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Sobre a vacina russa

Artigo original de Derek Lowe na coluna In The Pipeline do blog editorialmente independente dos editores da Science Translational Medicine.

Muitos ouviram o anúncio da Rússia de que aprovaram uma vacina contra o coronavírus. Já tive várias pessoas me perguntando o que eu acho disso, então deixe-me ser claro: eu acho que é uma jogada publicitária ridícula. Se é para fazer a Rússia parecer uma espécie de potência da biotecnologia, então, no que me diz respeito, fez parecer o oposto. Isso faz com que pareçam desesperados, como um estado-nação se igualando a um bando de promotores de ações de baixo custo. O novo protótipo no início da fase de testes de um avião comercial acaba de decolar – seria hora de vender passagens e lotar o avião?

Por que estou tão negativo? Veja o que está sendo reivindicado – a primeira vacina contra o coronavírus a receber aprovação regulatória. Mas a “aprovação regulatória” não é um padrão ouro internacional, e esse tipo de decisão mostra o porquê. Sejamos honestos: não há como você “aprovar” responsavelmente uma vacina depois dela só passar por testes em humanos por um período de menos de dois meses, segundo vários relatórios. Isso é tempo suficiente para dar os primeiros passos, um estudo de Fase I que dá uma ideia sobre a resposta imunológica em mais de uma dose. Mas simplesmente não é tempo suficiente para fazer um exame de eficácia razoável também, e absolutamente não é tempo suficiente para obter qualquer tipo de leitura sobre segurança. Aqui está um bom artigo abordando essas linhas do tempo com mais detalhes.

Veja, estamos pressionando os testes de segurança e eficácia com mais força do que nunca, e muitas pessoas já estão apreensivas com as avaliações de segurança das várias vacinas candidatas. Declarar a aprovação regulatória e anunciar publicamente uma vitória na imprensa mundial antes mesmo de você ter feito aquele trabalho de segurança passa uma sensação pena em vez de respeito. As várias notícias sobre essa “aprovação” geralmente trazem citações de especialistas externos dizendo que é importante ver se a Rússia está seguindo as práticas recomendadas e tal, mas isso é fácil de responder. Eles não estão. Existem várias outras vacinas que já poderiam ser “aprovadas” se pensássemos que isso talvez seria uma boa ideia. Mas não é.

Então, por que essa vacina é vista como candidata? Ela está sendo desenvolvida pelo Gamaleja Instituto de Epidemiologia e Microbiologia e é descrita como uma mistura de dois vetores de adenovírus, Ad5 e Ad26. Ainda não tenho certeza de qual poderia ser a ideia por trás de usar ambos, mas essas duas abordagens estão sendo usadas separadamente por outros desenvolvedores de vacinas. O pessoal da Gamaleya parece gostar dessas vacinas de vetores mistos – aqui está uma candidata para uma vacina da Ebola utilizando da mistura de VSV e Ad5 em que eles estavam trabalhando. No geral, a ideia por trás da vacina não parece bizarra, no entanto – apenas os cronogramas de desenvolvimento.

Isso é apenas um tipo de “nacionalismo de vacina”, que é realmente a última coisa de que precisamos agora. Não quero ver nenhum país (incluindo os EUA) batendo no peito dessa maneira e usando a pandemia para declarar a superioridade de seu sistema ou de seus cientistas. A pesquisa do coronavírus precisa ser o mais internacional possível, com ideias, abordagens, publicações e testes vindos de todo o mundo. Esse tipo de façanha nos faz regredir – agora as pessoas estarão animadas com a vacina russa “aprovada” e se perguntando por que as outras ainda não estão prontas, etc. Isso só cria confusão e discórdia – não temos isso o suficiente já? A menos, é claro, que criar confusão e discórdia seja o ponto…

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.