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A Internet é um antro de pseudociência racista

Por Angela Saini
Publicado na Scientific American

No mês passado, desativei temporariamente minha conta do Twitter após uma floodagem colossal de abusos racistas em meu feed, incluindo um homem no Texas [EUA] incitando seus seguidores a telefonar para um programa de rádio da NPR no qual fui convidada para perguntar sobre “genocídio branco”. Outros jogavam um jogo de adivinhação em torno da cor da minha pele, acreditando que isso os ajudaria a avaliar meu QI. No YouTube, um dos editores de Mankind Quarterly, um jornal pseudocientífico fundado após a Segunda Guerra Mundial para argumentar contra a dessegregação e a mistura racial, imitou-me vestindo uma “camisa indiana” (sou britânica; meus pais nasceram na Índia). Os comentários do video diziam que eu deveria voltar para o lugar de onde vim.

É apenas mais um dia online.

O abuso que vi não é incomum. Outros recebem coisas bem piores, especialmente se estiverem expostos na mídia. Meu crime particular foi ter escrito um livro de divulgação científica bem revisado sobre o porquê as categorias raciais não são biologicamente significativas como pensamos e como, de fato, foram usadas para justificar a escravidão e o Holocausto. Essas são ideias tão amplamente aceitas no meio acadêmico hegemônico que deveria ser pouco controverso repeti-las. Mesmo assim, ao ler alguns dos comentários que recebi, pode-se imaginar que estava desesperadamente iludida.

Em Superior: The Return of Race Science [ainda não publicado no Brasil, em português, na tradução livre: Superior: O Retorno da Ciência da Raça], entrevisto pesquisadores na vanguarda da pesquisa sobre as diferenças humanas para expor jornalisticamente a perigosa história do racismo científico. É um terreno que já foi pisado por estudiosos respeitados no passado, incluindo o biólogo evolucionista Stephen Jay Gould, a historiadora Evelynn Hammonds e o antropólogo Jonathan Marks, bem como jornalistas como Amy Harmon do New York Times. Apesar de todos os nossos esforços, às vezes parece que não conseguimos avançar mais.

Na verdade, o debate público sobre raça e ciência afundou na lama. Afirmar até o fato inegável de que somos uma espécie humana hoje significa entrar em conflito com uma conspiração de teóricos lunáticos. Os “realistas raciais”, como se autodenominam online, juntam-se às crescentes fileiras de negadores da mudança climática e dos antivacinas que insistem que a ciência está sob o jugo de algum grande plano criado para manter os olhos de todos vendados. No caso deles, um complô de esquerda para promover a igualdade racial sendo que, para eles, a igualdade racial é impossível por razões biológicas.

Como chegamos aqui? Como a sociedade conseguiu dar tanto espaço para aqueles que genuinamente acreditam que nações inteiras têm capacidades cognitivas inatamente superiores ou inferiores, que pensam que as crianças de herança mista são geneticamente deficientes, que presumem que a cor da pele de alguém pode dizer algo sobre seu QI, e que está trabalhando ativamente para ressuscitar a eugenia?

À medida que o panorama da mídia mudou, atraindo o público dos canais tradicionais para uma infinidade de canais online, aqueles com visões desatualizadas se sentiram saindo das sombras solitárias em direção à luz. Eles deixaram os blogs obscuros e se sentaram ao lado de escritores e acadêmicos de renome. A Internet abriu a porta para racistas e sexistas, e eles entraram alegremente. Eles estão pisando em nossos tapetes com seus sapatos sujos, e ainda estamos oferecendo algo para eles beberem. Eles normalizaram o extremismo, a pseudociência e o obscurantismo.

A culpa está espalhada divididamente. Corporações de mídia social, como Twitter e Facebook, permitiram a proliferação de redes racistas. Uma pesquisa recente da Universidade do Oeste de Sydney, Austrália, examinando uma década de ciberracismo, mostrou que grupos de ódio racial são sofisticados e criativos na disseminação de propaganda racista para seus seguidores online. A rede social Gab e o jornal Psych parecem ter sido criados expressamente para dar a esses elementos seu próprio espaço sem restrições. Revistas online como Breitbart, e as empresas que anunciam por meio delas, são cúmplices em apresentar uma fachada bonita para o preconceito. E, então, vem a segunda parte da publicidade quando, mesmo que apenas como indignação e descrença, esse conteúdo é compartilhado online. Isso, por sua vez, infectou o discurso político dominante, que desceu o nível cada vez mais a cada dia.

Os racistas gostam de expressar isso como uma questão de liberdade de expressão. Eles argumentam que têm o direito de dizer o que querem, que o mundo precisa de mais “diversidade de opinião”. Mas o resto de nós tem o dever de sentar e ouvir a pseudociência racista? A sociedade é obrigada a dar-lhes plataformas, por mais absurdos que venham a ser? Não há a responsabilidade de proteger aqueles cuja humanidade e segurança são ameaçadas pela minoria que busca negar às pessoas direitos e liberdades iguais com base na raça ou gênero?

As pessoas já imaginaram que a mídia social de alguma forma se autorregularia, que apenas a verdade sobreviveria no mercado de ideias. Se os únicos racistas que sobrassem na sociedade fossem bandidos sem educação na marginalidade da vida cotidiana, que mal eles poderiam representar?

Mas, como fui lembrada quando pesquisei para escrever o livro Superior, existem racistas em todos os níveis da sociedade, inclusive na academia, ciência, mídia e política. Eles têm dinheiro e poder. O abuso desferido por esses racistas espertos não é do tipo que atacam pessoas com os punhos, mas o racismo da retórica. É caracterizado por eufemismos inteligentes (o termo “realista racial” é um exemplo perfeito), argumentos cuidadosamente manipulados e supressão abusiva de evidências dos dados.

Os cientistas já foram avisados. A revista Nature publicou uma série de editoriais nos últimos anos alertando os pesquisadores sobre extremistas que procuram abusar de seu trabalho, particularmente geneticistas populacionais e aqueles que trabalham com DNA antigo. Um pesquisador me disse que, assim que ele ou seus colegas publicam dados online, eles consegue vê-los quase na hora sendo explorados por aqueles com agendas políticas. Então, essas “descobertas” manipuladas são publicadas em blogs e mídias sociais como uma pseudociência racista.

O que começou com lunáticos advindos da obscuridade da Internet do outro lado dos nossos computadores pode terminar, se não tivermos cuidado, com essas pessoas na porta da frente de nossas casas. O populismo, o nacionalismo étnico e o neonazismo estão crescendo em todo o mundo. Se quisermos evitar que os erros do passado voltem a acontecer, precisamos estar mais vigilantes. O público deve responsabilizar os gigantes da Internet, reconhecer o ódio disfarçado de conteúdo acadêmico e aprender como marginalizá-lo e ser dedicado em expulsar a pseudociência do debate público. Este não é um problema de liberdade de expressão; trata-se de melhorar a qualidade e a precisão das informações que as pessoas veem online e, assim, criar uma sociedade mais justa e gentil.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.