No texto anterior, demos o contexto histórico do surgimento da terapia cognitivo-comportamental (TCC) e começamos a esboçar o modelo cognitivo. Nesta segunda parte, trabalharemos com o conceito de crença, fundamental para entendermos como surgem pensamentos automáticos e como eles afetam o comportamento. O texto base é o livro Terapia Cognitivo-Comportamental – Teoria e Prática, da Judith S. Beck, filha do criador da TCC: Aaron T. Beck (foto).
Crenças
A definição de crença em filosofia é um problema bastante complicado, mas, para os propósitos deste texto, podemos pensar em crenças como ideias nas quais as pessoas acreditam. No começo da infância e ao longo do desenvolvimento, as crianças formam crenças a respeito de si mesmas, das pessoas ao seu redor e do seu mundo – ainda escrevo um texto sobre isso usando como pano de fundo o filme Divertidamente. Essas crenças mais centrais, chamadas de crenças nucleares, frequentemente não se articulam nem para a própria pessoa, ou seja, são crenças que a pessoa tem, mas que não pensa ou talvez nunca tenha pensado nelas. (Um exemplo caricato seria a crença compartilhada por quase todas as pessoas de que ovelhas não se dissolvem em água. Provavelmente você que está lendo este texto tem essa crença, embora eu duvide que alguma vez você já tenha pensado nela.) Essas crenças são tidas como verdades e a pessoa dificilmente as questiona – ela considera que é assim que são as coisas.
Vamos tomar como modelo a partir daqui uma daquelas pessoas que ao lerem o texto de divulgação científica pensaram que não tinham capacidade para entendê-lo. Vamos chamá-la de Lúcia. Lúcia tem o mesmo tipo de pensamento cada vez que se engaja numa atividade nova, como aprender a cozinhar, tirar carteira de motorista ou ter que apresentar um seminário na faculdade. Parece que uma das crenças nucleares de Lúcia é: “Eu sou incompetente”. Essa crença pode ser ativada em momentos nos quais ela está depressiva ou pode operar quase o tempo todo. Nesses casos, a percepção que Lúcia tem de alguma situação ou evento se dá pelo filtro dessa crença.
Isso costuma funcionar da seguinte maneira: Lúcia dá ênfase às informações que confirmam sua crença de que é incompetente e desconsidera ou negligencia informações contrárias. Tomemos o caso do seminário que Lúcia tem que apresentar. Ela tirou uma nota baixa na apresentação e pensa que isso significa que ela é incompetente, mas desconsidera que outras pessoas que ela julga competentes também tiram notas baixas eventualmente. Ela não dá importância para o fato de que teve pouco tempo para se dedicar ao seminário e que ficou de cama doente às vésperas da apresentação. Ela também não se lembrou de que o seminário anterior que apresentou foi muito elogiado pela professora e que, naquele caso, ela teve mais tempo para elaborá-lo. No entanto, quando ela recebeu a nota, sua crença de incompetência foi ativada e ela passou a processar as informações por esse filtro. Sua avaliação enviesada e muito pouco realista da situação confirmou sua crença e, portanto, a crença se manteve. Essa avaliação não é intencional, mas automática e muitas vezes nem mesmo consciente.
É importante frisar que isso ocorre com todas as pessoas, todos nós processamos informações de acontecimentos de acordo com as crenças que possuímos. Essa tendência de focar naquilo que confirma nossas crenças e relevar o que discorda delas é chamado de viés de confirmação. A particularidade do caso da Lúcia é que ela tende a focar muito mais nas informações negativas e atribuir a si a responsabilidade pelas coisas ruins que ocorrem a ela e às pessoas próximas. Por exemplo, se ela chama alguém para almoçar num restaurante e a comida não cai bem para essa pessoa, ela pode pensar que é sua culpa a pessoa passar mal e que é tão incompetente que nem escolher um bom lugar para almoçar ela consegue. Ela, no entanto, não pensa que a outra pessoa ter passado mal é devido ao fato de ter comido muito além da conta.
Quando coisas boas acontecem a si ou a pessoas próximas, ela tende a atribuir a responsabilidade disso ao acaso. Ela não interpreta uma nota boa numa prova como evidência de que é inteligente e competente, mas pensa que a prova estava muito fácil ou que deu sorte ao chutar as respostas. Ou seja, nos casos em que essa crença está ativada, Lúcia processa dados positivos tirando deles toda sua positividade (“fui bem na prova, mas é porque ela era uma prova fácil”) para que se encaixem em seu esquema cognitivo, confirmando sua crença de incompetência. Há ainda alguns dados positivos que passam desapercebidos ou que são rejeitados por Lúcia. Por exemplo, Lúcia não considera em sua avaliação o fato de conseguir gerenciar muito bem seu dinheiro e de nunca ter reprovado em nenhuma disciplina. Boa parte do trabalho do terapeuta cognitivo-comportamental é ajudar o paciente a processar os dados de forma mais realista, mostrando como ele pode estar dando uma interpretação enviesada para uma situação ao desconsiderar alguns aspectos e salientar outros.
Crenças intermediárias
Vimos acima alguns exemplos de como crenças podem produzir pensamentos automáticos frente algumas situações, agora precisamos elaborar melhor como funciona essa relação para mostrar como isso afeta o comportamento. Pensemos então em níveis de cognição, dentre os quais os mais centrais são os das crenças nucleares e os mais superficiais são os dos pensamentos automáticos. Entre ambos, há uma classe de crenças intermediárias, que vamos dividir em atitudes, regras e pressupostos. Esse nível intermediário de cognição frequentemente não é articulado. Vejamos um exemplo disso tomando o caso da Lúcia. Ela parece expressar as crenças intermediárias esquematizadas a seguir:
Atitude: “É terrível falhar.”
Regra: “Sempre desistir se uma tarefa parecer muito difícil.”
Pressuposto: “Se eu me engajar em uma tarefa difícil, vou falhar. Se eu a evitar, ficará tudo bem.”
Lembremos que sua crença nuclear de incompetência surgiu de uma avaliação enviesada e que as emoções que acompanharam essa avaliação (tristeza, raiva, etc) podem ter dado origem a sua atitude de que é terrível falhar. Esse pano de fundo ajuda a explicar porque Lúcia tem aquela regra e aquele pressuposto. Todo esse nível de cognição raramente é articulado para Lúcia, ou seja, ela não tem consciência dessas crenças. No entanto, esse esquema de crenças influencia sua forma de perceber o mundo, o que, por sua vez, influencia seus pensamentos automáticos, suas emoções e seu comportamento. Esquematizando:
O leitor pode estar se perguntando sobre a origem dessas crenças. Vamos dar uma palavrinha sobre isso. “Desde os primeiros estágios do desenvolvimento, as pessoas tentam entender seu ambiente. Elas precisam organizar sua experiência de forma coerente para que possam funcionar adaptativamente […] Suas interações com o mundo e as outras pessoas, influenciadas pela sua predisposição genética, conduzem a determinados entendimentos: suas crenças, as quais podem variar na sua acurácia e funcionalidade. Um aspecto muito significativo para o terapeuta cognitivo-comportamental é que as crenças disfuncionais podem ser desaprendidas, e novas crenças baseadas na realidade e mais funcionais podem ser desenvolvidas e fortalecidas durante o tratamento.” (Beck, 2013)
Todo o nível de cognição mais superficial depende das crenças nucleares e, por isso, a forma mais efetiva de ajudar o paciente a se sentir melhor e se comportar mais adaptativamente é modificá-las. Assim, o paciente tende a interpretar as situações de modo mais realista. Entretanto, nem sempre é possível efetuar tais modificações logo no início do tratamento. Isso vai depender, dentre outros fatores, das demais crenças que o paciente formou sobre si mesmo serem adaptativas e realistas. Caso não sejam, a tentativa de modificar as crenças nucleares no início do tratamento pode abalar a aliança terapêutica e diminuir a credibilidade do psicólogo, fatores essenciais para o sucesso da terapia cognitivo-comportamental.
A sequência comum do tratamento envolve focar primeiramente na identificação e modificação dos pensamentos automáticos que se originaram das crenças nucleares, intervindo indiretamente nesse nível mais central de cognição. Para isso, o paciente é ensinado identificar pensamentos automáticos e a avaliá-los com um certo distanciamento. O terapeuta começa a quebrar a confiança que o paciente tem em seus pensamentos ao ensiná-lo que não é só porque ele acredita em algo que isso seja necessariamente verdadeiro e que mudar o pensamento, tornando-o mais realista, faz com que se sinta melhor e progrida no seu tratamento. O foco desse texto não é ensinar habilidades cognitivas ao leitor, mas apenas dar um panorama do funcionamento da terapia cognitivo-comportamental, por isso não entraremos em maiores detalhes sobre como avaliar e responder aos pensamentos automáticos.
Esse nível superficial de cognição é mais específico e pontual, ao contrário da generalidade das crenças nucleares, portanto, é mais fácil para o paciente reconhecer a distorção em seus pensamentos. Ao longo do tratamento, o terapeuta ajuda o paciente a avaliar e responder aos seus pensamentos automáticos em diversas situações, proporcionando alívio do seu sofrimento. Essas experiências fazem com que o paciente fique mais aberto a questionar suas crenças intermediárias e nucleares. A modificação desse nível de cognição é mais efetiva a longo prazo e diminuí as chances de recaída.
Relação entre pensamentos automáticos e comportamentos
Retomando o esquema que esboçamos anteriormente, temos que crenças nucleares são formadas ao longo do desenvolvimento e dão origem a crenças intermediárias, as quais podem ser atitudes, regras ou pressupostos. Numa dada situação, as crenças mais centrais modulam a interpretação, que é expressa pelos pensamentos automáticos; estes, por sua vez, influenciam como a pessoa reage naquela situação, ou seja, afetam seu comportamento, suas emoções e as respostas fisiológicas do seu organismo. No caso de Lúcia, nas situações em que precisa estudar algum assunto novo, sua conceituação cognitiva é a seguinte:
Com o treino cognitivo, Lúcia poderia avaliar seus pensamentos tão rapidamente quanto eles aparecessem, e seu comportamento, suas emoções e sua fisiologia não seriam afetados daquela maneira. Ela poderia ter respondido ao seu pensamento automático dizendo a si mesma: “esse assunto até pode ser difícil, mas não significa que seja impossível. Eu já passei por essa situação antes e já consegui entender assuntos tão difíceis quanto esse. Se eu continuar tentando, provavelmente vou entender melhor.” Esse tipo de avaliação e resposta ao pensamento automático diminuiria a tristeza e o desânimo de Lúcia e ela provavelmente continuaria lendo em vez de assistir vídeos no YouTube. Em suma, seus pensamentos automáticos, advindos da influência de suas crenças nucleares sobre incompetência na interpretação da situação, desencorajaram Lúcia a realizar a tarefa.
Esta é uma simplificação meramente didática do modelo cognitivo usado na terapia cognitivo-comportamental. Pensamentos, humor, fisiologia, comportamento e o ambiente se afetam mutuamente o tempo todo. Várias podem ser as situações desencadeantes, desde memórias, imagens e a própria emoção que a pessoa está experienciando, até comportamentos ou a percepção de alguma alteração fisiológica, como sentir a boca secando ou o coração disparando. Esse modelo é bastante útil para realizar a conceituação cognitiva do paciente e pensar as melhores estratégias para intervenção. A conceituação vai sendo constantemente aperfeiçoada conforme novas informações surgem, o terapeuta levanta hipóteses sobre o paciente e as confirma ou rejeita de acordo com os dados que o paciente for apresentando. Às vezes, podem ser planejados experimentos para testar essas hipóteses e algumas crenças do paciente. A conceituação pode ser testada, também, perguntando diretamente ao paciente o que ele acha. Via de regra, ele confirmará se estiver adequada.
Aproveito para colocar uma lista dos erros mais frequentes que as pessoas cometem no seu raciocínio.
《1. Pensamento do tipo tudo ou nada: você enxerga uma situação em apenas duas categorias em vez de em um continuum.
Exemplo: “Se eu não for um sucesso total, sou um fracasso.”
2. Catastrofização: você prevê negativamente o futuro sem levar em consideração outros resultados mais prováveis.
Exemplo: “Eu vou ficar muito perturbada. Eu não vou conseguir trabalhar.”
3. Desqualificar ou desconsiderar o positivo: você diz a si mesmo, irracionalmente, que as experiências positivas, realizações ou qualidades não contam.
Exemplo: “Eu realizei bem aquele projeto, mas isso não significa que eu sou competente; só tive sorte.”
4. Raciocínio emocional: você acha que algo deve ser verdade porque você “sentiu” intensamente (na verdade, acreditou), ignorando ou desvalorizando as evidências em contrário.
Exemplo: “No trabalho, eu sei fazer muito bem as coisas, mas eu ainda me sinto um fracasso.”
5. Rotulação: você coloca em você e nos outros um rótulo fixo e global sem considerar que as evidências possam levar mais razoavelmente a uma conclusão menos desastrosa.
Exemplo: “Eu sou um perdedor. Ele não é bom.”
6. Magnificação/Minimização: quando você se avalia ou avalia outra pessoa ou uma situação, você irracionalmente magnifica o lado negativo e/ou minimiza o positivo.
Exemplo: “Receber uma avaliação medíocre prova o quanto eu sou inadequado. Tirar notas altas não significa que eu seja inteligente.”
7. Filtro mental: você dá uma atenção indevida a um detalhe negativo em vez de ver a situação como um todo.
Exemplo: “Como eu tirei uma nota baixa na minha avaliação [que também continha várias notas altas], significa que eu estou fazendo um trabalho malfeito.”
8. Leitura mental: você acredita que sabe o que os outros estão pensando, não levando em consideração outras possibilidades muito mais prováveis.
Exemplo: “Ele acha que eu não sei nada sobre este projeto.”
9. Supergeneralização: você tira uma conclusão negativa radical que vai muito além da situação atual.
Exemplo: “[Como eu me senti desconfortável na reunião], eu não tenho as condições necessárias para fazer amigos.”
10. Personalização: você acredita que os outros estão agindo de forma negativa por sua causa, sem considerar explicações mais plausíveis para tais comportamentos.
Exemplo: “O encanador foi rude comigo porque eu fiz alguma coisa errada.”
11. Afirmações com “deveria” e “tenho que” (também chamados de imperativos): você tem uma ideia fixa precisa de como você e os outros devem se comportar e hipervaloriza o quão ruim será se essas expectativas não forem correspondidas.
Exemplo: “É terrível eu ter cometido um erro. Eu sempre deveria dar o melhor de mim.”
12. Visão em túnel: você enxerga apenas os aspectos negativos de uma situação.
Exemplo: “O professor do meu filho não faz nada direito. Ele é crítico, insensível e ensina mal.”》(Beck, 2013)
Referência
Beck, J.S. (2013). Terapia Cognitivo-Comportamental: Teoria e Prática. (2. ed.). Porto Alegre: Artmed