Na segunda-feira, dia 22 de setembro de 2014, nós do Universo Racionalista gravamos uma matéria à convite da Rede Bandeirantes de Televisão com o médium Waldemar Coelho, que é popularmente conhecido por realizar cirurgias espirituais em seu centro espírita na cidade de Leme, interior de São Paulo.
A ideia dos produtores era fazer uma matéria apresentando os dois lados da moeda: uma com a explicação espírita e outra com a explicação científica. Para isso, foi necessária a convocação de dois céticos, Wellton e eu, envolvidos na análise de pseudociência e uma atriz, chamada Graça Carneiro da Cunha, para testar e, quem sabe, desmascarar o médium.
Pretendo expor aqui a minha conclusão completa do caso, uma vez que na edição das matérias quase sempre algumas partes são removidas e, às vezes, tal procedimento pode tirar algumas frases do contexto. Mas, antes de começarmos, quero esclarecer que este texto se dividirá em cinco partes, sendo um ataque à pessoa, ao ambiente, à atriz, ao método espiritual e, por um fim, uma conclusão.
Introdução da reportagem
Waldemar Coelho, a pessoa
A cara e o jeito carismático de falar do senhor Waldemar Coelho faz qualquer pessoa gostar e se sentir confortável ao conversar com ele. Não senti ódio em suas palavras, mas ele também não sabia que estávamos lá para contestá-lo, pois a informação que eles tinham era de que nós fazíamos parte da equipe de suporte da TV Band.
A informação que recebi foi que ele, de fato, se sentiria incomodado com pessoas céticas no local, por isso tentamos ser cautelosos, mas confesso que isso foi bem difícil, principalmente na hora de assistir in loco a “cirurgia espiritual”.
O Wellton levantou alguns questionamentos essenciais na hora da entrevista direta com o médium, o que fez com que ele recuasse em algumas respostas, como no caso do raios-X e no caso do corte cirúrgico. Em poucas palavras, o médium afirmou possuir um método de interação com a parte “paraespírita” do corpo, que, segundo ele, seria “a ligação da matéria com o espírito” (explicarei mais abaixo).
O ambiente
O centro espírita fica em Leme, interior de São Paulo, perto de São Carlos. Dentro do centro, há diversos quartos para hospedar turistas, com lugares apropriados para crianças, jovens e idosos.
Os responsáveis pelo centro, disseram-nos que as pessoas que têm condições financeiras pagam R$150,00 para se hospedar e quem não tem condições financeiras não paga absolutamente nada. Além disso, as pessoas que se hospedam nesses quartos realizam três sessões “espirituais” com o médium, incluindo a cirurgia espiritual.
No centro espírita, há algo como uma Igreja. Porém, penso que os espíritas chamariam aquilo de “templo” para não soar como religião, porque muitos praticantes dessa seita não gostam de traçar qualquer relação do espiritismo como uma religião, mas como uma ciência e uma filosofia. (Embora, como mostrado em diversos artigos, o espiritismo é melhor definido como uma religião pseudocientífica.)
Nesse templo, encontram-se fotografias de várias celebridades internacionais e uma imagem de Jesus logo ao centro do pequeno “altar”. Haviam também uma fotografia do Chico Xavier, uma imagem pintada do “espírito” que supostamente entra no médium (Ramatís) e uma revista aberta logo na entrada do templo, dizendo que o espiritismo está presente em “eventos científicos”.
Tinha um bazar com várias camisetas de esportistas nacionais e internacionais, inclusive de um jogador de basquete da seleção brasileira autografada. Nesse bazar, eles vendem esses produtos para que possam manter o centro em atividade.
A atriz espírita
A produção do programa contratou às pressas uma atriz para testar autenticidade dos poderes do médium. O nome dela é Graça, mas eu não senti nenhuma graça no final. Ela me contou que estava se sentindo desconfortável em fazer esse papel de atriz porque ela acredita fielmente no espiritismo. (O leitor pode não acreditar nessa afirmação, mas linkei o Facebook dela para você entrar em contato a qualquer momento).
No caminho até o local, a atriz estava ensaiando no carro sobre o que dizer para o médium. Por fim, chegamos à conclusão que ela deveria mentir que estava com um câncer no cérebro.
Explicando melhor o caso, ela manteve seu nome original, algumas histórias pessoais, principalmente envolvendo seu trabalho como secretária da USP, mas não seu trabalho como atriz por motivos óbvios. Ela acrescentou que estava sentindo dores fortíssimas na cabeça, que estavam atrapalhando todas suas tarefas diárias. Para dar mais consistência a narrativa, ela explicou que havia procurado ajuda médica e que, através de uma ressonância magnética, os médicos haviam detectado um tumor de 2 cm no cérebro. Por fim, a atriz incluiu a ideia de que sua filha havia contatado o programa através de uma carta, pedindo ajuda para que a produção pudesse levá-la ao médium Waldemir Coelho por causa da recomendação de conhecidos.
O método espiritual
O espetáculo começa com uma música bem lenta e não muito baixa que transmite calma e tranquilidade. Eu diria que é o ambiente ideal para se meditar (meditar ao estilo budista). A música soa como um estímulo para um tipo de transe psicológico. O ambiente criado estabelece um tipo de êxtase interior, é como uma droga alucinógena que faz com que uma pessoa se sinta no pico da uma montanha ao ar livre enquanto medita. A luz do templo fica bem baixa, tornando o ambiente um pouco escuro.
Após a música começar, o ritual espírita começa com uma oração semelhante ao tradicional Pai Nosso católico, mas com algumas letras trocadas, por exemplo, ao invés de “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido”, é “perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”.
Em seguida, o médium caminha até o centro do templo, abaixa a cabeça e “tcharam”! O espírito entra em seu corpo, mudando sua postura, deixando em uma posição fecal ou algo análogo ao O Corcunda de Notre Dame. Então, ele começa a falar um português com um sotaque forçadamente americanizado. No entanto, sua voz não muda absolutamente nada, continua a mesma coisa.
As cirurgias começam numa salinha escura com a porta fechada, mas do lado do templo. Logo que percebi isso, avisei ao Wellton que isso dificultaria qualquer análise precisa de um suposto truque de ilusionismo.
Antes de explicar o suposto procedimento cirúrgico, devo destacar algumas coisas que me chamaram a atenção: (1) a equipe toda não podia entrar no local, mas havia espaço para todos; (2) quando comecei a mexer no celular, enquanto estávamos no templo, a esposa do médium saiu repentinamente da sala e avisou um ajudante que estava perto da porta da cirurgia que devíamos deixar os celulares desligados. Confesso que não havia entendido o motivo, mas depois pressupôs que haviam câmeras no local e que, dentro da sala, a mulher observava nossos movimentos – e, possivelmente, acertei, pois tinha até um computador na sala. Mas também pensei em algumas possibilidades, como a de que talvez os celulares pudessem estar causando algum tipo de interferência em seus possíveis equipamentos, que pudessem servir para sustentar a fraude do procedimento cirúrgico.
Em seguida, dois pacientes, além da nossa atriz, toparam em deixar a equipe filmar o procedimento cirúrgico. Porém, como a equipe toda não podia entrar no local, o Wellton acabou sendo o primeiro da fila.
Quando começou o procedimento cirúrgico, pensei que assistiria a um show de truques de alto nível e que talvez até eu poderia acabar caindo no truque por alguma falha de observação. O que aprendi como cético é que nem sempre o truque sai da mão daquele que quer te enganar – às vezes, sai do próprio assistente e, por isso, observei cautelosamente todos os movimentos, incluindo o das assistentes que passavam os algodões e demais objetos.
Mas o showzinho espiritual foi pior do que imaginei. Antes de entrar na sala, eles pedem para que todos tirem os sapatos, mas não sei o motivo, pois eles não me disseram. Quando começa a operação, o médium usa um tipo de bisturi dourado que não corta nada. Ele passa sobre a pele da pessoa, no local do problema. Então, a assistente entrega um algodão molhado de álcool para o médium. Em seguida, ele coloca o algodão no local do problema e pressiona com o seu falso bisturi dourado, como se estivesse puxando alguma coisa de dentro da pessoa, e depois joga o algodão no chão. No momento do procedimento, pensei que o bisturi, o algodão ou talvez uma possível bolsa de sangue em sua mão tivesse algum compartilhamento falso que permitisse injetar sangue ou pedaços de órgãos de animais para depois afirmar que removeu um tumor ou coisa semelhante. Mas, por incrível que pareça, acabei pisando num pedaço de um algodão que ele jogou no chão e, de fato, não tinha absolutamente nada no algodão. Aliás, tinha apenas o álcool e mais nada. (James Randi consegue reproduzir esses truques de uma maneira muito mais sofisticada.) Depois ele passa um tipo de iodo ou mercúrio – aquele remédio meio laranjinha – no local da “operação” e, em seguida, coloca um curativo sobre a pele, sendo que ele nem cortou e nem sangue saiu. Chega a ser hilário, como uma criança brincando de médico, para não dizer outra coisa. E, sem mais encenações teatrais, acaba: a operação está concluída.
E a atriz?
Ela contou a sua história inventada para o médium com o espírito supostamente incorporado e, pasme, ele nem percebeu que ela estava mentindo nem que a atriz não tinha nenhum câncer no cérebro. Assim, ele aceitou fazer o procedimento cirúrgico para remover o câncer, que nunca existiu.
Mas para variar, de acordo com a própria atriz, o médium disse algumas coisas pessoais para ela depois da cirurgia, por exemplo, “eu sei que você tem problemas familiares, mas isso vai passar”. Em seguida, ela caiu em lágrimas e afirmou que ele acertou em cheio ao decifrar os problemas de sua vida e, infelizmente, acabou dando credibilidade total aos “acertos” vagos e subjetivos do médium, ignorando o erro mais drástico, que prova totalmente que seus métodos são fraudulentos.
O médium claramente afirmou algo totalmente subjetivo que pode ser aplicado à vida de qualquer pessoa do mundo. Como sempre, esses charlatães nunca fazem uma previsão exata ou descrevem um acontecimento preciso sobre sua vida pessoal. Eles sempre utilizam essas artimanhas para minimizar quaisquer chances de erro, algo que os astrólogos normalmente fazem. Há também a possibilidade de que ela tenha falado algo sobre sua vida pessoal antes da cirurgia, algo que o médium pudesse utilizar posteriormente com ela após o procedimento. As pessoas nem sempre percebem que acabam se expondo demais, dizendo coisas pontuais sobre sua vida, e depois mal se lembram dos erros ou do que disseram. Inclusive, esse é um fenômeno psicológico comum, descrito pelo astrônomo e divulgador científico Carl Sagan em sua obra “O Mundo Assombrado Pelos Demônios” e pelo historiador e psicólogo Michael Shermer em seu livro “Por Que as Pessoas Acreditam em Coisas Estranhas”, em que as pessoas costumam lembrar mais dos acertos do que dos erros.
Conclusão
Visivelmente, os métodos não passam de fraude, porque a atriz acabou demonstrando que não existe qualquer fundamento de verdade nos métodos do médium, pois ele não foi capaz de perceber que a atriz contratada estava mentindo.
Suas explicações depois das cirurgias possuem falhas argumentativas e contradições monstruosas. Primeiramente, ele diz que “some” quando incorpora o espírito e que todas as lembranças são esquecidas. Mas ele se esquece de que tem um cérebro: é o cérebro que guarda toda a informação, não o “espírito”. Logo, ele deveria se “lembrar” do ocorrido, estar ciente de todos os acontecimentos ali presentes. Porém, caso fosse o espírito, ele não seria uma “entidade” explicitamente espiritual, mas material ao conseguir interagir com o mundo natural e ter a plena capacidade de remover células cancerígenas do corpo humano, sendo essas mesmas doenças de cunho natural, não de “paraespiritual” ou “espiritual”.
Outra contradição é encontrada em sua afirmação de que seu método trata apenas de doenças que a medicina tradicional não consegue curar, pois essas doenças, de acordo com o médium, transcenderiam os “limitados” métodos materialistas. Mas ele se esquece de que a maioria dos pacientes que ele atendeu tinham doenças materiais, como um senhor com hepatite e outro com problema no ombro, entre outras doenças conhecidas no campo da medicina tradicional e que possuem tratamentos mais eficazes.
Ele cometeu uma outra contradição importante que não pode ser ignorada: ele disse que as marcas das cirurgias espirituais aparecem nos raios-X. Mas quando o Wellton perguntou como isso ocorria, já que o procedimento transcenderia o método natural, ele não soube responder. Ele disse um enfático: “não sei dizer”.
Outro ponto importante é que ele mesmo afirmou não lembrar de nada do que acontece após o “espírito” entrar em seu corpo. Porém, na entrevista, ele mostrava ter todas as respostas para todos os questionamentos. Em outras palavras, supondo que tudo que ele disse inicialmente fosse verdade, ele mesmo não poderia ter tal conhecimento de causa, porque seria necessário o espírito entrar em seu corpo para explicar todo o processo cirúrgico.
É interessante notar também que quase todas as doenças que ele se propõe a tratar seriam difíceis, mas não impossíveis de serem analisadas à luz da ciência, uma vez que alguns problemas necessitariam de vários dias de repouso e, consequentemente, de análises rigorosas, isolando certas variáveis, em testes clínicos. (Controle, randomização e cegagem seriam indispensáveis.) Sabemos, por exemplo, que muitas doenças podem desaparecer com o tempo, ou mesmo que o quadro clínico do paciente pode melhorar após o pico dos sintomas.
Tanto o ambiente quanto o médium de certa forma colaboram para que alguns pacientes, principalmente com dores em determinadas regiões do corpo, estejam susceptíveis ao efeito placebo, proporcionando um alívio imediato. Isso, porém, não se deve aos méritos do médium, mas a crença da pessoa de que ela está sendo tratada. Portanto, é um processo psicológico desencadeado pelo próprio cérebro.
O médium diz que seus métodos são eficazes e que os pacientes se mostram contentes com isso, mas ele não apresenta nenhuma correlação entre seu método e a recuperação clínica de seus pacientes. Ele destaca que alguns pacientes ainda seguem com seus tratamentos na medicina tradicional, então fica difícil credenciá-lo pelo sucesso. Penso que seria interessante a existência de um banco de dados, registrando todos os pacientes que não conseguiram se recuperar de seus problemas mais graves e que, posteriormente, vieram a falecer pela falha de seus métodos nada convencionais.
No final da reportagem, deixei claro que os métodos do Waldemar Coelho são simples fraudes e que podem ser explicados das formas mais simples possíveis, utilizando até mesmo a Navalha de Occam, que basicamente quando uma ideia possui um grande número de hipóteses, geralmente a explicação mais simples é a certa, e expliquei também a contradição em relação ao conceito físico e espiritual. O Wellton explicou a parte psicológica do problema, esclarecendo que o ambiente fortalece aquele forte desejo psicológico de cura e fomenta a fé das pessoas no sobrenatural. Outro ponto a se destacar é o de que a atriz praticamente se esqueceu do drástico erro cometido pelo médium, que prova a fraude, e apenas se recordou das frases emocionais e subjetivas ditas pelo médium e, por isso, creditou o serviço do médium como algo positivo (lembrando que a atriz contratada possui fortes vínculos emocionais com o espiritismo, como apontei no início).
Tenho muito mais coisas para falar sobre o caso (como o olho do médium, enquanto parte do mundo natural, é capaz de enxergar dentro do corpo para remover as supostas doenças e mais algumas coisas sobre os processamentos cognitivos do médium, o quadro de melhora dos pacientes e a incapacidade do médium em realizar operações mais fáceis e que podem ser verificadas facilmente como a remoção de uma simples cárie), mas acho que já expliquei até demais. É uma pena que esse cara ainda continue promovendo esses métodos antiéticos, imorais e pseudocientíficos como se fossem verdade, enganando diversas pessoas inocentes, desesperadas e desprovidas de qualquer conhecimento científico e senso crítico, pessoas que foram dominadas completamente pelo seu lado emocional em busca de tratamentos para os seus problemas.
No final da entrevista, a repórter me fez uma pergunta:
– Para você, quem é o médium Waldemar Coelho?
Eu disse:
– Um charlatão!
Dessa forma, a reportagem chega ao fim…
E ratifico minha afirmação expondo as seguintes leis:
CP – Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940.
Art. 283 – Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
Curandeirismo.
CP – Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940.
Art. 284 – Exercer o curandeirismo:
I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III – fazendo diagnósticos:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.
Forma qualificada.