Este texto é uma adaptação e resumo de alguns capítulos do livro Terapia Cognitivo-Comportamental – Teoria e Prática, da Judith S. Beck, filha de Aaron T. Beck (foto).
Aaron T. Beck, nos idos de 1950, era um psicanalista formado e atuante ao mesmo tempo em que dava aulas de psiquiatria na University of Pennsylvania. Eminentemente um cientista, Beck queria ver a psicanálise amplamente aceita na comunidade médica e, para isso, decidiu buscar comprovação empírica de suas teorias. Nessa época, a depressão era entendida pela psicanálise como resultado de hostilidade voltada contra si mesmo. Para testar essa hipótese, Beck procurou nos relatos dos sonhos de seus pacientes que apresentavam depressão por conteúdos relacionados a temas de hostilidade e comparou os resultados com outro grupo de pacientes que não estavam deprimidos. Surpreendentemente, para ele, os temas de hostilidade estavam menos presentes nos sonhos dos pacientes do grupo com depressão do que no grupo controle, enquanto que temas relacionados a fracasso, perda e privação eram mais presentes. O mesmo acontecia com o pensamento desses pacientes quando acordados. Após realizar outros estudos, concluiu que a hipótese psicanalítica da depressão era incorreta, mas isso deixou uma lacuna: afinal, como compreender a depressão?
Antes disso, ainda como psicanalista, Beck notou que os pacientes relatavam, no divã, duas tendências de pensamento: uma de livre associação e outra de pensamentos rápidos de autoavaliação. Por exemplo, uma de suas pacientes relatava suas aventuras sexuais e depois relatou ter ficado ansiosa, então ele supôs que ela poderia ter pensado que Beck a estava julgando. Ela disse que pensou que seus relatos o estavam chateando. Esse tipo de pensamento rápido era sempre acompanhado de alguma mudança emocional. Beck começou a questionar seus pacientes deprimidos e notou que todos apresentavam pensamentos automáticos desse tipo. Junto dos pacientes, passou a identificar, avaliar e responder a esses pensamentos, que eram geralmente irrealistas e exagerados, e isso fazia com que eles se sentissem melhores.
Em suas aulas da cadeira de psiquiatria, o Dr. Beck passou a ensinar seus alunos a executar esse procedimento, obtendo também bons resultados. John Rush, residente-chefe da época, propôs que fizessem um estudo da eficácia dessa forma de terapia. Em 1977, foi realizado um estudo clínico randomizado com pacientes depressivos que demonstrou que a terapia criada por Beck era tão eficaz quanto o uso de medicação. Esse foi o primeiro resultado que colocou uma terapia da fala em pé de igualdade com a terapia farmacológica. Dois anos após, Beck, Rush e colegas publicaram o primeiro manual de terapia cognitiva. Desde então, diversas pesquisas foram feitas e a terapia criada por Beck tem sido aprimorada com novas descobertas. A aplicação inicial voltada para depressão foi estendida para uma série de outros transtornos, como o transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de personalidade, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno de fobia social.
Mas como funciona exatamente a terapia cognitiva? Qual é a sua base teórica? Quais técnicas são usadas? Para respondermos a essas perguntas, primeiramente temos que esboçar em linhas gerais o que é o modelo cognitivo. Esquematicamente, podemos entendê-lo assim:
Ou seja, as emoções, o comportamento e as respostas fisiológicas que uma pessoa apresenta em uma dada situação dependem de como essa situação é interpretada pela pessoa. Vamos tomar um exemplo, adaptado do livro Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). Imagine uma situação na qual várias pessoas estão lendo um texto num site de divulgação científica. Suas emoções e seu comportamento podem variar de acordo com o que estejam pensando no momento. Algumas podem pensar que o texto faz sentido e que o conteúdo é interessante, então se sentem animadas e continuam lendo, buscam na internet mais coisas sobre o mesmo assunto, etc. Outras pessoas acham que o assunto é puro papo furado, perda de tempo mesmo, ou que está muito mal escrito, se sentem decepcionadas e fecham o texto. Algumas pensam que o assunto é interessante e importante e acham que devem aprender muito bem, então ficam ansiosas e releem repetidas vezes os parágrafos do texto. Há ainda aquelas pessoas que podem pensar que o conteúdo é difícil demais para poderem entender, se sentem tristes e vão assistir a vídeos de gatos no Youtube.
A situação de leitura de um texto por si só não determina diretamente como a pessoa vai reagir comportamental ou emocionalmente, isso depende da forma como ela percebe aquela situação. Nem sempre essa interpretação está sob o foco da atenção, por isso ela pode passar desapercebida e só ser notada a emoção que a acompanha. O interesse dos terapeutas cognitivo-comportamentais está justamente nesse nível de cognição.
Para tornar isso mais claro, note o que passa pela sua cabeça enquanto lê este texto, você poderá perceber que há dois níveis no seu pensar. Em parte, você está focado no conteúdo deste texto, tentando compreendê-lo e articulá-lo com outros conhecimentos que você possui. Noutra parte, porém, você pode estar tendo outro tipo de pensamento, rápido e avaliativo. A esse tipo de pensamento chamamos pensamentos automáticos, que, como o nome sugere, surgem espontaneamente, sem que você precise seguir algum raciocínio ou deliberação, e são bastante efêmeros, desaparecendo rapidamente. É possível que sequer sejam notados, pois o mais provável é que você esteja consciente da emoção ou do comportamento que o acompanha. Ou, ainda, quando são conscientes, esses pensamentos são aceitos acriticamente como verdadeiros. Para identificar seus pensamentos automáticos, você pode seguir algumas táticas, como prestar atenção em mudanças no seu comportamento, na sua fisiologia e na sua emoção. Tudo o que você deve fazer é se perguntar “o que estava passando pela minha cabeça?” nos momentos em que você repentinamente começar a se sentir triste ou disfórico, perceber seu ritmo cardíaco aumentar junto de uma sensação de angústia, tender a se comportar de alguma maneira disfuncional ou a evitar uma maneira mais funcional de se comportar e demais situações em que notar mudanças emocionais, fisiológicas e comportamentais.
A identificação do pensamento pode ser acompanhada pela avaliação dele, por exemplo, se você não entende alguma coisa na aula e pensa em fazer uma pergunta ao professor, talvez você tenha o pensamento automático: “eu não deveria perguntar isso para ele, ele vai pensar que eu sou burro”. Talvez você fique um pouco ansioso ou triste, seu coração dispare e sua boca seque. É provável que você desista de fazer a pergunta nessa situação, ou seja, você tende a se comportar de uma maneira disfuncional. Notando isso, você pode se perguntar o que passou pela sua cabeça e avaliar o pensamento. Talvez você lembre de situações anteriores nas quais você ou algum outro aluno perguntou algo que não havia compreendido e o professor foi bastante receptivo e explicou novamente, então pode pensar: “acho que o professor não vai pensar mal de mim por tirar uma dúvida, talvez ele até goste que eu queira entender direito a matéria”. Se você pensa que havia interpretado mal a situação e se corrige, então provavelmente você perceberá que seu humor melhora, suas reações fisiológicas diminuem e você se engaja em comportamentos mais funcionais.
Isso que foi esboçado até aqui é para dar ao leitor uma noção mais intuitiva, para facilitar a compreensão do que se segue. Mesmo assim, algumas dúvidas podem ter se colocado ao leitor. Por exemplo, de onde vêm esses pensamentos automáticos? Porque duas pessoas têm diferentes interpretações do mesmo evento ou então porque a mesma pessoa em duas situações similares em tempos diferentes pode ter interpretações diferentes? Essas perguntas serão respondidas na segunda parte do texto na qual vamos falar sobre crenças.
Referência
Beck, J.S. (2013). Terapia Cognitivo-Comportamental: Teoria e Prática. (2. ed.). Porto Alegre: Artmed