Um dos grandes problemas deste século é a anticiência, que é a tendência anti-intelectualista e irracionalista de negar a potencialidade da ciência e da tecnologia e fomentar a pseudociência na sociedade. Mas o que é pseudociência? Para responder essa pergunta, temos que olhar rapidamente para a história da filosofia, especificamente para o problema filosófico conhecido como o Problema da Demarcação, mas também temos que observar algumas características essenciais que podem nos ajudar a definir o que é ciência e pseudociência.
O Problema da Demarcação é a ideia de que não conseguimos atribuir satisfatoriamente uma definição e um limite geral do conhecimento científico em relação ao conhecimento não-científico, que pode incluir tanto a filosofia (a metafísica, a epistemologia, a ética, etc.) como a pseudociência (a astrologia, a parapsicologia, a psicanálise, etc.). Alguns filósofos da ciência, como Karl Popper e Imre Lakatos, até ofereceram as suas possíveis soluções para o problema, mas com o passar do tempo suas teses mostraram-se obsoletas ou insuficientes. Por isso, neste artigo pretendemos dar uma definição de ciência que seja compatível com todos os procedimentos metodológicos que um pesquisador (ou grupos de pesquisadores) toma durante a investigação científica.
Para estipularmos uma definição de “pseudociência”, temos que analisar algumas características daquilo que consideramos ciência. Por exemplo, sabemos que o conhecimento científico se inicia com uma hipótese formalizada, baseada em um fundo de conhecimento anterior e que segue determinados procedimentos exigidos durante a investigação científica. Basicamente, aquilo que podemos tomar como algo próximo de um método científico consta com: (1) levantamento de um corpo de conhecimento (ou fundo de conhecimento anterior); (2) escolha do problema neste corpo de conhecimento; (3) formulação ou reformulação do problema; (4) aplicação ou invenção de uma abordagem para tratar o problema; (5) solução tentativa (hipótese, teoria, projeto experimental, instrumento de medida, etc.); (6) aferir a solução tentativa; (7) avaliar a solução tentativa à luz do teste e do conhecimento básico; (8) revisão ou repetição de quaisquer dos passos prévios; (9) estimativa do impacto sobre o conhecimento básico; (10) avaliação final (até nova informação). Então, de acordo com essas características, podemos tomar a definição de ciência do físico e filósofo da ciência Mario Bunge, publicada na obra La Ciencia: Su Método y Su Filosofía (1985), em que argumenta que “a ciência é um corpo de conhecimento que pode ser caracterizado como racional, sistemático, exato, verificável e, portanto, falível”. Assim, qualquer ideia que pretenda descrever algo sobre a natureza, mas rechace qualquer um desses procedimentos na estruturação e formalização de sua hipótese pode ser considerada não-científica.
Uma ideia não-científica pode ser filosófica ou mesmo pseudocientífica. Por exemplo, sabemos que toda investigação científica pressupõe certos princípios filosóficos ou mesmo metafísicos (p. ex., a existência de uma realidade externa e acessível aos indivíduos em alguma medida). Então, certamente, o nosso problema não será voltado em criticar o conhecimento não-científico da filosofia, uma vez que a filosofia é o princípio e também o ethos que norteia a investigação científica.
A pseudociência, diferentemente da ciência e da filosofia, possui características notórias que a fazem divergir de ambos os campos de investigação. Mario Bunge, em sua obra Cien Ideas (2014), diz que a pseudociência possui pelo menos duas das dez características seguintes: (1) invoca entes imateriais ou sobrenaturais inacessíveis ao exame empírico (não inclui entes ideais tais como números e sistemas lógico-matemáticos); (2) é crédula porque não submete suas especulações à prova alguma (p. ex., a ufologia afirma que extraterrestres estão visitando a Terra e fazendo círculos nas plantações, mas ela não faz nenhum esforço para comprovar ou refutar essa hipótese); (3) é dogmática porque não muda os seus princípios quando falham; (4) rejeita a crítica (p. ex., psicanalistas rejeitam qualquer criticismo à psicanálise); (5) não encontra e nem utiliza leis gerais; (6) seus princípios são incompatíveis com alguns dos princípios mais seguros da ciência (p. ex., a telecinesia contradiz o princípio de conservação de energia); (7) não interage com nenhuma ciência propriamente dita (p. ex., a parapsicologia não se atualiza com os dados da psicologia e da neurociência); (8) é fácil porque não requer larga aprendizagem; (9) só a interessa o que possa ter uso prático (p. ex., não busca a verdade desinteressada que é uma das características da ciência básica); (10) mantém-se à margem da comunidade científica. Assim, qualquer campo que tenha duas ou mais das características mencionadas acima pode ser caracterizado como pseudocientífico.
Algumas pessoas podem questionar o motivo do termo “pseudociência” sempre estar sendo utilizado para caracterizar algo como ruim, mas alguns fatores nos ajudam a justificar essa razão. Sven Ove Hansson, que é professor de filosofia e defensor do ceticismo científico, disse em seu artigo Science and Pseudoscience (2008), publicado na Stanford Encyclopedia of Philosophy, que James Pettit Andrew, um antigo historiador inglês, é reconhecido como o primeiro pensador a usar o termo “pseudociência” para referir-se à alquimia como uma “fantástica pseudociência” (1796). Larry Laudan, que é um filósofo da ciência, disse em seu artigo The Demise of the Demarcation Problem (1983) que “ao longo de sua história, a palavra sempre teve um significado claramente difamatório”. Por isso, é razoável que o termo seja aplicado sempre de maneira pejorativa para designar uma atitude dogmática e contrária ao espírito científico. Como apontou Hansson, “um termo essencialmente carregado de valor tem que ser definido em termos de valor carregado”.
A pseudociência, não em seu campo per se, levanta debates acadêmicos importantes nas disciplinas de ciência e filosofia. Na ciência, a pseudociência pode ser usada para demonstrar os seus efeitos, por exemplo, ao apontar que a astrologia pode ser prejudicial no trabalho por fomentar algum tipo de exclusão social baseado unicamente em seu signo ou para demonstrar que as terapias alternativas são ineficazes (ou piores do que um efeito placebo). Em filosofia, a pseudociência pode ser usada para levantar questionamentos importantes sobre o seu impacto na política e na saúde, por exemplo, ao levantar questões éticas tais como se é justificável que o Ministério da Saúde promova práticas pseudocientíficas com o dinheiro público, ou mesmo se as pessoas têm a obrigação de saber quando uma terapia ou medicamento é realmente baseado em evidência. Assim, é justificável termos uma definição de “pseudociência” para que possamos trabalhar em busca de soluções objetivas para os problemas que a sua prática pode trazer.
Referências
- Bunge, Mario. Cien Ideas. Editora Laetoli, 2014.
- Bunge, Mario. La Ciencia: Su Método y Su Filosofía. Ediciones Siglo Viente, 1985.
- Bunge, Mario. Philosophy of Science: From Problem to Theory. 1. Transaction Publishers, 1998.
- Bunge, Mario. Philosophy of Science: From Explanation to Justification. 2. Transaction Publishers, 1998.
- Hansson, Sven Ove, “Science and Pseudo-Science”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2015 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/entries/pseudo-science/>.
- Laudan, Larry, 1983. “The Demise of the Demarcation Problem”, pp. 111–127 in R.S. Cohan and L. Laudan (eds.), Physics, Philosophy, and Psychoanalysis, Dordrecht: Reidel.