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O grande problema do julgamento moral sobre drogas

O ser humano sempre utilizou drogas para os mais variados fins: curar, dormir, rezar, encorajar, energizar, trabalhar, daí por diante. O uso de substâncias como o álcool, por exemplo, possui registros desde os primeiros agrupamentos humanos.

Fez parte do nosso desenvolvimento enquanto espécie, enquanto seres sociais. Continua sendo usada para fins medicinais, recreativos e rituais, em todas as comunidades mundo afora, independentemente da classe social, do grupo étnico, sob qualquer divisão que for considerada. Todo ser humano, alguma vez na vida, já experimentou alguma droga. Lícitas ou ilícitas, prescritas ou não, as drogas participam intensamente da nossa constituição enquanto pessoas.

Entender como as drogas estão atreladas ao nosso amadurecimento requer compreender a história que ela possui, levando em consideração que existem inúmeras substâncias naturais e inúmeras outras que podem ser sintetizadas, ou até combinadas de modo a intensificar seu potencial. As possibilidades são muitas, os riscos quase tão grandes quanto.

O Modelo Moral

Na área de Substâncias Psicoativas existem os chamados modelos etiológicos, que visam explicar a origem do uso de drogas, e principalmente, os problemas que decorrem do abuso e da dependência. Um destes modelos é o moral, ao qual será dedicado este espaço.

A culpabilização do indivíduo é uma das principais características da relação que a sociedade estabeleceu com o consumo de drogas, desde tempos mais remotos. Sob influência sobretudo da concepção religiosa de mundo, o indivíduo que “decaía” e eventualmente perdia o controle das drogas era considerado um desgraçado, um miserável.

Assim começou-se a rotular certas drogas como de abuso, que poderiam causar dano. O uso da cocaína é notável neste ponto, tendo sido usado legalmente em um considerável espaço de tempo. Quando se descobriu seu potencial nocivo, rapidamente tratou-se de retirá-la das vitrines das drogarias. O que não foi fácil do ponto de vista consumidor.

A cocaína já foi comercializada com este intuito anestésico e analgésico, sob a forma de pó, solução ou mesmo em pastilhas. Seu uso não era restrito sequer às crianças.
A cocaína já foi comercializada com este intuito anestésico e analgésico, sob a forma de pó, solução ou mesmo em pastilhas. Seu uso não era restrito sequer às crianças.

Sigmund Freud, o famoso neurologista austríaco e fundador da controversa psicanálise, possui um histórico nada memorável de relação com a droga. Ainda antes da proibição, ele ajudou a disseminar seu uso como anestésico local, como em cirurgias oftalmológicas.

E também testou a droga como ferramenta central na sua prática de terapia, sendo inclusive ele mesmo um usuário e descobridor das propriedades que a cocaína apresentava. Sua experiência gerou a obra Über Coca, controversa desde a época. Com o passar do tempo se descobriu que a cocaína apresenta um alto potencial de causar dependência.

A obra Über Coca, uma monografia sobre o uso clínico da cocaína.
A obra Über Coca, uma monografia sobre o uso clínico da cocaína.

Só que nem tudo ocorre como a gente espera, então os problemas começaram a aparecer: mortes, consequências para colegas adictos, perda do controle em administrar a droga. Assim começou a psicanálise, uma terapia baseada na fala e que não seria tão prejudicial quanto usar doses de cocaína para induzir estados mentais alterados nos pacientes.

Álcool, lei e ordem

Voltando a falar do álcool, alguns séculos depois, ele se tornou a droga mais controversa e combatida. Havia começado então a chamada Lei Seca (um conjunto de medidas voltadas para o controle rígido da produção e do comércio de álcool que culminou em uma emenda constitucional nos EUA, o Volstead Act, que passou a proibir bebidas alcoólicas) no início do século XX.

Veja aqui os documentos da época.

Apesar de ainda hoje o álcool não ser visto como droga, a implantação do Volstead Act causou um intenso movimento clandestino, gerando contrabando e investidas cada vez mais ousadas de mafiosos. O mais famoso provavelmente é Al Capone, que também se tornou ícone na cultura pop cinematográfica. A concepção moral foi responsável por criar a imagem desse homem, e de tantos outros que participavam desse tipo de atividade.

Década após década, a sociedade ocidental aprendeu a criminalizar o uso de drogas, associando-as à ideia de “vício“, isto é, um intenso desvio moral que causaria a perda no controle do seu consumo. A falta de controle público sobre elas gerou enormes comoções políticas, como a conhecida “Guerra às Drogas” (War on Drugs), proposta inicialmente por Richard Nixon. O controle passou a ser direto por parte do governo, o que mobilizou dinheiro público em ações cada vez mais repressivas.

O atual presidente Barack Obama afirmou, não muito tempo atrás, que a War on Drugs era uma política falida, passível de inúmeros erros e causadora de grandes prejuízos sociais, bem como econômicos para o seu país. Nos dias atuais, reconheceu Obama, não cabe continuar seguindo com o preconceito moral que vigorava em outras épocas.

Departamentos de polícia especializados* foram criados para combater o comércio ilegal de drogas, bem como o tráfico internacional de psicoativos. Plantações ocultas de coca e maconha começaram a ser descobertas e destruídas até mesmo em outros países, como a Colômbia.

Concluindo…

Se alguém tem problemas com drogas, e não é muito difícil constatar isso, esse alguém precisa de acompanhamento clínico. Diminuir sua condição humana certamente não irá contribuir para a construção de um cenário digno, educativo e apto a receber quem porventura chegue a ter comorbidades decorrentes do uso, do abuso e da dependência (ver critérios diagnósticos no CID-10, categorias F10 a F19).

A concepção moral julgou os hippies em Woodstock, que celebravam o consumo de maconha como forma de protesto e libertação espiritual. Bem como ajudou a fomentar figuras como a de Timothy Leary, guru do ácido lisérgico nessa mesma época. Devemos pensar que não só o uso recreativo foi dificultado (não deixa de causar problemas ao indivíduo, porém cada caso é um caso e ampliaria muito mais o debate, enfim), mas as pesquisas sobre o potencial médico dos psicoativos também foram alvo de embargos e grandes limitações. Há que se aplicar pesos e medidas diferenciadas em cada situação.

Os novos paradigmas etiológicos precisam de espaço e compreensão, afinal de contas, nunca iremos viver numa sociedade livre de drogas. Do cafezinho ao analgésico, e até mesmo o chocolate, do álcool ao crack e à heroína. Todos em algum momento iremos nos deliciar, nos aliviar, nos prejudicar, seja o que for, com os mais variados tipos de drogas.

Devemos aprender, antes de qualquer coisa, a lidar com nossas próprias necessidades, angústias e frustrações. A droga é apenas uma extensão daquilo que mais nos causa curiosidade.

Leitura adicional:

Relatório (2012) sobre o consumo de álcool no Brasil

Tratamento da dependência de crack, álcool e outras drogas: aperfeiçoamento para profissionais de saúde e assistência social (2012)

* Nota: Os termos “narcótico” ou “entorpecente”, usados para fazer referência a esses departamentos, são um tanto parciais pois estes se referem exclusivamente a drogas que agem como depressoras no organismo. Narcose e entorpecimento são sinônimos para anestesia e paralisia, respectivamente. Grande parte das apreensões não envolve esse grupo de drogas, mas sim as estimulantes (como a cocaína e o crack) e as perturbadoras (como a maconha e o ecstasy).

Observação: Se você tem problemas com o consumo de drogas ou conhece alguém, por favor, busque ou recomende ajuda especializada. Ficar sem ajuda pode ser um risco, já que as pessoas do convívio geralmente são despreparadas para lidar com o tema e podem provocar grandes traumas.

Pedro H. Costa

Pedro H. Costa

Bacharel em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atuo desde 2012 no Centro de Estudos e Pesquisas sobre Álcool e outras Drogas, pela mesma instituição. Interessado em saúde, educação, ciência e filosofia. Faça uma pergunta: ask.fm/phcs91