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“A Indústria da Cura”: série da Netflix é jornalismo medíocre que negligencia a ciência

Por Harriet Hall
Publicado na Science-Based Medicine

A Netflix produziu recentemente uma série de documentários condenáveis ​​chamada “The Goop Lab”. Era uma divulgação da abordagem não científica da atriz Gwyneth Paltrow sobre a área do bem-estar e um ode à credulidade. A série fala sobre cogumelos psicodélicos, técnicas de respiração para desenvolver tolerância ao frio, esquemas para atingir o orgasmo, alegações de métodos anti-envelhecimento, cura energética e intuição (incluindo comunicação com os mortos). Tudo isso é apresentado de uma forma “chique”, sem discussão de evidências reais e sem presença de céticos. Quando ouvi que ao menos outro novo documentário da Netflix, A Indústria da Cura, apresentaria prós e contras para várias modalidades de medicina alternativa, eu esperava algo mais equilibrado. Enquanto eu assistia, minhas esperanças foram prontamente destruídas. Tenho certeza de que suas intenções eram boas e fizeram um esforço para seguir o mantra jornalístico de apresentar com justiça os dois lados de questões polêmicas, mas falharam terrivelmente.

Cada episódio começa com a mensagem de que se destina a entreter e informar, não a fornecer conselhos médicos. Eles perguntam: “A indústria do bem-estar: ela realmente é sobre saúde e cura ou estamos sendo vítimas de falsas promessas?” Mas eles não respondem a essa pergunta. A “evidência” sobre a questão saúde e cura é puramente anedótica, apresentada por pacientes e médicos crédulos, muitas vezes indivíduos carismáticos cujas crenças são apresentadas por meio de histórias emocionais feitas para tocar o nosso coração. Essas histórias esperançosas se alternam com declarações mais sóbrias de especialistas, dizendo que as evidências de eficácia simplesmente não existem e os tratamentos costumam ser prejudiciais, mas esses segmentos são mais curtos e apresentados principalmente por indivíduos menos carismáticos. Acho que o espectador comum provavelmente se lembrará do entusiasmo dos crentes, desconsiderará os avisos, e tentará se submeter ao tratamento, porque “vai que…”

Eles enfatizam o quão difundida e lucrativa a indústria do bem-estar se tornou, então parece lógico abordar as modalidades mais populares e lucrativas. Eles deviam ter começado com quiropraxia, acupuntura, homeopatia, medicamentos fitoterápicos, naturopatia e medicina energética. Na verdade, esses são os que abordei em minha série de palestras no YouTube. Em vez disso, eles abordaram estes tópicos:

  1. Óleos essenciais
  2. Sexo tântrico
  3. Adultos bebendo leite materno
  4. Jejum
  5. Ayahuasca
  6. Terapia de picada de abelha

Acho sua seleção de tópicos irracional e bizarra. Não posso deixar de me perguntar como eles os escolheram.

Em primeiro lugar, existe realmente uma controvérsia entre relatos anedóticos e estudos científicos rigorosos? Nesse caso, isso está apenas na imaginação do público. Cientistas, médicos e pensadores críticos entendem que depoimentos não são evidências; a única maneira confiável de descobrir se um tratamento é eficaz e seguro é testá-lo em ensaios clínicos controlados. As pessoas que fizeram A Indústria da Cura parecem acreditar que depoimentos e boatos são boas evidências e são tão confiáveis ​​quanto os estudos científicos, talvez até mais.

Vou cobrir o Episódio 1 sobre óleos essenciais em detalhes para dar uma ideia de sua abordagem e, em seguida, farei comentários mais breves sobre os outros cinco episódios.

Episódio 1: óleos essenciais

Eles começam dizendo que os óleos essenciais costumavam ser uma coisa “bem marginalizada”, mas agora eles estão aparecendo em toda parte, e a aromaterapia se tornou uma indústria multibilionária.

Eles apresentam vários defensores da aromaterapia. Primeiro, uma enfermeira integradora que se certificou em aromaterapia clínica após mais de um ano de estudos. Ela nos diz que viu os efeitos da aromaterapia.

A seguir está a mãe de uma adolescente diagnosticada com autismo aos 4 anos de idade. Ela consulta um aromaterapeuta especializado no tratamento de crianças com necessidades especiais e que usava óleos essenciais para acalmar seu filho igualmente autista e ajudá-lo a dormir. O aromaterapeuta diz: “Eu sei do que os óleos são capazes”.

Então, ouvimos de um quiroprático que acha que, quando se tornou um cristão, teve uma resolução milagrosa de vários problemas de saúde e mostra como sua família de seis usa óleos essenciais para tudo. Ele acredita que os óleos essenciais são eficazes para muitas coisas, diz que os viu curar o câncer e afirma as substâncias ajudaram milhões. Mas ele protesta que o FDA (Food and Drug Administration, agência federal dos EUA que regulamenta medicamentos e alimentos) proibiu ele de fazer essas alegações. Por esse motivo, ele não vende óleos essenciais, mas dirige um negócio lucrativo e pode recomendá-los por meio de um podcast.

Após esses depoimentos, ouvimos de um especialista doutorado menos carismático que diz: “Não há evidências clínicas”. Mas ela deixa um mistério no ar, dizendo que os óleos essenciais não curam, mas podem ajudar as pessoas a lidar com a doença.

Em seguida, uma distribuidora da DoTerra credita aos óleos essenciais o salvamento de sua vida depois que a cirurgia falhou em remover completamente um tumor cerebral. Ela afirma que existe um óleo essencial para 99,9% dos problemas de saúde. Eles ajudam a limpar o sangue na parte externa da célula (o que raios isso significa?). Os óleos cítricos deixam você feliz, o óleo de hortelã-pimenta alivia as dores de cabeça e o olíbano é ótimo para o câncer. Ela diz que o FDA não gosta de óleos essenciais e a impede de fazer alegações que podem prejudicar os lucros da Indústria Farmacêutica. Ela diz que os óleos essenciais são mais seguros, baratos e eficazes do que os cuidados médicos convencionais. Ela diz que vê histórias de milagres na vida de tantas pessoas. Por isso, recrutou uma equipe de 16.000 e desenvolveu seu negócio para obter uma renda de seis dígitos com DoTerra.

Em seguida, um segmento sobre as outras empresas de marketing multinível de óleos essenciais mostra a Young Living Convention, apresentando imagens bizarras de um sujeito chamado Gary Young fazendo palhaçadas, de exibições pirotécnicas e de um centro de convenções lotado de discípulos superentusiastas. Depois que a coluna vertebral de Gary Young foi “rompida”, disseram-lhe que nunca mais voltaria a andar, mas ele diz que se recuperou da lesão na coluna depois de beber apenas suco de limão e água por mais de 200 dias, seguido por uma extensa reabilitação. Depois de ser processado por ferir um paciente, ele se mudou para o Equador, onde as leis eram mais brandas. Ele se safou dando óleos essenciais para pacientes por via intravenosa e realizando uma cirurgia na vesícula biliar sem uma licença médica. Ele acreditava que os óleos essenciais tinham propriedades curativas milagrosas. Você pode ler sobre as alegações duvidosas da aromaterapia (em inglês) no Quackwatch e você pode ler sobre Gary Young aqui (em inglês), onde ele é descrito como um vendedor ambulante sem formação acadêmica com um histórico de prisões por fraude na saúde. A Indústria da Cura, não fala sobre tudo isso; em vez disso, mostra todos aqueles milhares de apoiadores entusiasmados vibrando por ele em sua Young Living Convention.

Uma ex-distribuidora da Young Living diz que ela é uma das centenas de milhares de mulheres das quais a Young Living se aproveitou. Um advogado que entrou com uma ação coletiva diz que a Young Living é um esquema ilegal de pirâmide. Uma das querelantes explica que a pessoa não obtém dinheiro com a venda dos óleos, mas com o recrutamento de outros distribuidores, e eles não são pagos, a menos que também se comprometam a comprar 100 dólares em produtos todos os meses. Ela continuou acumulando um estoque que não conseguia vender. Se você atingir o nível de Royal Crown Diamond, estará ganhando $1,8 milhão por ano; mas apenas 46 pessoas alcançaram esse nível. Isso é 0,0015% dos membros. 94% dos membros tinham uma renda média de $1,00 por mês; a maior parte era dinheiro perdido. Um dos efeitos mais insidiosos são os danos colaterais. Os membros recrutam familiares, amigos e vizinhos, e quando o castelo de cartas desmorona, isso prejudica todas essas pessoas. É uma empresa predatória.

Outra ex-distribuidora explica como ela sofreu uma “lavagem cerebral”. Disseram que os óleos eram tão puros que podiam ser ingeridos (como se “pureza” significasse “segurança”) e ela os usou de várias maneiras até desenvolver uma erupção na pele. Disseram a ela que não podiam ser os óleos, mas poderia significar que seu corpo estava se desintoxicando, então ela se tratou com mais óleos. Isso causou uma erupção corporal total, inchaço que impossibilitava a articulação de seus membros e escorrendo líquido das áreas afetadas. Ela enviou fotos para a empresa para serem compartilhadas com o diretor médico, mas nunca obteve resposta. Quando ela tornou sua história pública, ela ouviu falar de muitas outras mulheres que haviam experimentado reações alérgicas devastadoras semelhantes.

Finalmente, voltamos ao adolescente autista. Sua mãe acha que os óleos essenciais melhoraram seu sono e diminuíram sua agitação, e ela até conseguiu formar a palavra “and” (ou seja, “e” em português) em uma frase pela primeira vez. Mas ela é mostrada batendo as mãos da maneira típica do autista. A mãe diz que os óleos essenciais não são tudo, mas são ferramentas valiosas que “fortalecem” a família e os colocam em um lugar melhor.

Episódio 2: sexo tântrico

Eles apresentam terapeutas que ensinam as pessoas a amar a si mesmas e a ter orgasmos corporais totais e clientes que afirmam que a terapia transformou suas vidas. Dizem que ninguém sabe o que é o Tantra, mas dizem que é tudo e qualquer coisa. Um especialista em religiões aponta que a terapia sexual moderna é uma perversão da filosofia original do Tantra e chamar o que eles fazem de Tantra é apropriação cultural. É mostrado casos de gurus tântricos abusando sexualmente de discípulos.

Episódio 3: Adultos tomando leite materno

Eles mostram um homem que está convencido de que o leite materno curou seu câncer de próstata e outro homem que o bebe como suplemento para musculação. A série fala sobre onde comprar leite materno e, como contraponto, mencionam um estudo que analisou amostras de leite materno e descobriu que muitas estavam tão contaminadas com bactérias que se comparam com amostras de esgoto.

Episódio 4: Jejum

Eles descrevem várias maneiras de praticar o jejum parcial ou intermitente, mas passam a maior parte do tempo focando em pessoas que fazem jejuns supervisionados apenas ingerindo água por até um mês. Testemunhos de clientes descrevem resultados maravilhosos, mas também mencionam um homem que morreu.

Episódio 5: Ayahuasca

A ayahuasca é uma droga alucinógena de origem vegetal descoberta por índios na selva amazônica. A prática original era uma pessoa doente consultando um xamã. O xamã então tomava ayahuasca para acessar outra realidade onde aprendia conhecimentos para ajudar o paciente. Na versão moderna, os próprios pacientes tomam ayahuasca. Alguns viajam para a Amazônia; a ayahuasca é ilegal nos Estados Unidos, mas algumas pessoas contornam a lei chamando-a de item sagrado de igreja (que eles criaram com o único propósito de obter e usar a ayahuasca). Eles bebem o líquido de sabor desagradável, ficam violentamente nauseados, vomitam repetidamente e depois têm alucinações bizarras. Os pacientes afirmam que foi uma experiência que mudou a vida, com resultados milagrosos, como a cura do vício em drogas e álcool.

Episódio 6: Terapia com picada de abelha

Apiterapeutas afirmam que as picadas de abelha têm muitos benefícios para a saúde: eles são supostamente eficazes para artrite, doença crônica de Lyme (que não existe) e vários outras, até mesmo câncer. Este episódio pelo menos apresentou um cético notável, nosso próprio Dr. Steve Novella (da Science-Based Medicine), que fez um trabalho honroso ao explicar o que os estudos científicos descobriram e por que faltam evidências. Infelizmente, seu segmento é imediatamente seguido por um terapeuta de picadas de abelha falando sobre por que as picadas de abelha são tão poderosas (desconsiderando completamente o fato de que Novella disse que não são). Eles mencionam o perigo de alergia e anafilaxia e a necessidade de ter um injetor de epinefrina (EpiPen) à mão, mesmo que o paciente tenha sido picado muitas vezes antes sem nenhuma reação. Mas o segmento final, que provavelmente ficará na mente do espectador, é uma extensa demonstração de como um paciente pode encomendar abelhas vivas e aplicá-las em sua própria pele. O paciente apresentado sente pena das abelhas e chora porque elas têm que morrer.

Efeito chicote

Esses documentários foram suficientes para induzir um efeito chicote. Eles me empurraram para um lado e para o outro entre apoios cheios de entusiasmo a essas práticas alternativas e avisos sóbrios dos céticos, mas um tanto chatos, até que eu mal soubesse o que pensar. Não houve transições e nenhuma tentativa de reconciliar as informações contraditórias.

O que está faltando

Eles não fizeram nenhuma tentativa de explicar como a ciência deve ser usada para testar se um tratamento é eficaz. Eles não explicaram os muitos fatores psicológicos que levam as pessoas a chegarem a falsa conclusão que tratamentos ineficazes são eficazes. Enquanto assistia aos episódios, pude pensar em muitas outras explicações para o que as pessoas pensavam ter observado. Apenas para dar um exemplo, o autismo é um atraso no desenvolvimento, não uma ausência total de desenvolvimento. Não temos como saber que a adolescente não teria feito os mesmos progressos no mesmo período de tempo sem os óleos essenciais, mas com uma atenção semelhante. Eles não tentaram descrever o fenômeno do placebo, ou a regressão à média, ou o curso natural da doença, ou a regressão espontânea, ou a falácia post hoc ergo propter hoc.

Em vez de nos ajudar a entender essas outras possibilidades, A Indústria da Cura tenta supor que os tratamentos devem ter sido eficazes, as anedotas devem ter sido boas evidências e, apesar dos pessimistas e das evidências científicas dos estudos, o tratamento ainda pode valer a pena tentar, especialmente se você está desesperado e a medicina convencional não o ajudou.

Mensagens infelizes que eles passam

Eles frequentemente criticam a medicina baseada na ciência e permitem que os espectadores presumam que podem dispensar medicamentos e terapias contra o câncer e recorrer a remédios naturais “mais eficazes”. Eles endossam teorias da conspiração e se entregam ao jogo da “perseguição aos médicos”. Eles apresentam “especialistas” que geralmente são quiropráticos, naturopatas e pessoas com pouco ou nenhum treinamento médico. Eles raramente apresentam médicos reais e especialistas qualificados. Eles mencionam homeopatia, acupuntura e outras terapias não baseadas na ciência sem uma palavra de crítica, como se fossem terapias convencionais eficazes que comprovadamente funcionam. Eles nos dizem que um tratamento não testado é eficaz para uma doença falsa, a versão crônica da doença de Lyme. Eles afirmam não oferecer conselhos médicos, mas sua mensagem provavelmente tentará os espectadores a rejeitar tratamentos eficazes em favor de tratamentos não testados e possivelmente perigosos.

Conclusão: dá a ilusão de balanço entre os diferentes pontos de vista, mas atingem um só público

Eles poderiam ter oferecido outras explicações plausíveis para as percepções de cura. Eles poderiam ter educado os espectadores sobre todas as maneiras pelas quais as pessoas passam a acreditar que os tratamentos ineficazes funcionam e sobre o fato de que estudos controlados são necessários para testar as crenças contra a realidade. Eles poderiam ter tentado reconciliar as conclusões opostas dos partes “pró” e “contra”, em vez de nos empurrar sem ter tempo para refletir prum lado e pro outro entre os dois sem qualquer transição, explicação ou comentário. Em vez de explicar a ciência, eles oferecem jornalismo pérfido, apelos à emoção e credulidade infundada. O melhor jornalismo visa informar, educar e fazer um mundo melhor. Esta série da Netflix não é um bom trabalho jornalístico. É tendencioso e, sem dúvida, enganará muitos espectadores. Dois polegares para baixo.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.