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Vulcões, peste, fome e inverno sem fim: historiadores e cientistas lembram 536, o ‘pior ano para se estar vivo’

Por Miles Pattenden
Publicado no The Conversation

Ainda é fevereiro e 2022 já está começando mal. Uma enorme erupção vulcânica na costa de Tonga, a perspectiva de guerra com a Rússia, a pandemia em andamento (e suas consequências econômicas). E isso antes mesmo de tocarmos em assuntos como a tensão chinesa sobre Taiwan ou um reboot desastroso de Sex and the City.

Bem-vindo ao Ano Novo: tão medonho quanto o antigo.

Uma história de maus momentos

Escrevo não para minimizar os problemas muito reais do nosso mundo, mas para colocá-los em alguma perspectiva. 2020, 2021 e talvez agora 2022, foram todos ruins.

Mas não foram anos piores do que, digamos, 1347, quando a Peste Negra começou sua longa marcha pela Eurásia. Ou 1816, o “ano sem verão“. Ou 1914, quando o assassinato de um obscuro arquiduque da casa de Habsburgo precipitou não um, mas dois conflitos globais – um dos quais provocou milhões de mortes no genocídio mais horrível do mundo.

Houve muitos outros anos ruins, e décadas também. Na década de 1330, a fome se instalou e devastou a China da Dinastia Yuan. Na década de 1590, uma fome semelhante devastou a Europa e, na década de 1490, a varíola e a gripe começaram a se espalhar pelas populações indígenas das Américas (reciprocamente, a sífilis fez o mesmo entre os habitantes do Velho Mundo).

A vida tem sido muitas vezes “desagradável, brutal e curta”, como observou o filósofo político e cínico Thomas Hobbes em seu Leviatã de 1651. E, no entanto, os historiadores, mesmo agora, apontam um ano, em particular, como pior do que os outros.

Sim, pode ter havido um tempo na memória histórica em que realmente foi a pior época para se estar vivo.

Inspirada na Peste Negra, A Dança da Morte, ou Dança Macabra, uma alegoria sobre a universalidade da morte, era um tema comum na arte no final do período medieval. Crédito: Wikipédia.

536: o pior ano da história?

536 é o atual candidato consensual para o pior ano da história da humanidade. Uma erupção vulcânica, ou possivelmente mais de uma, em algum lugar do hemisfério norte parece ter sido o gatilho.

Onde quer que tenha sido, a erupção precipitou um “inverno vulcânico” de uma década, no qual a China sofreu nevascas no verão e as temperaturas médias na Europa caíram 2,5°C. As colheitas foram devastadas. As pessoas passaram fome. Então elas pegaram em armas umas contra as outras.

Em 541, a peste bubônica chegou ao Egito e passou a matar cerca de um terço da população do império bizantino.

Mesmo no distante Peru, as secas afligiram a cultura Moche que até então prosperava.

O aumento da cobertura de gelo oceânico (um efeito de feedback do inverno vulcânico) e um mínimo solar profundo (o período regular com a menor atividade solar no ciclo solar de 11 anos do Sol) nos anos 600 garantiram que o resfriamento global continuasse por mais de um século.

Muitas das sociedades que viviam na década de 530 simplesmente não conseguiram sobreviver ao caos das décadas que se seguiram.

A nova ‘ciência’ da história do clima

Os historiadores agora têm um interesse particular em assuntos como esse porque podemos colaborar com outras áreas da ciência para reconstruir o passado de maneiras novas e surpreendentes.

Um inverno vulcânico é uma queda dramática nas temperaturas experimentadas globalmente, na sequência de uma erupção vulcânica maciça, pois as partículas de cinzas e gases como o dióxido de enxofre, inseridas na estratosfera durante a erupção e espalhadas globalmente pelos ventos, bloqueiam o sol e impedem energia solar de atingir a superfície da Terra. Crédito: Shutterstock.

Apenas uma fração do que sabemos, ou pensamos que sabemos, sobre o que aconteceu durante esses momentos obscuros vem de fontes escritas tradicionais. Temos algumas de 536: o historiador bizantino Procópio escreveu naquele ano que “um presságio mais terrível ocorreu”, e o senador romano Cassiodoro observou em 538 “[…] o Sol parece ter perdido sua luz habitual e aparece em uma cor azulada. Maravilhamo-nos de não ver sombras de nossos corpos ao meio-dia e de sentir o vigor poderoso de seu calor se esvair em fraqueza”.

No entanto, os avanços reais na compreensão histórica deste “pior ano de todos os tempos” estão surgindo através da aplicação de técnicas avançadas como dendroclimatologia e análise de núcleos de gelo.

O dendroclimatologista Ulf Büntgen detectou evidências de um aglomerado de erupções vulcânicas, em 536, 540 e 547, em padrões de crescimento de anéis de árvores. Da mesma forma, a análise “ultraprecisa” do gelo de uma geleira suíça realizada pelo arqueólogo Michael McCormick e pelo glaciologista Paul Mayewski foi fundamental para entender o quão severas foram as mudanças climáticas de 536.

Tais análises são agora vistas como recursos importantes, até mesmo essenciais, no conjunto de ferramentas metodológicas do historiador, especialmente para discutir períodos sem abundância de registros sobreviventes.

Alguns historiadores – incluindo Kyle Harper, Jared Diamond e Geoffrey Parker – usam desenvolvimentos neste campo crescente para construir narrativas revisionistas completas sobre a ascensão e queda de sociedades específicas. Para eles, as condições em nosso planeta são muito mais significativas para impulsionar nossa história do que jamais imaginamos.

Lidando com as adversidades

Mas como foi viver um evento de mudanças climáticas como o que começou em 536? É uma questão que os historiadores continuam a ponderar enquanto analisamos nossas fontes.

A maioria dos vivos em 536 provavelmente não sabia que as coisas iriam piorar tanto. Como historiadores, somos propensos a confiar demais em trechos anedóticos carregados de desgraça, como as citações de Procópio e Cassiodoro.

No entanto, como o provérbio do sapo na água fervente, a pessoa comum naquela época só pode ter percebido lentamente o quão sombria as condições em seu mundo estavam ficando. O pior momento não teria sido de fato em 536, mas algum tempo depois – quando os efeitos de pragas e secas, frio e fomes realmente se instalaram em plenitude.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.