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Como filosofar sem sair da poltrona

Por Elan Marinho (PUC-Rio, FAPERJ)
Texto premiado por um bounty de artigos do The Philosophers DAO

Considerações iniciais

Temos uma imagem muito clara do que os cientistas fazem. Sabemos que fazem experimentos em laboratório e trabalhos de campo. Mas e quanto aos filósofos? O que fazem? Eles… refletem? Pensam sentados com a cabeça apoiada na mão como na escultura de Rodin d’O Pensador? Note que isso é bem mais vago do que a imagem que temos dos cientistas. Ainda assim, não é um mero estereótipo sem nenhum fundo de verdade. De fato, a maioria dos filósofos não faz experimentos em laboratório e nem trabalhos de campo. Muitos filósofos fazem filosofia no conforto de suas poltronas, consultando suas próprias intuições a respeito de alegações, perguntas e casos hipotéticos — e, provavelmente, muitos deles fazem isso com a cabeça apoiada na mão. Neste trabalho, esclareço em que consiste fazer filosofia da poltrona, tomando como referência a filosofia analítica recente.

Filosofando com alegações

Para entender como fazer filosofia da poltrona, podemos começar com a análise de alegações. Existem muitas alegações que, a princípio, precisam de uma investigação mais detalhada para sabermos se são verdadeiras ou falsas. Abaixo, temos vários exemplos desse tipo de alegação.

“Existe vida fora da Terra”

“Não existe vida fora da Terra”

“Os cientistas são ricos”

“Os cientistas são pobres”

“A inflação está aumentando”

“Os juízes são pessoas isentas”

“A Terra é esférica”

“A Terra é plana”

“O dólar é mais caro que o real”

“As onças estão em extinção”

Apesar disso, existem outras alegações que simplesmente parecem obviamente verdadeiras. Quer dizer, ao entender cada conceito envolvido na alegação, simplesmente parece óbvio que ela é verdadeira. Abaixo, temos vários exemplos desse tipo de alegação.

“É errado matar uma pessoa só por diversão”

“É impossível que um círculo tenha lados”

“Triângulos têm três lados”

“Tigres são animais”

“Macacos são animais”

“2+2=4”

“1=1”

“Aristóteles é Aristóteles”

“Uma coisa é igual a si própria”

“Se um corpo existe, ele ocupa um lugar no espaço”

Note que não é necessário um experimento em laboratório ou uma atividade de campo para sabermos que essas alegações são verdadeiras. Uma vez que adquirimos os conceitos envolvidos em cada uma delas e as compreendemos, de algum modo “vemos” que elas são verdadeiras — de maneira parecida com que vemos que o céu é azul ou que a grama é verde. Isto é, de alguma maneira, parece existir uma espécie de “olho da mente” que simplesmente “vê” essas alegações como verdadeiras. A isso os filósofos chamam de “intuição”. Por isso, dizemos que os filósofos intuem que essas alegações são verdadeiras.

Ao fazer filosofia de suas poltronas, os filósofos recorrem a esses tipos de alegações para defender e atacar teorias filosóficas. Um filósofo pode mostrar, por exemplo, que uma teoria hedonista implica que é correto matar uma pessoa só por diversão, desde que o prazer de quem mata seja superior à dor de quem morre. Isto é, essa teoria gera uma tese contraintuitiva. Afinal, uma intuição nos diz que, mesmo nessa situação, seria errado matar a pessoa só por diversão. Diante disso, o filósofo parece conseguir mostrar que essa teoria está errada sem sair de sua poltrona.

Filosofando com a pergunta-teste

Existe outra maneira de filosofar da poltrona, que é a partir da “pergunta-teste”, do filósofo Saul Kripke (1980). Usamos a pergunta-teste para descobrirmos se um fato é contingente ou necessário. Pensemos no fato de que o céu é azul. Agora, fazemos a pergunta-teste: poderia ser diferente? Parece que sim. Parece que o céu poderia ser de outra cor. Já que a resposta é “sim”, o fato que o céu é azul é contingente, porque embora seja o caso que o céu é azul, poderia não ser. Pensemos agora no fato de que tigres são animais. Fazemos a pergunta-teste: poderia ser diferente? Tigres poderiam não ser animais? Parece que não. Logo, esse é um fato necessário, ou seja, a alegação de que “tigres são animais” não poderia ser falsa. Dessa maneira, o filósofo consegue descobrir se um fato é contingente ou necessário sem sair de sua poltrona.

Filosofando com experimentos de pensamento

Uma terceira maneira de fazer filosofia sem sair da poltrona é a partir do que os filósofos chamam de “experimentos de pensamento”. Existem vários experimentos de pensamento em debate na tradição analítica recente. Existem os Casos Gettier, de Gettier (1963), para desafiar uma tese sobre a natureza do conhecimento. Existe o Dilema do Bonde, de Foot (1967), para defender uma tese em ética. Existe o Violinista, de Thomson (1971), para defender uma tese sobre o aborto. Existe a Máquina de Experiências, de Nozick (1974), para desafiar uma tese hedonista. Existe o Caso Gödel, famoso por Kripke (1980), para defender uma tese sobre a natureza dos nomes próprios. Existe o Quarto de Mary, de Jackson (1986), para desafiar uma tese sobre a natureza das sensações.

Para citar pelo menos um deles, podemos tratar do Dilema do Bonde, da filósofa Philippa Foot. No momento, esse é provavelmente o experimento de pensamento mais famoso de todos eles. Em uma versão adaptada, ele diz basicamente o seguinte:

Um bonde desgovernado está chegando. Há uma pessoa próxima à alavanca. Se o bonde continuar por seu caminho, atropelará cinco pessoas amarradas aos trilhos e elas morrerão. Se a pessoa acionar a alavanca, o bonde atropelará apenas uma pessoa amarrada no outro caminho e ela morrerá. Nesse caso, é moralmente permissível acionar a alavanca?

Tire um tempo para entender bem o experimento de pensamento e dar sua resposta.

Crédito: Know Your Meme.

Diante de tal experimento de pensamento e de tal questão, os filósofos imaginam que sua intuição será a de que: sim, é moralmente permissível acionar a alavanca. Perceba que a questão não é sobre o que você faria, mas sim sobre o que é moralmente permissível de ser feito. E, de fato, se só podemos ou acionar a alavanca ou não acionar, acioná-la parece ser moralmente permissível — mesmo que cause uma morte. Logo, essa é outra maneira de filosofar sem sair da poltrona e chegar a resultados filosoficamente significativos.

Considerações finais

Um adendo que precisa ser feito é o de que há outras maneiras de filosofar da poltrona. Os filósofos podem filosofar da poltrona, por exemplo, argumentando. Embora a argumentação filosófica possa exigir o apelo às intuições, nem sempre exige. Por isso, a argumentação pode ser outra forma difundida de filosofar da poltrona. Outro adendo que precisa ser feito é o de que a filosofia de poltrona não exclui outros métodos de fazer filosofia. Podemos combinar diferentes métodos para chegar a resultados mais produtivos em filosofia. A filosofia experimental, por exemplo, testa se essas intuições são compartilhadas entre as pessoas e nos ajuda a diferenciar intuições boas e ruins. Ainda assim, fica claro que é possível fazer filosofia sem sair da poltrona a partir de nossas intuições sobre alegações, perguntas e experimentos de pensamento.

Referências

  • Foot, Philippa (1967). The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect. Oxford Review 5:5-15.
  • Gettier, E. (1963). “Is Justified True Belief Knowledge?”. In: Analysis, v. 23, Issue 6, 1, pp. 121–123.
  • Jackson, Frank (1986). What Mary Didn’t Know. Journal of Philosophy  83 (5):291-295.
  • Kripke, Saul A. (1980). Naming and Necessity. Harvard University Press.
  • Nozick, Robert (1974). Anarchy, State and Utopia. Basic Books.
  • Thomson, Judith Jarvis (1971). A defense of abortion. Philosophy and Public Affairs 1 (1):47-66.
Elan Marinho

Elan Marinho

Academicamente, entrei em filosofia em 2016. Desde então, desenvolvi uma pesquisa sobre como intuições funcionam. Nessa pesquisa, me baseio na filosofia analítica e nas ciências cognitivas. Também trabalho com divulgação de filosofia, sendo redator (2016-) do portal Universo Racionalista e produtor de conteúdo (2020-) para o Youtube no canal “Filosofia Acadêmica”.