Há alguns anos, uma aluna me procurou pra comentar que eu era o único ateu que ela conhecia. Acho que a abordagem dela foi parecida com a que eu tive ao me aproximar de uma mulher muçulmana pela primeira vez: uma espécie de “curiosidade respeitosa”. Basicamente, ela cuidou pra não ser invasiva, mas sua expressão era a de “Fale mais sobre isso, pois você é de outro planeta”. Acabamos trocando só algumas palavras, e eu acho que isso mexeu muito mais comigo do que com ela. Pra seguir com a metáfora, eu me senti como um alienígena.
Eu não fico defendendo o ateísmo em sala de aula. Contudo, como professor de Psicologia, eu preciso pautar diversos conteúdos que, direta ou indiretamente, conflitam com algumas crenças religiosas. Por exemplo, há momentos em que eu falo um pouco sobre a teoria da evolução, sobre a tese de que o comportamento humano é multideterminado e sobre as evidências de que a nossa mente é a “perspectiva subjetiva” daquilo que o cérebro faz – e não é muito fácil conciliar isso com ideias como o criacionismo, o livre-arbítrio e a imortalidade da alma, respectivamente. A maioria dos meus alunos é cristã, e deve ser por isso que muitos deles ficam meio inquietos enquanto conversamos sobre esses assuntos.
E eles fazem perguntas – muitas perguntas! Algumas delas me levam a crer que uma grande parcela dos estudantes universitários do Brasil jamais teve uma conversa séria sobre ciência. Pra ser franco, em geral, os meus alunos não são cientificamente bem alfabetizados… e isso me dá um gás a mais pra lhes ensinar um pouco daquilo que aprendi como estudante e pesquisador. E eu me arrepio!
Ainda que eu não fique defendendo o ateísmo em sala de aula – e este momento politicamente “sombrio” me obriga a reforçar isso –, acho que, de vez em quando, eu acabo me empolgando ao cumprir o meu papel de educador científico. É aí que os meus pelos eriçam, e é aí que um ou outro aluno acaba desconfiando que eu possuo uma visão de mundo bastante… diferente. Por causa disso, uns quatro ou cinco deles já me perguntaram (publicamente) se eu acredito em Deus. Sem hesitar, sempre afirmei que “Não; eu sou ateu”.
Mas, no ano passado, um pequeno grupo de alunos pareceu ter ficado meio insatisfeito com a brevidade dessa resposta. Tanto é que, assim que a aula acabou, demos início a um papo interessantíssimo sobre as grandes questões existenciais. Algumas das perguntas que eles me fizeram foram “Você acha que tudo surgiu do nada?”, “Morreu, acabou?” e, é claro, “Que história é essa de que a gente é parente dos macacos?”. Percebi que uma aluna queria mais me desafiar do que saciar suas curiosidades, mas uma boa dose de bom-humor acabou lhe desarmando. “Temos boas razões pra crer que não existe vida após a morte”, eu comentei, “mas tomara que você esteja certa, e não eu”. Todos rimos.
Eu não tenho vontade de defender o ateísmo em sala de aula, mas eu me sentiria muito mal se tivesse que esconder a minha descrença. Aparentemente, isso é o que duas colegas minhas de trabalho vêm fazendo. Apesar de já termos conversado sobre religião diversas vezes, elas só foram me revelar que são ateias há poucos meses – e a gente se conhece há alguns anos. Embora seja melhor não questionarmos a fé dos demais professores – os quais expressam sua religiosidade aqui e ali –, acho que nós não deveríamos nos esforçar pra “não sermos descobertos”. Pra pôr isso num tom mais afirmativo, eu acho que seria melhor que a gente expressasse o nosso ateísmo como algo normal, natural, trivial… até mesmo porque, no final das contas, não há nada de mais nisso, né?
Mas algumas pessoas insinuam que “ser ateu” abarca muito mais coisas do que negar que deuses existem. Como eu já discuti em outra ocasião, nem mesmo o ceticismo científico é uma característica onipresente entre os membros da nossa turma. Alguns ateus acreditam em coisas como astrologia e reencarnação, e, aparentemente, uma parte considerável de nós não encara as religiões como instituições que precisam ser imediatamente eliminadas. Por falar nisso, essa noção de que os ateus são os “inimigos de Deus” talvez explique por que outra aluna ficou com ranço de mim quando a minha falta de fé veio à tona. Felizmente, depois de alguns meses de convivência sem qualquer embate apocalíptico, ela acabou me confessando que superou isso. Preconceito vencido.
Eu prefiro falar apenas sobre Psicologia em sala de aula, mas… comecei a sentir que eu precisava de um espaço pra falar mais livremente sobre ateísmo, ciência e espiritualidade. Foi aí que, depois de ponderar muito, eu criei o meu canal no YouTube. Aos poucos, venho divulgando e discutindo os resultados de várias pesquisas sobre a crença e a descrença em Deus, e eu acabei de estrear um quadro cujo propósito é, digamos, sanar aquela “curiosidade respeitosa” que tanta gente parece ter sobre como-é-levar-uma-vida-sem-fé (vídeo logo abaixo). Longe de querer largar tudo pra me tornar um youtuber profissional, minha intenção básica é a de contribuir, tanto quanto eu puder, pra que possamos confrontar o ditado popular de que “religião não se discute”. E, se esse confronto oportunizar a alfabetização científica de mais gente e a desmistificação do ateísmo, melhor ainda, né?
A propósito, e num tom que se situava entre a confissão relutante e a admiração, aquela “moça-do-ranço” me revelou que vem acompanhando os meus vídeos. Pode até parecer bobeira, mas, por essas e outras, eu não tenho mais me sentido como um alienígena. Em vez disso, eu sou só um professor mineiro, casado, roqueiro, cruzeirense e ateu.