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Carl Sagan: “A colonização de planetas é meta atingível”

Publicado na Revista VEJA

“Leve-me a seu líder.” Se um dia, na extraordinária hipótese de um ser extraterrestre visitar a Terra, o homenzinho verde disser essa frase, banalizada pelos filmes de ficção científica, certamente se estará referindo ao cientista Carl Sagan. Esse americano de 61 anos, autor de Cosmos, o livro científico mais vendido de todos os tempos, é o terráqueo que mais batalhou por um contato interplanetário. Sagan chefiou as expedições das sondas americanas Mariner e Viking, pioneiras na exploração do sistema solar. Foi o pai dos grandes projetos de rastreamento do espaço em busca de sinais de rádio emitidos por civilizações alienígenas. Quando o dinheiro público escasseou, levantou doações de todos os lados. Numa tarde de conversa, convenceu o cineasta Steven Spielberg, diretor de ET – O Extraterrestre, a doar 100 000 dólares para um grupo de pesquisadores dedicados a distinguir os zumbidos interestelares dos murmúrios eletrônicos de um ET de verdade. Carl Sagan está mais otimista do que nunca. “Na vasta imensidão do espaço, devem existir outras civilizações mais antigas e avançadas que a nossa”, disse o astrônomo numa entrevista exclusiva a VEJA (no quadro ao lado). “As chances de a humanidade captar algum sinal delas aumenta a cada ano, com o barateamento e o refinamento das tecnologias de rastreamento do cosmo.”

Para o cientista, as próximas décadas são promissoras. Existem avanços em todos os campos. O mais encorajador é a descoberta de planetas que permaneceram séculos longe da mira dos telescópios terrestres, ofuscados pela luz das estrelas. Só nos últimos quatro meses, três novos sistemas planetários foram detectados, a poucas dezenas de anos-luz da Terra. Em termos cósmicos, isso significa que eles estão logo ali, do outro lado da cidade. Sobre o nosso próprio bairro, o sistema solar, descobriu-se há pouco que ele é bem mais aconchegante e propício à vida do que se imaginava. Em Europa, por exemplo, uma estranha lua de Júpiter, pode haver um mar subterrâneo. No céu de Titã, a maior lua de Saturno, chove material orgânico. As novas suposições baseadas em indícios científicos surpreendem. O nosso misterioso vizinho Marte, que se apresenta hoje como uma pedra arenosa e gelada, teria sido morno e cortado por oceanos e rios caudalosos. A probabilidade de que o planeta vermelho tenha abrigado algum tipo de vida é enorme. Mais. Imagina-se que algum organismo se tenha adaptado às novas condições geladas e sobreviva hoje em dia em alguma caverna marciana. Como provar?

“JARDIM” – “É hora de recolocar o pé na estrada e partir rumo aos planetas. A longo prazo, ou colonizamos os planetas, ou seremos uma espécie extinta”, diz Carl Sagan no seu livro Pálido Ponto Azul – Uma Visão do Futuro da Humanidade no Espaço, que será lançado no Brasil no próximo mês. Sagan acha que as viagens de naves orbitais como a Columbia e a Endeavour, assim como as longas permanências dos russos na estação Mir, não satisfazem mais a curiosidade humana. “Isso não pode ser chamado de exploração espacial, pois essas naves voam a uma altitude pouco maior do que a distância que separa meu jardim da fronteira com o Canadá”, diz o ilustre morador da bela casa de número 11 da Tyler Road, em Ithaca, no Estado de Nova York. Sagan está particularmente excitado com o súbito avanço das tecnologias de propulsão e de manutenção artificial da vida, ou seja, com o aperfeiçoamento dos motores dos foguetes e das cabines das naves espaciais.

“Parecia que as nações da Terra não viam muito efeito prático na exploração interplanetária e decidiram desistir. Falso. O ritmo de avanço das tecnologias de viagens espaciais nos últimos tempos foi admirável. Mais alguns anos e teremos condições de recomeçar as missões de reconhecimento da vizinhança”, diz Sagan. Pensador original, coisa rara na categoria dos popularizadores da ciência, Sagan é autor de trabalhos seminais sobre o surgimento das primeiras formas de vida na Terra. Foi ele quem primeiro demonstrou também, num estudo sobre Vênus, as conseqüências devastadoras do efeito estufa, o encapsulamento do calor do Sol por uma atmosfera rica em metano e gases à base de carbono. Sagan teria muito que conversar com um ET.

Vitimado no ano passado por uma rara e violenta doença da medula óssea, por pouco Sagan não foi mesmo é conversar com Deus. Sua doença, a mielodisplasia, é quase tão fatal quanto o câncer. O que o salvou foi um transplante de medula, cuja doadora foi sua irmã mais nova, Cari Greene. A operação foi realizada no Fred Hutchinson Cancer Research Center, em Seattle, noroeste dos Estados Unidos. O hospital é um centro de excelência dessa especialidade a que recorrem doentes do mundo inteiro. Ali também foi buscar tratamento no ano passado o cineasta brasileiro Hector Babenco. “Por quatro vezes vi o rosto da morte”, conta o cientista. Clinicamente curado, Sagan preparava na semana passada as fichas do curso que vai lecionar na sua casa acadêmica desde 1968, a Universidade Cornell. O curso chama-se simplesmente “Sistema solar: física dos planetas”.

NOME NO ASTERÓIDE – Casado com a produtora de cinema e roteirista Ann Druyan, romanticamente homenageada com o batismo de um asteróide com seu nome, Sagan ocupa-se também dos preparativos da versão cinematográfica de seu livro Contato. O filme, dirigido por Robert Zemeckis, o mesmo de De Volta para o Futuro e Forrest Gump, será estrelado por Jodie Foster. Primeira obra de ficção de Sagan, escrita em 1990, o romance conta a história de uma astrônoma que enfrenta enormes problemas para provar que realmente se comunicou com seres extraterrestres. Por enquanto, astrônomos só se comunicam com ETs em obras de ficção. Os avanços recentes nessa área precisam ser entendidos sob a perspectiva das gigantescas dificuldades que a empreitada oferece. Encontrar planetas girando em torno de outras estrelas que não o nosso Sol é extraordinário, quando se sabe que em séculos de observação do espaço eles nunca se haviam materializado. Esse, no entanto, é apenas o primeiro e básico passo para tentar chegar ao prêmio maior: encontrar um planeta onde a vida se tenha desenvolvido. Melhor ainda seria a descoberta de um planeta onde a inteligência tenha gerado uma civilização com desenvolvimento tecnológico capaz de emitir e receber sinais eletrônicos.

O número de cientistas que acreditam nessas hipóteses é diretamente proporcional ao grau de complexidade que elas apresentam. Oito em dez astrônomos, físicos e biólogos dos mais importantes centros de pesquisas do mundo, ouvidos numa sondagem da rede de televisão CNN, acham que nos próximos vinte anos devem ser encontrados planetas do tamanho da Terra girando em torno de estrelas similares ao Sol, em órbitas que permitam absorção de luz e calor nas doses adequadas à criação e manutenção da vida. Quando se pergunta quantos acreditam que nesses planetas possa existir vida inteligente o número cai para três em dez. Para a mais extraordinária das hipóteses, a da existência de vida inteligente extraterrestre capacitada tecnologicamente, os crentes caem para um em dez.

“Há alguns anos, pouca gente acreditava que um dia pudéssemos encontrar planetas fora do sistema solar, mas eles estão aparecendo”, diz Geoffrey Marcy, astrônomo da universidade estadual em San Francisco, na Califórnia. Marcy e seu colega Paul Buler fizeram uma dupla descoberta espantosa no final do ano passado. Os pesquisadores interplanetários encontraram evidências da existência de sistemas planetários orbitando estrelas de constelações muito familiares aos observadores do firmamento, a Ursa Maior e a constelação de Virgem, ambas visíveis apenas no Hemisfério Norte. Descobertos por meio de cálculos baseados na medida de alterações nas órbitas de suas estrelas-mães, os planetas não são, em si, muito excitantes. São planetas descomunais, duas a cinco vezes maiores do que Júpiter e, portanto, centenas de vezes maiores do que a Terra. Nada contra esses gigantes planetários, mas as esferas celestes muito grandes têm também força gravitacional fora do comum – milhares de vezes maior do que a encontrada no mais fundo dos abismos submarinos da Terra. Alguns tipos de microorganismos podem adaptar-se a lugares assim. Dificilmente, porém, poderiam desenvolver-se além do estado de ameba, que como se sabe não é propriamente um forma muito elevada de vida pensante.

Em termos de habitabilidade, os novos planetas encontrados pelos astrônomos da Califórnia, bem como um terceiro sistema planetário anunciado pela dupla de pesquisadores suíços Michel Mayor e Didier Queloz, não são o que se poderia comparar com um apartamento de cobertura à beira-mar no Leblon. Nem com um quarto-e-sala em praia de farofeiros. São lugares inóspitos. Seu valor é o fato de serem muitos e terem sido encontrados concentrados num retalho minúsculo da Via Láctea, a galáxia da Terra. Os quatro sistemas planetários conhecidos, o sistema solar e os três novos recentemente descobertos, estão todos agrupados num lote de 200 anos-luz de lado. Se a Via Láctea fosse um loteamento, caberiam nela 500 000 terrenos desse tamanho. É espantoso que num minifúndio assim existam pelo menos quatro sistemas planetários. “Estamos diante de uma prova gritante de que a existência de planetas, ao contrário do que sempre se acreditou, é uma regra e não uma raridade no universo”, diz Marcy. Calcula-se que existam 400 bilhões de estrelas na nossa galáxia e que o universo inteiro seja formado por pelo menos 100 bilhões de galáxias. “Mesmo que as chances de surgimento de vida sejam de apenas 1 em 100 bilhões, o que é de um pessimismo brutal, ainda assim haveria algumas centenas de planetas habitáveis no universo”, diz Marcy.

O mais pessimista dos cientistas, que já devotou um bocado de tempo a pensar essas questões, é o respeitado professor da Universidade Harvard, Ernst Mayr, considerado o maior neodarwinista vivo. Mayr acha possível que outros planetas sejam habitáveis, mas considera altamente improvável que seres de inteligência superior tenham se desenvolvido por lá. Mayr pondera que dos 30 milhões de espécies vivas hoje no planeta Terra apenas uma desenvolveu inteligência superior – e que cerca de 50 bilhões de espécies já viveram e desapareceram da face do planeta sem nunca ter atingido o estado evolutivo do homem. “Junte a isso o fato de que a média de sobrevivência de uma espécie no planeta Terra raramente ultrapassa 100 000 anos, e teremos uma conta de números astronômicos quando calcularmos a possibilidade de o surgimento de vida inteligente ter ocorrido independentemente em outro planeta”, diz Ernst Mayr.

Ficou famoso o debate de Mayr com Sagan sobre esse assunto numa reunião da Sociedade Planetária, entidade que o autor de Cosmos preside. Sagan sustentou que os cálculos de Mayr estavam errados, pois ele se baseou na idéia de que a vida teria de começar sempre da sopa original e evoluir linearmente até os animais superiores. Para Sagan, pode ter havido troca de material orgânico mais complexo entre os planetas, o que queimaria etapas e aumentaria geometricamente a chance de a cadeia de vida se desenvolver. Descobertas recentes, feitas em cavernas vulcânicas no fundo do Oceano Pacífico, mostram que a vida pode encontrar infinitas maneiras de se impor aos ambientes mais hostis.

Cientistas americanos e japoneses encontraram espécies de criaturas que se adaptaram a altas temperaturas e conseguem viver completamente isoladas da cadeia alimentar que depende da luz do Sol. Criaturas como essas, se fossem transplantadas para cavernas subterrâneas em Marte ou para a lua Titã, de Saturno, teriam alguma chance de sobreviver. “Ao longo de seus 4,5 bilhões de anos de vida, Titã teve pelo menos 1 000 anos de insolação suficiente para derreter o gelo de sua crosta. Ou seja, teve água em forma líquida. Se 1 000 anos são suficientes para desenvolver a vida, não sabemos”, disse Sagan no ano passado, quando apresentou numa reunião científica o resultado dos trabalhos de um grupo de alunos. Eles reproduziram o solo de Titã, uma lama negra de aspecto repulsivo, mas rica em carboidratos, essenciais ao surgimento da vida.

LUAS GELADAS – Nem mesmo os cientistas mais enquadrados se encantam muito com relatos de luas geladas, cobertas de lodo, orbitando planetas estéreis. O que todo mundo quer saber, do mais rigoroso pesquisador à mais fútil das cabeças, é se há alguma chance de contato com seres extraterrestres na presente geração. Os cientistas que há trinta anos tentam ouvir os ETs acreditam que estamos entrando numa época de ouro para esse tipo de atividade. Primeiro, porque as antenas terráqueas já andaram captando alguns sinais estranhos. Se não podem ser atribuídos com segurança total a fontes interplanetárias, pelo menos está fora de cogitação que tenham sido produzidos por humanos. Suspeita-se de alguma anomalia de emissores naturais de ondas de rádio no cosmo, como as estrelas de nêutrons e os buracos negros.

Mesmo assim, os cientistas acham misteriosos alguns desses sinais. As antenas de rádio da Universidade da Califórnia em Berkeley, por exemplo, captaram ao longo de alguns anos 30 milhões de sinais intrigantes. Depois de um penoso trabalho de peneiragem sobraram 164 transmissões classificadas como “misteriosas”. Suas fontes não puderam ser identificadas. O que falta para os cientistas terem certeza de que elas foram geradas por extraterrestre querendo se comunicar com a Terra? “Falta o essencial em ciência, que é a reprodução do fenômeno”, explica Sagan. “Sem que os sinais se repitam, não podemos considerá-los.”

FREQÜÊNCIA MÁGICA – Ouvir o cosmo em busca de vida inteligente é uma obsessão dos cientistas desde o primeiro rádio. O próprio inventor do rádio, o italiano Guglielmo Marconi, se propôs a ouvir as emissões que esperava virem de Marte. Marconi montou uma estação de escuta em seu iate e de algum ponto do Mar Adriático tentou “grampear” os marcianos. Em vão. Só muitos anos mais tarde, em 1959, os cientistas conseguiram descobrir qual seria a freqüência ideal para tentar captar transmissões capazes de atravessar trilhões de quilômetros de espaço cósmico. Os pesquisadores vêm utilizando essa freqüência mágica, 1 400 MHz, desde então. Na gíria ela é chamada de “ET FM”. “Pode parecer uma lógica maluca, mas contamos com a idéia de que uma civilização extraterrestre inteligente chegue à mesma conclusão que a nossa sobre qual comprimento de onda é melhor para esse tipo de contato. Afinal, o universo é homogêneo”, explica Frank Drake, cientista que nos anos 60 montou o primeiro serviço de rastreamento do cosmo usando a tal “freqüência mágica”.

Drake acha que caminhões de dados significativos foram desprezados, não por não terem chegado até a antena, mas por não terem sido decodificados pelos sensores. As antenas de agora estão conectadas 24 horas por dia a computadores com programas requintados. Os pesquisadores nem precisam monitorá-los. Caso um ET ligue, o computador emite um e-mail para o cientista. “Pode demorar, mas um dia, tenho certeza, vai chegar uma mensagem inequívoca”, diz o físico Paul Horowitz, que dirige o Beta, projeto de escuta da Universidade Harvard em colaboração com o Smithsonian Institute. O Beta possui 1 bilhão de canais dedicados a rastrear sinais alienígenas. Quando e se chegar uma mensagem, por mais débil que seja, terá sido a mais eloqüente transmissão jamais feita. Ela terá respondido em frações de segundo à pergunta que a humanidade se faz há milhares de anos: “Estamos sós no universo?”

A Colonização de Planetas é Meta Atingível

Recuperando-se de um doloroso transplante de medula, Carl Sagan não tem recebido muita gente. Para conversar com VEJA, o astrônomo optou por várias sessões ao telefone. Depois, fez uma exigência: gostaria de ler a entrevista antes de publicada, mesmo que fosse em português. Embora não conheça a língua, disse ter uma pessoa de confiança que o auxiliaria. Sua preocupação era com a exatidão científica. “A astronomia é um campo muito propício ao sensacionalismo”, explicou. Eis a entrevista:

VEJA – Existe vida inteligente no planeta Terra?

SAGAN – Um hipotético viajante espacial que examinasse nosso planeta, a partir de uma órbita não muito distante, logo descobriria que existe uma civilização tecnológica na Terra. As luzes das cidades, as emissões inequívocas de ondas de rádio e televisão, o padrão regular das plantações são sinais claros de vida racional. Ao aprofundar suas observações, ele notaria também que alguma coisa fundamentalmente errada está ocorrendo na superfície do planeta. Os organismos inteligentes dominantes na Terra estão destruindo suas principais fontes de vida. A camada de ozônio, as florestas tropicais e o solo fértil estão sob constante ataque. Provavelmente, a essa altura, o visitante espacial faria uma revisão da sua análise inicial e concluiria que não há vida inteligente na Terra.

VEJA – Essa não é uma visão muito determinista do futuro da humanidade…

SAGAN – Nós somos um perigo em potencial para nós mesmos. Acredito que a emissão de combustíveis fósseis e de outros gases que promovem o efeito estufa já esteja produzindo efeitos climáticos complexos no planeta Terra. Vênus, com seus 470 graus Celsius de calor provocados por uma atmosfera de vapor d’água e dióxido de carbono, é uma clara indicação do que o efeito estufa pode produzir num planeta.

VEJA – Que ameaça tão poderosa paira sobre a Terra?

SAGAN – Não é a Terra que está ameaçada. A Terra está segura. Nós, os humanos, é que estamos numa situação cada vez mais frágil. É provável que a esta altura de nosso desenvolvimento tecnológico estejamos criando uma civilização incompatível com a vida no resto do planeta. Ou conseguimos viajar pelo espaço e colonizar outros planetas, ou corremos sério risco de entrar para o rol de espécie extinta. A sobrevivência pela colonização de outros planetas é uma hipótese bastante racional e uma meta atingível.

VEJA – O senhor acha que será preciso outra Guerra Fria para criar o clima de competição propício a grandes aventuras pelo espaço?

SAGAN – Não. Parece que mesmo sem outra Guerra Fria, e a despeito das limitações orçamentárias, os Estados Unidos, a Rússia, a Agência Espacial Européia e o Japão estão organizando vigorosos programas de exploração do sistema solar, com ênfase em Marte. Esse planeta oferece condições fascinantes para exploração e futura colonização pela humanidade. Duas tendências em particular são bastante promissoras. Uma é a construção de espaçonaves pequenas mas altamente eficientes. A outra é a constatação de que Marte tem recursos naturais que podem ser usados para a produção de componentes do combustível da nave destinada a trazer a tripulação de volta à Terra. Além disso, enquanto estiverem na superfície do planeta os astronautas poderão obter água e oxigênio de fontes locais. Isso subtrai enormemente o peso e, claro, o tamanho da nave, diminuindo também a complexidade de uma missão tripulada a Marte.

VEJA – O sistema solar, que parecia tão sem segredos para os cientistas, tem sido recentemente fonte de grandes surpresas, como o caso da descoberta de água numa lua de Júpiter e a revelação de que Plutão talvez nem seja um planeta, mas um asteróide. Que outras revelações se podem esperar da nossa vizinhança?

SAGAN – Agora que conseguimos enxergar melhor com a ajuda do telescópio orbital Hubble, e à medida que conseguirmos viajar para outros mundos, é certo que encontraremos coisas jamais imaginadas. A descoberta recente de que em Titã, uma das luas de Saturno, chove matéria orgânica do céu é uma dessas surpresas. Titã abriga uma fábrica natural de moléculas orgânicas complexas. Quem poderia imaginar que numa grande lua de Saturno estaria escondido o que pode vir a ser a chave do mistério da existência de vida na Terra? Marte também não cessa de nos surpreender. Há uma possibilidade de que Marte há 4 bilhões de anos, numa época em que a Terra ainda nem estava se formando, tenha sido um planeta bem diferente da esfera árida e gelada que conhecemos atualmente. Naquela época, Marte pode ter sido bastante aconchegante, com rios caudalosos e grandes oceanos. Pode ter havido ali algumas formas de vida. O que teria acontecido com esses organismos marcianos? A hipótese mais intrigante é que alguns deles podem ter sobrevivido, adaptando-se em algum nicho subterrâneo do planeta. Coloquemos as descobertas feitas em Titã e em Marte na perspectiva de que existem centenas de bilhões de outros planetas e teremos algumas pistas do que a exploração espacial ainda pode encontrar.

VEJA – Qual o significado das descobertas recentes de planetas em formação ao redor de estrelas não muito distantes do nosso Sol?

SAGAN – A descoberta de planetas semelhantes a Júpiter orbitando estrelas parecidas com o nosso Sol também, de certa forma, não surpreendeu a comunidade científica. Pelo que se conhece da origem de nosso próprio sistema planetário, outros sistemas deveriam ser abundantes. A surpresa foi que os planetas descobertos giram em órbitas muito mais próximas a seus sóis do que se podia prever. Parece, portanto, que existem muitas variações de sistemas solares na Via Láctea. Isso significa que nosso sistema solar não é o padrão. Para as próximas décadas, podemos esperar a descoberta de centenas de sistemas planetários ao redor de estrelas próximas.

VEJA – Existe vida inteligente fora da Terra?

SAGAN – Essa é uma hipótese extraordinária. Hipóteses extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Essas evidências ainda não existem. Temos recebido alguns sinais de rádio enigmáticos vindos do espaço que parecem satisfazer todos os critérios científicos para o que se estabeleceu ser uma transmissão extraterrestre inteligente. São sinais modulados, fortes e de banda curta. Ou seja, não poderiam ter sido gerados por nenhuma fonte natural conhecida de ondas de rádio cósmicas. Infelizmente esses eventos nunca se repetiram. Eles duram cinco minutos e somem para sempre. Em ciência, se um fenômeno não se repete ele não pode ser confirmado. E, se não há confirmação, é provável que o que se encontrou não tenha valor. As próximas décadas, à medida que as tecnologias forem ficando mais eficientes e baratas, prometem ser muito excitantes na busca de vida inteligente extraterrestre.

VEJA – Por que muitas pessoas se agarram com tanto entusiasmo à idéia de que os discos voadores estão por aí?

SAGAN – Não existe uma única evidência física irrefutável disso. Tudo o que eu pediria a uma pessoa que diz ter visto um alienígena é uma evidência física, não uma história. Muitas pessoas podem não estar mentindo e, mesmo assim, seu relato não ser verdadeiro. Há muitas hipóteses que levam alguém a afirmar que viu ou teve encontros com alienígenas. Uma delas é a constatação de que uma visita extraterrestre mostraria que nós, humanos, temos uma posição de importância central no universo. Outra razão é poder atacar com segurança os governos acusando-os de ostensivamente “encobrir os dados” sobre objetos voadores não identificados. É interessante notar que a maioria desses relatos está de alguma forma relacionada com alucinações ocorridas ao adormecer ou logo depois de acordar.

VEJA – Qual sua opinião sobre o filme, famoso entre os aficionados da ufologia, mostrando um alienígena sendo autopsiado nos anos 40?

SAGAN – Só não digo que é uma fraude grotesca porque não pude investigar in loco todos os detalhes do caso. Mas que tem cor de fraude, cheiro de fraude e aparência de fraude não há dúvida. Há um fenômeno interessante na imprensa. As notícias sobre eventos tratados como misteriosos são invariavelmente dadas com muito mais destaque do que sua negação. Não importa que a desmontagem da fraude tenha sido completa e convincente: no final a fraude em si terá tido mais destaque. Outro caso interessante é o dos círculos concêntricos que costumavam aparecer nos trigais do interior da Inglaterra. A notícia de que se tratava de eventos misteriosos foi dada com enorme destaque. Quando os dois velhinhos responsáveis pela fraude apareceram, mostraram seus instrumentos e demonstraram como faziam os círculos há dezoito anos na calada da noite, a notícia foi dada quase a contragosto.

VEJA – O senhor acha que a ciência está perdendo a guerra contra as crendices e o obscurantismo?

SAGAN – Um dos problemas é que a ciência apresenta o mundo como ele é, não como se gostaria que ele fosse. Quase sempre a descoberta científica contraria a sabedoria convencional das pessoas. A ciência também tende a ser matemática, o que, na mente da maioria das pessoas, se traduz por incompreensível. A ciência também foi responsável pela invenção de armas de destruição em massa e de tecnologias que inadvertidamente alteram o clima global. A ciência contradiz diretamente a interpretação literal da Bíblia – em que não há lugar para metáforas ou alegorias. É uma pena que a negação do método racional gere atitudes que ignoram a magnífica revelação que a ciência está fazendo do universo e despreze os benefícios econômicos que a tecnologia propicia. Ignora-se que sem os avanços técnicos na agricultura, nas ciências médicas e na tecnologia quase todos os habitantes do planeta Terra estariam agora mortos.

VEJA – Entre eles se encontraria provavelmente o senhor, não?

SAGAN – Certamente. Minha doença aumentou muito minha gratidão pela ciência. Sem os recentes avanços da medicina, eu estaria morto.

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.