Paul Graham é um ensaísta, cientista da computação e investidor britânico. Além de estar envolvido com o sucesso de várias empresas de tecnologia do Vale do Silício e de ter feito contribuições teóricas importantes para a ciência da computação, também é conhecido por um ensaio publicado em 2008 onde define sua “hierarquia da discordância”, um guia simples para analisar e melhorar argumentos em discussões.
Sua maior motivação, como já seria de se esperar, foi o baixo nível dos debates na Internet. Para Graham, a grande facilidade de interação virtual e o sentimento de proteção proporcionado pelo distanciamento físico entre as partes fez com que as pessoas passassem a dizer coisas que dificilmente diriam em outros contextos. Há uma grande motivação para evitar respostas como “você é um idiota” ou “o que você disse é um completo absurdo” em discussões presenciais, dado o mal estar e a possibilidade de prejuízos imediatos que isso geraria. Não queremos perder amigos na roda de conversa, desapontar colegas no trabalho nem ter problemas com parentes na mesa do jantar. Na Internet, contudo, esse cuidado não costuma ser tomado. Geralmente conversamos com estranhos e não temos medo de ironizá-los, xingá-los e ofendê-los.
Há duas consequências ruins provenientes dessa forma irresponsável de expor discordâncias. A primeira, e mais óbvia, é o empobrecimento intelectual das discussões, pois os conceitos e ideias expostos raramente chegam a ser ponderados com racionalidade. A segunda é que a transformação dos debates em “zonas de guerra” espalha intolerância, mesquinhez e maldade para um número cada vez maior de pessoas, contribuindo para torná-las mais infelizes.
A “pirâmide” da discordância
A hierarquia da discordância de Graham consiste em uma forma de classificação de críticas a argumentos em sete níveis, do mais baixo e irracional ao mais alto e consistente. É importante destacar que todos os exemplos utilizados são apenas ilustrativos. Não faz parte do escopo deste artigo atacar ou defender qualquer posicionamento sobre os assuntos citados, mesmo que as referências mencionadas nos exemplos sejam reais.
Nível 0: Xingamento
É o ato mais baixo de desrespeito em uma discussão. Pode variar das formas mais rústicas, como…
“Você é um idiota!”
“Cale a boca, petralha!”
“Isso é coisa de coxinha.”
“Você é uma bicha!”
…até formas pretensamente mais sofisticadas como
“Esse autor é excessivamente pedante.”
“Você é um replicador de desinformação.”
O vocabulário não importa, pois em todos os casos deixou-se de lado o mérito dos argumentos apresentados e passaram a ser criticadas as características ou comportamentos pessoais do autor.
Nível 1: Ad hominem
Consiste em desviar o foco da proposição para o autor, sem xingamento mas colocando em dúvida sua isenção ou credibilidade ao opinar sobre o tema. Podemos citar como exemplos:
“A Revista Veja disse que as cotas são um problema, mas ela está errada pois sempre defendeu a direita.”
“A Carta Capital defende os esquerdistas, então não merece atenção quando diz que as cotas são uma boa medida contra o racismo.”
“É claro que o deputado defende o aumento de salário para parlamentares, pois ele será diretamente beneficiado.”
“O aquecimento global é uma farsa, pois os climatologistas estão sendo financiados por ONGs contrárias ao progresso.”
“O aquecimento global é real, pois todos os cientistas que discordam estão sendo financiados por empresas do ramo de combustíveis fósseis.”
É importante notar que a utilização do ad hominem não implica na correção ou incorreção da ideia da proposição original. O ponto em questão pode ser realmente falso, mas atacá-lo com esse nível de discordância não demonstra o erro e nem serve para refutá-lo.
Nível 2: Resposta ao tom
Nesse nível, o autor é poupado das críticas, mas ao invés de se dirigirem às ideias, mas elas passam a se dirigir ao texto. Engloba desde críticas ortográficas até ataques ao estilo de escrita ou fala.
“Não posso concordar com algo dito de forma tão arrogante.”
“Essa ideia é péssima, veja como o o texto é prolixo e empolado.”
“Parei de ler na palavra ‘impítiman’. Vá aprender a escrever!”
“Ela escreveu ‘garot@s’, com essa novilíngua pós-moderna já sei que vai falar besteira!“
Essa forma de discordância também é desonesta pelo fato de nada acrescentar a respeito dos pontos defendidos pelo autor, atacando a forma do discurso e não o seu conteúdo.
Nível 3: Contradição
A partir desse nível, passamos a falar de discordâncias que já não são desonestas e podem ou não ter algum potencial de contribuição positiva ao debate. A mais simplória delas é a contradição, que consiste na mera afirmação de uma ideia contrária à do texto original.
“O autor diz que houve uma ditadura no Brasil, mas todos sabemos que não houve.”
“Aquela cientista diz que o melhor combustível é o etanol, mas na verdade é o hidrogênio.”
“O jornalista disse que o Corinthians é o time mais forte do campeonato, mas o Palmeiras é muito mais forte!”
Mesmo não sendo uma forma desonesta de discordar, a contradição raramente contribui com o debate. Sem apresentar argumentos sólidos, a afirmação apenas se posiciona como alternativa à proposição original, sem rebatê-la.
Nível 4: Contra-argumento
É uma forma de discordância superior às anteriores, e com maior potencial para afetar positivamente a discussão em alguns casos. Consiste em uma forma mais sofisticada de contradição, onde além de confrontar o conteúdo da proposição original, também são apresentados argumentos sólidos e logicamente sustentáveis como embasamento.
“Aquele artesão disse que os tapetes vendidos na Rua 25 de Março vêm da China e são péssimos, feitos em indústrias com condições precárias e sem padrão de qualidade. Mas quando fui à China, conversei com vários artesãos locais e eles me mostraram seu processo, totalmente manual e extremamente cuidadoso, resultando em tapetes de altíssima beleza e qualidade, conforme você pode conferir neste exemplar que eu trouxe de lá na ocasião.”
O problema com esse nível de discordância é que, apesar de apresentar bom embasamento, ele não ataca de fato as afirmações feitas pelo autor original. No exemplo, o contra-argumentador apenas mostra que existem na China artesãos que fabricam bons tapetes, mas nada diz sobre a afirmação original que acusava especificamente os tapetes vendidos na Rua 25 de Março e oriundos de manufaturas industriais.
Nível 5: Refutação
É um nível onde há contribuição real ao debate, e consiste em uma evolução do contra-argumento. Mas agora, atacando um ponto relevante da ideia original e que de fato tenha sido defendido pelo autor.
“Em sua coluna, onde se diz contrário à adoção de crianças por casais gays por violar os preceitos cristãos, o articulista diz em certo ponto que a homossexualidade é um comportamento social exclusivamente humano. Mas ela já foi observada também em diversas espécies de mamíferos e outros vertebrados, e até mesmo em artrópodes, conforme documentado pelos pesquisadores Bruce Bagemihl e Paul Vasey em seus trabalhos, além de outros estudiosos.”
A refutação derruba uma parte relevante da proposição original. O único problema é que o ponto refutado não é central ao argumento defendido pelo autor, de forma que sua refutação não o rebate completamente. No exemplo, o trecho citado sobre a exclusividade humana do comportamento homossexual é rebatido, mas como sua importância era secundária e o ponto central do artigo era a violação dos preceitos cristãos, a refutação não é suficiente para derrubar o raciocínio como um todo.
Nível 6: Refutação do Ponto Central
Esse é o nível máximo de discordância, onde a refutação tem como alvo o ponto central da ideia defendida pelo autor original. Uma vez refutado o ponto central, toda a argumentação precisa ser abandonada ou revista, levando a discussão a níveis cada vez mais altos e gerando aprendizado.
“O ativista defende que os seres humanos devem abolir a carne de sua dieta, pois a anatomia e fisiologia humanas, especialmente nosso padrão de dentição, a composição de nossa flora intestinal e a ausência de garras mostram que somos biologicamente herbívoros. Porém, as evidências mostram o oposto. Estudos sobre a dentição de mamíferos como os conduzidos por Van Valkenburgh em 2007 e o livro de Harvey Pough e outros de 2008 mostraram que a configuração da mandíbula e do maxilar dos seres humanos é coerente com a encontrada em espécies onívoras, apresentando um padrão misto de dentes pontudos, laminares e achatados. Outro estudo de 2008, conduzido por Jeffrey Gordon, mostrou que a diversidade microbiana de nossa flora intestinal é similar a de primatas onívoros como lêmures e bonobos, e significativamente diferente da encontrada em espécies estritamente herbívoras. Sobre as garras, pode-se dizer que não são determinantes do tipo de dieta, já que animais dotados de garras como preguiças, esquilos e iguanas apresentam dieta herbívora e, por outro lado, há primatas carnívoros como o tarsius que não possuem garras. Esse conjunto de evidências independentes nos leva a concluir que as razões apresentadas pelo ativista para justificar sua posição não se sustentam.”
Note que a exposição acima reúne todos os requisitos desejáveis a uma boa refutação. Visa ao conteúdo da ideia original e não ao seu autor, identifica corretamente os argumentos apresentados e foca seus esforços em atacar especificamente os pontos centrais, apresentando evidências sólidas e independentes e apresentando as referências sobre todos os trabalhos citados.
Conclusão
Apesar de ser um guia informal, a pirâmide da discordância é extremamente útil para espectadores e debatedores. Quem está assistindo a um debate pode usar esse critério para separar argumentos bons e ruins, descartando os que não contribuem à discussão e avaliando o mérito dos que possuem maior potencial. Quem está diretamente envolvido no debate também pode usar essa ferramenta para julgar a conveniência de suas próprias críticas antes de fazê-las publicamente. Seguindo esses passos simples, certamente as discussões em que nos envolvermos deixarão de ser um campo de guerra de ideias vazias tentando se impor à revelia de seus méritos, e passarão a ser oportunidades de aprendizado e crescimento intelectual, fazendo-nos aproveitar melhor as notáveis possibilidades de interação trazidas pela tecnologia.
Artigo inspirado no ensaio original “How to disagree“, escrito por Paul Graham em março de 2008.