Olá a todos! Saudações racionalistas. Hoje traremos um artigo que talvez seja, relativamente, do conhecimento de poucos brasileiros. Apesar do ano em que foi publicado (por volta de 2006), permanece atualíssimo em matéria de crítica epistemológica científica. O artigo, escrito pelo engenheiro Widson Porto Reis, aborda a predominância das pseudociências nas universidades brasileiras (algo muito parecido com o que ocorre no rol acadêmico norte-americano).
Podemos concluir a partir do autor, que a não-discussão racional dessa situação calamitória pode trazer sérios problemas sociais. Onde certas disciplinas e em especial, as ditas “terapias alternativas” (quando obviamente fala-se em medicina), não terão sua cientificidade questionada; dando lugar ao misticismo, ao charlatanismo e ao lucro fácil a bem dos mesmos. É preciso retirar essas práticas alternativas do escopo científico e ampliar as discussões quanto à sua cientificidade, no lugar onde elas, e de modo muito controverso, estão aflorando: as universidades.
Boa leitura!
A pseudociência nas universidades brasileiras
Por Widson Porto Reis
1. Introdução
A pseudociência chegou à última fronteira do pensamento crítico. Depois que os mapas astrológicos se espalharam pelas revistas femininas e o feng-shui e a radiestesia fincaram pé nas revistas de decoração; depois que a homeopatia tornou-se prática médica reconhecida e a memória da água virou citação comum nas revistas de ciência; depois que as correntes de e-mail convenceram os legisladores de um estado brasileiro que o uso de celulares deveria ser proibido nos postos de gasolina e enquanto o criacionismo se avizinha das aulas de ciência das escolas públicas de outro estado… agora a pseudociência e o pensamento mágico travestido de ciência chegaram à universidade.
2. O problema
O fato não é realmente novo, mas nunca antes se viu tantas atividades vindas de dentro da universidade destinadas a difundir e legitimar a pseudociência. A cada dia surgem na imprensa notícias de novos cursos de extensão, pós-graduação e até mesmo graduação, pesquisas científicas, palestras e seminários promovendo as pseudociências. A universidade privada já é terra arrasada há tempos. Com um estrito compromisso com o lucro, a universidade particular oferece ao cliente o que ele quiser. Assim pode-se encontrar cursos de pós-graduação e de extensão em praticamente qualquer pseudociência que se imagine: “Astrologia Clínica” na respeitada Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e “Astrologia Aplicada na Gestão de Pessoas” na UBC; “Terapias Naturais e Holísticas” na Universidade Castelo Branco; “Feng-Shui” na Universidade Veiga de Almeida; “I-Ching” na Faculdade Cândido Mendes; “Florais de Bach” na Faculdade Helio Afonso (FACHA) e na Estácio de Sá (UNESA); Reflexologia na UNISUL… só para citar uma minúscula fração dos cursos oferecidos.
Mas é quando a pseudociência passa a ser difundida com o dinheiro público que a situação se agrava. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, ministra regularmente cursos de extensão em Reiki – técnica oriental de cura com as mãos –, Aromaterapia e Mandalas. Os cursos são oferecidos pelo CCSA, Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Já a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), certamente uma das mais conceituadas universidades do país, é a instituição pública brasileira com a maior oferta de cursos de extensão para a formação de profissionais esotéricos: “Terapia Floral”, “Fisiologia Chinesa e Práticas Energéticas”, “Astrologia, Corpo e Saúde”, “Cromoterapia” e especialmente o “Ecologia da Mente”, guarda-chuva místico sob o qual se abrigam Radiestesia, I-Ching, Feng-Shui e Tarô. Para ser honesto, nenhum dos cursos citados causaria estranheza no triste cenário atual não fosse o fato de catalogados na área de “Ciências da Saúde” e serem oferecidos pela Divisão de Ensino, Pesquisa e Extensão do Hospital Escola São Francisco de Assis. De fato, um dos projetos em andamento neste hospital universitário é a implantação destas técnicas no tratamento dos pacientes, buscando a “redução de custos hospitalares e melhoria da qualidade de vida e saúde (…), aprofundando e construindo o conhecimento das terapias naturais numa perspectiva multidisciplinar”.
Depois de ganhar os cursos de extensão, a pseudociência chegou à graduação. Já se espalham pelo país os cursos superiores em naturologia. A princípio, a proposta parece inatacável. Afinal, seria muito bem-vindo um profissional que pudesse prescrever tratamentos naturais reconhecidamente eficazes, separando-os de inócuos, e às vezes perigosos, curandeirismos. Mas como todo cético escaldado sabe, o rótulo de terapias naturais geralmente é uma fachada para as velhas esotéricas técnicas “milenares”. Realmente, uma análise mais cuidadosa do programa desses cursos revela o que se espera: radiestesia, florais de Bach, cromoterapia e reflexoterapia são algumas das disciplinas que um bom naturólogo terá em seu currículo.
Além das terapias naturais e artes divinatórias, também a religião vem ganhando espaço na universidade, o que não seria problema nenhum desde que a ocupação não se desse no território das ciências. Uma destas iniciativas está na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, que criou em 2001 o NIETE – Núcleo Interdisciplinar de Estudos Transdisciplinares Sobre Espiritualidade –, atualmente coordenado pela a professora Malvina do Amaral Dorneles. Uma das atividades recentes do NIETE foi estabelecer uma parceria com a Sociedade Brasileira de Apometria para a formação de um grupo de estudos em apometria (GEPEA) a fim de “contribuir para a promoção da saúde da população de nossa comunidade (…), inserindo-se nas discussões contemporâneas da Organização Mundial da Saúde”. Bem, para quem não conhece, a apometria é uma técnica espírita, controversa mesmo entre os adeptos desta religião, que consiste em aplicar “pulsos magnéticos concentrados e progressivos no corpo astral do paciente”. Cursos de apometria incluem técnicas de desobsessão (exorcismo) e defesa contra vampirismo e espíritos parasitas. Outro filhote do NIETE é o Grupo Psi-Alfa-Ômega, coordenado pelo professor da UFGRS, Cícero Marcos Teixeira. Um das principais linhas de pesquisa do grupo é a Transcomunicação Instrumental (TI), a arte de receber mensagens do além através de ondas de rádio ou televisão. Quem pratica, jura que pode captar mensagens dos mortos nos ruídos de velhos rádios valvulados ou ver espíritos em difusas imagens de televisão – um update do velho mito das mensagens subliminares em discos de rock. “Queremos contribuir em termos acadêmicos para a compreensão do ser humano, uma vez que ele não vive somente no plano físico”, diz Cícero, que também é autor do livro “Internautas do Além”.
Já na UNIFESP, o biólogo Ricardo Monezzi defendeu sua dissertação de mestrado: “Avaliação de efeitos da prática do Reiki sobre o sistema imunológico de camundongos machos”. No estudo, um terço do grupo de ratos recebia tratamento por impostação de mãos, outro terço tinha uma luva colocada sobre as gaiolas (para simular a impostação) e o restante não recebia nenhum tipo de tratamento. Ao final do experimento, Monezzi detectou um aumento do número de linfócitos e monócitos dos ratos submetidos ao tratamento. O trabalho já seria controverso o bastante sem a afirmação non sense com que foi divulgado por Monezzi na imprensa: “O corpo humano é um emissor de energias que ainda não foram qualificadas, mas exames como o eletrocardiograma e eletroencefalograma mostram que existem”. O estudo de Monezzi, mesmo sem ter sido replicado por nenhum outro pesquisador, é utilizado pelo GenteComSaude, Grupo de Meditação e Técnicas Complementares em Saúde, da UNIFESP, na promoção do curso de extensão do Centro de Aperfeiçoamento em Saúde: “Gerenciamento das doenças através do Reiki/impostação das mãos”, do qual, aliás, Monezzi é professor.
2.1. O caso UNB
Neste quadro, a Universidade de Brasília certamente representa o caso mais grave. Esta prestigiada instituição, sediada na capital do País, criou em 1989 o Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais (NEFP), ligado ao CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. O que parecia uma interessante iniciativa acabou se revelando um verdadeiro cavalo de Tróia, com o qual astrólogos, radiestesistas, ufólogos, médiuns, entortadores de colheres e outros tantos vêm invadindo a academia, utilizando-a para difundir suas crenças pessoais.
O coordenador do NEFP é o engenheiro civil e astrólogo Paulo Celso dos Reis Gomes. Paulo Celso é autor do trabalho “Verificação dos efeitos das posições dos astros na eclíptica com respeito à formação do homem e seu cotidiano”. Na pesquisa, os astrólogos (os próprios autores) confeccionaram o mapa astral de 100 voluntários conhecendo apenas as datas e locais de nascimento de cada um. Depois de receber seu perfil astrológico, os voluntários preencheram um questionário onde pontuaram, numa escala de 1 a 5, o grau de acerto ou relevância de cada uma das características levantadas. Somente 40 dos 100 questionários foram analisados; destes, os pesquisadores verificaram o impressionante índice de 95% de acertos.
É evidente que a única coisa que o estudo de Paulo Celso mediu foi a capacidade que as pessoas têm de se identificar com perfis vagos, especialmente os positivos e lisonjeiros, sobre si mesmas – o velho conhecido Efeito Forer. Esta falha grosseira de metodologia, contudo, não ficou no caminho do NEFP, que assim mesmo divulgou o trabalho nos maiores meios de comunicação do país. O astrólogo Francisco Seabra, também membro do NEFP, chegou a declarar à revista ISTOÉ, segunda maior revista de notícias do país: “A universidade faz uma revolução ao reconhecer que a astrologia é uma ciência”. A bisonha afirmação só revela o desconhecimento de Seabra sobre o que é ciência.
Um dos objetivos confessos do NEFP é trabalhar para a “sistematização da astrologia e sua inclusão no rol das ciências oficiais”. Neste esforço já se encontra em sua quarta edição o Curso de Astrologia para Pesquisadores, promovido pela UnB e coordenado por Hiroshi Masuda, outro membro do NEFP. O curso tem uma missão bem-definida: “formar astrólogos pesquisadores que venham a comprovar, de forma racional, os fundamentos da astrologia”. Firme em sua missão, recentemente o NEFP conseguiu aprovar a realização do “1º Encontro Nacional de Astrologia”, ocorrido em agosto deste ano [2005]. O tema central do encontro foi a capciosa pergunta “Até que ponto a astrologia deve ser entendida como ciência?”. Francisco Seabra declarou à imprensa meses antes: “Vamos debater pesquisas que têm contribuído para aproximar o conceito astrológico do conceito científico”. Como se vê, a rigor, não teria sido um debate muito amplo…
O vice-coordenador do NEFP o é físico PhD Álvaro Luis Tronconi. Pródigo em alegações que desafiam o bom senso, Tronconi já entregou à imprensa pérolas como: “Queremos saber por que a força do pensamento desorganiza a configuração dos átomos dos metais e se ela pode ser identificada e calculada como se faz com a energia elétrica, que não conhecemos por inteiro, mas todos acreditam que existe e a usam”, e “Se podemos melhorar nossa oratória, também podemos dominar a bioenergia e usá-la para nos teletransportar ou curar doenças”. O objeto de estudo de Tronconi é o famoso paranormal brasileiro Luiz Carlos Amorim que, assim como o paranormal ícone dos anos 1970, Uri Geller, exercita seus poderes em talheres e ganha a vida como oráculo de políticos, atores e qualquer um que possa pagar seus gordos cachês. Na verdade, Tronconi e os demais pesquisadores do NEFP parecem considerar as habilidades paranormais de Amorim suficientemente demonstradas, já que o convidaram em 2003 a apresentar seus poderes durante uma palestra na UnB. Segundo a assessoria de imprensa da UnB, a demonstração foi um fiasco. A platéia, constituída em sua maioria pelos estudantes da universidade, compareceu decidida a desmascarar o paranormal e conseguiram fazê-lo perder a compostura (e aparentemente os poderes) em mais de uma ocasião – um interessante caso em que os alunos demonstraram mais senso crítico que seus professores. Como seria de se esperar, também este pequeno obstáculo de credibilidade não ficou no caminho do NEFP, que manteve agendado o curso “Despertando o Eu Paranormal” que Amorim ministraria na universidade. (O valor de aproximadamente 100 dólares que o interessado deveria desembolsar pelo curso pode ser visto como um grande investimento, já que aumentar a sorte em bingos e loterias é uma das artes que Amorim ensina em seus cursos.)
A relação de Luiz Carlos Amorim com o NEFP vem de longa data. O ex-coordenador do Núcleo, o psicólogo Joston Miguel Silva, estudou durante oito anos 13 pessoas que diziam possuir alguma habilidade paranormal, entre eles Amorim e Thomas Green Morton, outro paranormal brasileiro badalado entre os famosos. Dos 13, o pesquisador da UnB confirmou as habilidades de cinco. Outros cinco tiveram seus poderes parcialmente comprovados e sobre os três restantes não houve nenhuma conclusão. A técnica de Joston para validar os paranormais? a kirliangrafia, em que se usa uma Máquina Kirlian para fotografar a aura do sujeito.
O interesse do vice-coordenador do NEFP pelo estudo da paranormalidade nasceu de uma marcante experiência pessoal. Tronconi atribui a cura de uma hérnia-de-disco ao poder mental da enfermeira que o tratou utilizando passes de mão. Arrebatado pela experiência, Tronconi hoje é coordenador e professor do curso de extensão “Ensaios Parapsíquicos”, promovido pela UnB. O programa do curso é um pout pouri esotérico envolvendo viagem astral, regressão a vidas passadas, kirliangrafia, chacras, interpretação de sonhos, retrocognição e outros assuntos que nos fazem imaginar como são as aulas de física que Tronconi leciona na universidade.
2.2. Onde está o limite?
Criticar qualquer tipo de pesquisa na universidade é caminhar em uma linha muito tênue. Uma escorregadela e se atravessa para o lado do preconceito e do patrulhamento da liberdade acadêmica. Por isso é importante responder muito claramente: por que a presença da pseudociência na universidade é tão nociva?
Como ponto de partida é preciso deixar claro que nenhum tema jamais deve ser considerado tabu na universidade. Muito pelo contrário. As pesquisas acadêmicas sobre as pseudociências são o necessário ferramental para o cético que promove a razão e o pensamento crítico. Afinal não se deve esperar que as alegações da astrologia e outras artes divinatórias, de diversas terapias alternativas e de inúmeros fenômenos paranormais sejam descartadas somente por desafiar o senso comum. Pesquisar é preciso.
O que torna o quadro atual preocupante é que o que se está fazendo em grande parte dentro da universidade não é somente pseudociência, é ciência ruim; ciência ruim em nome da legitimação da pseudociência. Os astrólogos, ufólogos, terapeutas alternativos e religiosos que vêm utilizando o nome da universidade em suas pesquisas não estão em busca da verdade, mas apenas da validação, custe o que custar, de suas crenças pessoais.
Estes pesquisadores invertem o caminho que devem trilhar as novas idéias e levam suas controversas pesquisas aos meios de comunicação leigos antes de fazê-las chegar aos periódicos científicos, onde poderiam ser avaliados por seus pares. Na verdade, bem poucos destes trabalhos chegam a ver a luz de uma revista peer-review. Trabalhos com resultados extraordinários, que se verdadeiros fossem obrigariam a ciência a rever seus conceitos mais básicos e introduzir novas entidades, forças e “energias”, são divulgados entusiasticamente sem a devida análise crítica dos resultados e sem que as potenciais fontes de erros sejam apontadas. Citações bibliográficas são seletivas e simplesmente ignoram toda a massa de dados, geralmente abundante nestes casos, que se opõem à visão dos autores. Acima de tudo, não há replicação dos trabalhos; um único resultado favorável é considerado suficiente para confirmar as hipóteses do ansioso autor – muito pouco para quem está dirigindo na contramão do conhecimento estabelecido. O que estes pesquisadores estão fazendo é o que Richard Feynman chamava de “ciência de culto a carga”: algo que usa a linguagem científica, que segue os preceitos básicos do método científico e que até mesmo parece ciência – pelo menos tanto quanto um boneco parece um homem –, mas no qual falta um elemento fundamental: integridade científica.
Mas a universidade também contribui para a legitimação do pensamento mágico quando serve de fórum para debate com a pseudociência. Tome-se como exemplo a recente palestra sobre “criacionismo científico” (uma contradição a partir do título) ocorrida na Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP) sob (tímidos) protestos da comunidade científica. Sabe-se que para o criacionismo não interessa o resultado do debate, mas apenas ser debatido; o simples fato de ocupar o palanque em uma grande universidade e ser ouvido pela elite intelectual do país já empresta ao movimento criacionista a imagem de cientificismo que ele tanto busca para se colocar como alternativa ao ensino da evolução. Novamente não se trata de impor nenhum tipo de censura ou de “inquisição sem fogueiras” – como rapidamente protestam os que se consideram censurados ou perseguidos. Mas permitir que tudo seja dito em nome da ciência e esperar que as evidências falem por si mesmas, decididamente não funciona em um país onde grassa a ignorância científica e onde a mídia, vilã e vítima, noticia apenas a parte sensacional da notícia. Além disso, mesmo o mais ferrenho defensor da liberdade irrestrita de expressão concordará com o cético mais radical que há uma linha em algum lugar entre, por exemplo, a quiromancia e a acupuntura. Onde está a linha descobre-se checando-se as evidências e não emprestando o púlpito à primeira cigana interessada. E evidentemente ninguém está mais apto a investigar evidências do que a universidade.
Por fim, é preciso lembrar que a crença em certas pseudociências traz um ônus para a sociedade. Este ônus pode não ser óbvio enquanto a astrologia fica restrita aos inocentes horóscopos das páginas dos jornais e o feng-shui às revistas de decoração. Mas e quando mapas astrológicos estiverem sendo usados em entrevistas de emprego ou nas salas dos tribunais? Alguém gostaria de perder um emprego ou uma causa judicial por causa da hora em que foi retirado da barriga de sua mãe? E quando pêndulos estiverem auxiliando os diagnósticos médicos e a imposição de mãos for prática comum nos hospitais públicos, no lugar dos tratamentos convencionais? E quando tudo isso estiver acontecendo porque a universidade deu a astrólogos e radiestesistas a mesma credibilidade profissional de engenheiros e médicos? Quanto tempo ainda temos até que cirurgias espirituais, devidamente abalizadas pelas pesquisas “científicas” da academia, sejam cobertas pelos planos de saúde? É bom lembrar que, no Brasil, a homeopatia já chegou lá.
3. A causa
O Brasil tem um quadro desanimador no que diz respeito ao combate à pseudociência. O movimento cético no país é um fenômeno relativamente recente, 100% amador e que não surgiu dentro da universidade e sim na Internet, em torno de grupos de discussão e uns poucos sites. Sendo um grupo formado em sua maioria por jovens ainda sem credenciais científicas, o Movimento Cético Brasileiro, se podemos chamá-lo assim, sofre por falta de credibilidade, o que até agora tem lhe permitido atingir apenas de raspão a mídia. Já a comunidade científica nacional está muito mais ocupada em concorrer pelos minguados recursos oficiais e lutar contra as dificuldades diárias de infra-estrutura, sucatamento de laboratórios, cargas horárias excessivas e toda a sorte de problemas, do que em combater voluntariamente a penetração da pseudociência em seu quintal.
Mas não faltam apenas as pessoas para combater o pensamento mágico, faltam os meios de divulgação. Dizer que as revistas de ciência no Brasil são tolerantes com as pseudociências é dizer pouco. Dizer muito seria chamar de “revistas de ciência”, revistas que já produziram suplementos especiais sobre astrologia e feng-shui. Sobre este tema, Allan Novaes, em seu artigo “Ciência em crise, jornalismo em queda?”, mostra que, de 2000 a 2004, 75% das capas da revista Superinteressante, maior revista de seu gênero no Brasil, foram sobre ciências sociais ou humanas e 42% foram de temas religiosos, místicos ou pseudocientíficos. Aqui, a crise do jornalismo científico se confunde a tal ponto com a questão da infiltração da pseudociência nas universidades que fica difícil distinguir causa e efeito.
Há outros motivos por que pseudociências e misticismos encontraram um terreno fértil nas universidades. O Brasil é um país que respira religiosidade, e onde existe uma mistura, talvez única no mundo, de religiões, cultos e seitas. Projetos de pesquisa e extensão como os que a UnB, UFRJ e UFRGS vêm realizando são populares porque mostram uma aproximação entre ciência e espiritualidade que muitos acreditam ser saudável. A idéia de que a ciência deveria dar as mãos à religião em uma espécie de “retorno às origens”, e que deste casamento forçado entre o materialismo e o espiritualismo nasceria o melhor dos dois mundos é muito promovida pelas ciências humanas e bastante apreciada pelo público leigo. Condenar esta promiscuidade científico-místico-religisosa, modernamente camuflada por palavras como “interdisciplinaridade” e “multidisciplinaridade”, tem soado cada vez mais politicamente incorreto, e os cientistas não raro o evitam. Some-se a este quadro a natureza do povo brasileiro, hábil em conciliar o inconciliável – por exemplo, no sincretismo religioso que mescla os cultos africanos com o cristianismo – e sua aversão a qualquer tipo de confrontação que possa ser levemente confundido com intolerância religiosa.
O que nos leva a maior de todas as causas para disseminação da pseudociência nas universidades: o relativismo. O relativismo é a idéia de que todos os saberes são apenas questão de opinião, fruto do seu contexto histórico e social. O relativista acredita que todos os pontos de vista são igualmente válidos e vê a ciência apenas como mais uma maneira de representar o mundo, em pé de igualdade com a não-ciência. A verdade científica, nesta onda relativista, é vista apenas como um produto social, uma questão democrática, de consenso da maioria. Desta maneira, as teorias mais exóticas tornam-se irrepreensíveis e passam a ser escudadas por bordões como: “Você tem a sua opinião, eu tenho a minha” ou “tudo é relativo”. Novamente, torna-se uma imperdoável intolerância criticar qualquer saber, por mais primitivo e desligado da realidade que seja. Francamente impulsionado pelas ciências humanas e sociais, esse relativismo paralisante não reconhece como final nenhum conhecimento científico (o que rigorosamente falando não é mesmo), mas tampouco descarta nenhuma alegação extraordinária; tudo pode ser, como pode não ser. Se a ciência ainda não comprovou a eficácia daquela “técnica milenar”, o problema é da ciência; dê-lhe mais alguns milênios e ela chegará lá.
4. Conclusão
Não se propõe com este trabalho nenhum tipo de censura à produção universitária, mesmo em se tratando de fenômenos supostamente paranormais, místicos ou esotéricos; pelo contrário, este trabalho propõe o acirramento da discussão sobre estes fenômenos, mas definindo o escopo e o valor da ciência, que parece ter se esmaecido em algum lugar do passado.
Acima de tudo, este trabalho propõe o estabelecimento de políticas vindas de dentro dos comitês universitários, que restrinjam o impacto de pesquisas levianas, sejam elas naquilo que hoje se considera pseudociência ou não. Este trabalho propõe que núcleos de pesquisa de borda, como o NEFP e o NIETE, sejam julgados periodicamente por sua produção científica, publicada em revistas indexadas e que isso determine seu subsidiamento pela universidade pública; isto sempre foi sinônimo de pesquisa de qualidade em qualquer área e a pesquisa em fenômenos paranormais não deve ser exceção. E, finalmente, este trabalho sugere que cursos de extensão e pós-graduação em terapias médicas alternativas promovidas pelas ciências da saúde sejam julgados e aprovados por comitês multidisciplinares (similares aos comitês de ética normalmente requeridos para aprovar estudos que trabalham com populações) que possam atestar a cientificidade e segurança das técnicas ensinadas. No mínimo, isso servirá para mover estas terapias alternativas para fora do escopo da ciência.
“Nosso conhecimento pode ser apenas finito, enquanto nossa ignorância deve ser necessariamente infinita”.
Karl Popper