos analisar quais são as reais características da natureza, e procurar saber se alguma(s) delas realmente pode(m) servir de guia para nós. Até porque, numa interpretação ampla, tudo é natural: somos parte e produtos da natureza, e se tudo o que os seres que são parte da natureza fazem é natural, então tudo o que fazemos é natural (até a invenção de máquinas). Se for esse o caso, não faz sentido a natureza ser um guia para nós, já que, não importa o que fizermos, o que fizermos será natural.

Muita gente interpreta o termo “natural” como “o que veio antes”. Isso pode ser considerado uma característica da natureza mesmo? E ela pode ser um guia que nos diz o que devemos fazer? Provavelmente não, pois mais de 99% das espécies que já habitaram a Terra já foram extintas. Ou seja, uma das características mais fortes da natureza é o quanto ela está em constante mudança. E o mesmo tipo de consideração vale para quem interpreta “natural” como “o que é mais comum”. Isso porque muito do que era comum em cada época foi extinguido pela própria natureza. Além disso, como dizia o filósofo Henry Sidgwick, qualidades que damos muito valor, como caridade e empatia com grupos de pessoas diferentes do nosso, vieram mais tarde na história da humanidade e são mais raras ainda que outras características que damos menos valor e que julgamos mal. Em outras palavras, a natureza não procura preservar o que é mais comum, e mesmo se preservasse o que é mais comum nos dias de hoje, ela preservaria mais algumas coisas que são consideradas ruins do que outras que são consideradas boas (já que vemos mais certos tipos de atos ruins do que alguns atos bons). Então não podemos dizer que a característica que faz algo natural ser bom é que esse algo seja comum na natureza.

E se por “natural” queremos dizer “algo não produzido socialmente”? Se for o caso, isso significaria que se “o natural for melhor do que o não natural” for verdadeiro, então uma sociedade sem leis, sem qualquer produto artificial e sem produtos provenientes do conhecimento social seria melhor do que uma sociedade com esses produtos da sociedade atual. Imagine um mundo sem remédios, sem leis e sem o tipo de casa produzida a partir do conhecimento humano. Seria um cenário melhor do que o que o mundo de hoje? Temos boas razões para achar que não.

Alguns dizem que produtos artificiais são piores do que naturais, mas como podemos diferenciar “artificial” de “produtos produzidos a partir do conhecimento social”? Por exemplo, muita gente acha que alimentos orgânicos são “naturais”, mas acontece que os alimentos orgânicos foram selecionados artificialmente por milênios. A maçã e a banana selvagem eram extremamente diferentes das que são frutos da agricultura atual, seja orgânica ou não (veja a diferença no link 9 da bibliografia). E os alimentos orgânicos são mais geneticamente similares aos famosos “alimentos geneticamente modificados” do que com seus equivalentes selvagens. Então se há algo que faz com que alimentos orgânicos sejam melhores do que alimentos “geneticamente modificados” (OGM), esse algo não tem a ver com ser natural ou não. Na verdade, isso teria a ver, então, com questões como se há ou não mais uso de agrotóxicos em OGM do que em orgânicos (algumas fazendas de orgânicos usam agrotóxicos naturais), e se o uso deles compensa a probabilidade de sermos intoxicados naturalmente por alimentos orgânicos estragados, etc. E claro, mais importante ainda, podemos encontrar vários vegetais na natureza mais tóxicos do que os alimentos provenientes da agricultura. Inclusive, podemos usar técnicas (simples, mas inventadas pelo homem) que eliminam elementos tóxicos de alimentos como a mandioca brava, que após serem processadas, podem se tornar comestíveis. 10, 11

Esse medo do  não-natural até gera um pânico geral com a química, e faz com que as pessoas ignorem que tudo o que consumimos e que temos contato é composto de elementos químicos da tabela periódica. Um exemplo que sugere que as pessoas geralmente tem preconceito com substâncias químicas artificiais é o caso do “monóxido de di-hidrogênio”. No dia primeiro de Abril de 1983, em Michigan, publicaram uma matéria sobre uma substância química chamada “monóxido de di-hidrogênio” (MODH). Na matéria, dizia que essa substância é mortal se inalada em grandes quantidades, que foi encontrada no cérebro com pacientes com tumor cerebral, que seu vapor pode causar queimaduras, assim como outras coisas. Tudo o que a matéria dizia era verdade, mas por conta do tom da notícia, assim como pela falta de análise e conhecimento de química por parte dos leitores, as pessoas ficaram com medo dessa substância, que nada mais era do que H2O (ou seja, água). Não dá para saber se o medo do “MODH” foi influenciado pelo fato de ele soar como o nome de um elemento químico não natural, mas não podemos excluir essa possibilidade, visto que muita gente se refere pejorativamente a substâncias químicas achando que nenhuma substância química é natural, e que nenhuma substância natural é realmente boa. De qualquer modo, o que deve ser entendido é que toda substância natural é uma substância química, e tanto as substâncias químicas naturais como as sintéticas podem ser boas ou más para a saúde. 12 O gráfico abaixo, por exemplo, mostra as substâncias mais tóxicas do mundo, e elas incluem o nível de toxicidade tanto de alimentos naturais quanto de não naturais:

Imagem 1.0 – Note que as duas mais tóxicas são naturais. A toxina botulínica (bolulinum toxin) é 1 milhão de vezes mais potente que a dioxina, que é a substância mais tóxica produzida pelo homem. Isso é um detalhe interessante, mas obviamente isso também não significa que sintéticos são melhores do que os naturais no geral. No geral, a comparação é incerta.

Essa discussão sobre natural vs. não-natural é mais sem sentido ainda quando o assunto é moralidade. Pessoas de várias posições ideológicas, tanto conservadoras quanto progressistas, caem nessa falácia. Por exemplo, muitas vezes vemos dois lados opostos discutindo sobre a veracidade de frases como “homossexualidade não é natural”, enquanto deixam de lado se realmente isso faria alguma diferença sobre a homossexualidade ser certa ou errada. Tudo bem que a pessoa que diz que homossexualidade não é natural está errada nesse sentido, mas os dois lados estariam equivocados em assumir que ser natural ou não faria alguma diferença para a moralidade de ser homossexual. O que na natureza faria com que a homossexualidade fosse errada? Como vimos, parece que não pode ser nem a característica de o quão comum é a prática, nem o quão cedo a pratica sexual surgiu.

E infelizmente, o apelo à natureza pode ser mais sutil ainda do que os exemplos acima. Inconscientemente, muitas pessoas ignoram pesquisas que indicam algum fato que aparentemente vai contra suas ideologias, e aceitam aquelas que indicam algo que aparentemente vão a favor de suas ideologias (o famoso viés de confirmação). Às vezes até acusam cientistas de imorais porque a pesquisa diz que descobriu algo que vai aparentemente contra a visão moral da pessoa. Por exemplo, quando algum cientista descobre alguma diferença de gênero com base na biologia, muitas pessoas julgam rápido demais, dizendo que o estudo é sexista, tendo apenas se baseado nos resultados dos estudos. E se for verdade que há umas diferenças comportamentais entre os sexos baseadas na biologia? Isso significaria que devemos tratar algum dos gêneros como se fosse inferior ao outro? Se o QI de brancos e negros for inferior ao dos asiáticos, isso significa que os primeiros deveriam ser tratados como inferiores e com menos valor? Se os humanos consumiam carne na pré-história, isso necessariamente significa que ainda devemos comer carne?

É possível que os cientistas tenham chegado a certas conclusões por conta de ideologias também, como foi o caso da craniometria (estudo do tamanho de crânios), no passado. Mas para chegar nessa conclusão, devemos analisar a metodologia dos estudos. Não podemos esperar que as pesquisas científicas deem sempre o resultado que ideologicamente esperamos. E mais importante ainda, devemos entender que conclusões de estudos científicos não devem, por si só, ser base para a ética.

Ainda assim, alguém poderia bater o pé no chão e dizer que tudo o que é natural é bom, aceitando todas as conclusões que descrevi acima, que a maioria acha ruim. Seria uma posição coerente, mas não conheço ninguém que aceite todas aquelas conclusões. Inclusive, a maioria das pessoas que usam argumentos como os do exemplo não aceitam que tudo o que é natural é bom, o que denuncia a incoerência nessas pessoas. E se, por acaso, houver alguém que aceite incondicionalmente essa tese, argumentos devem ser dados para dar suporte a essa posição. Por que devemos seguir os padrões da natureza?

Claro, as informações sobre como a natureza funciona podem ser instrumentalmente boas, e até essenciais, para nos mostrar o que devemos fazer. O ponto que estou enfatizando aqui é que não há como elas, por si só, nos guiarem, e que o que é natural geralmente não é considerado como sempre bom pela maioria das pessoas. Podemos saber todas as informações sobre algum determinado evento, mas se não tivermos alguma outra ideia sobre o que é bom e sobre o que devemos fazer, não será possível chegar a nenhuma conclusão acerca de como devemos agir. Se o que devemos fazer é o que produz mais prazer, o nosso conhecimento sobre a natureza nos dará uma resposta. Se o que devemos fazer é alguma outra coisa, o nosso conhecimento sobre a natureza nos dará outra.  Estudos científicos, notícias e histórias informais apenas DESCREVEM. E o que sabemos sobre a natureza também são descrições. Por isso, a natureza não pode, por si só, PRESCREVER. Portanto, se o argumento para sua posição sobre o que devemos fazer depende apenas de como a natureza é, é melhor você encontrar outras razões para defender sua posição, ou simplesmente abandoná-la.

Nota importante: Antes que falem, este texto NÃO é uma refutação de qualquer uma das posições mencionadas (de ser a favor ou não de atos homossexuais, do vegetarianismo, de guerras, etc). O alvo do texto é apenas o apelo à natureza!

Explicação de o que é uma premissa: Na área da Lógica, a premissa significa uma suposição que serve de base para um raciocínio que levará a uma conclusão. Eis um exemplo de um argumento com premissas: “Sócrates é homem; todo homem é mortal. Logo, Sócrates é mortal.”

No argumento acima, “Sócrates é homem” e “todo homem é mortal” são premissas. A conclusão, claro, é “Sócrates é mortal”. Note que esse argumento não tira uma conclusão com um “deve” (no sentido ético). As premissas possuem o verbo “é”, e a conclusão também deve possuir um “é”.

Referência

  1. http://www.nhm.uio.no/besok-oss/utstillinger/skiftende/againstnature/index-eng.html
  2. http://www.yalescientific.org/2012/03/do-animals-exhibit-homosexuality/
  3. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_mammals_displaying_homosexual_behavior
  4. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_birds_displaying_homosexual_behavior
  5. Biological Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity
  6. https://www.newscientist.com/article/mg22229682-600-only-known-chimp-war-reveals-how-societies-splinter/
  7. http://nature.com/articles/nature13727.epdf
  8. https://news.nationalgeographic.com/2016/01/160130-animals-insects-ants-war-chimpanzees-science/
  9. https://www.sciencealert.com/fruits-vegetables-looked-before-domestication
  10. https://goo.gl/ekY3f6
  11. http://www.uece.br/cienciaanimal/dmdocuments/Artigo2.2006.1.pdf
  12. https://blogs.scientificamerican.com/guest-blog/natural-vs-synthetic-chemicals-is-a-gray-matter/
Tiago Carneiro

Tiago Carneiro

Um amante da filosofia e da ciência. Me interesso muito na ética, na epistemologia (mais especificamente, na justificação), na filosofia da ciência, e na ciência em geral (psicologia, ciências sociais e astronomia, principalmente). No momento, estou cursando filosofia na UFRJ, e me especializando em epistemologia.