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O Realismo Científico de Mario Bunge

Por Léo Peruzzo Júnior
Entrevista publicada na Aurora Journal of Philosophy

Mario Bunge’s Scientific Realism


Mario Bunge nasceu em Buenos Aires, em 21 de setembro de 1919. Realizou seus estudos na Universidade Nacional de la Plata, obtendo seu doutorado em ciências físico-matemáticas em 1952. Foi professor de Física Teórica e Filosofia em Buenos Aires, entre 1956 a 1966. Em seguida, tornou-se professor de Lógica e Metafísica na Universidade McGill, em Montreal, onde trabalha desde 1966. Bunge recebeu vinte e quatro doutorados Honoris Causa, sendo membro da American Association for the Advancement of Science (desde 1984) e da Royal Society of Canadá (desde 1992). Em 1982, Bunge foi premiado com o Prêmio Príncipe das Astúrias, em 2009 com a bolsa Guggenheim e, em 2014, com o prêmio Ludwig Von Bertalanffy em Complexity Thinking. É autor de dezenas de livros, entre os quais estão Metascientific Queries (Charles C. Thomas, 1959); Intuition and Science (Prentice-Hall, 1962; Greenwood Press, 1975); The Myth of Simplicity. (Prentice-Hall, 1963). Scientific Research, 2 volumes (Springer, 1967); Foundations of Physics (Springer, 1967); Philosophy of Science: From Problem to Theory, Vol. 1 (Transaction Publishers, 1998); Philosophy of Science: From Explanation to Justification, Vol. 2 (Transaction Publishers, 1998); Scientific Realism: Selected Essays by Mario Bunge. Ed. Martin Mahner (Amherst, NY: Prometheus Books, 2001); El problema mente – cerebro (Madrid: Tecnos, 2002); Emergence and Convergence (Toronto: University of Toronto Press, 2003), entre outros.


Revista Filosofia Aurora – Caro professor Bunge, primeiramente gostaria de agradecer esta entrevista. Certamente sua obra está entre os pilares da filosofia da ciência do século XX por discutir a constituição do conhecimento teórico das ciências. O senhor poderia nos indicar, por gentileza, alguns traços ou caminhos fundamentais que permitiram ao senhor chegar a esta conclusão ao longo de sua trajetória intelectual?

Mario Bunge – Eu comecei interessando-me pela filosofia em duas etapas. Minhas primeiras publicações são filosóficas, mas me dei conta de que a Filosofia que eu queria fazer requeria conhecimentos científicos, por isso comecei a estudar física, me doutorei em física. E através desta consegui um bom assessor, o doutor Guido Beck (1903-1988) um refugiado austríaco, que naquele tempo era o único físico teórico que havia na Argentina. E, a partir disso, publiquei uma grande quantidade de artigos em revistas de Física, revistas de nível internacional, como Nature, International Journal of Theoretical Physics, Reviews of Modern Physics, Il Nuovo Cimento, entre outras. Realizei uma grande quantidade de trabalhos e, ao mesmo tempo, estudei, segui por minha conta, de maneira autodidata; fui autoridade em filosofia buscando informações filosóficas internacionais. Fundei uma revista de filosofia, intitulada Minerva, uma das primeiras entre os anos de 1944-1945, com o propósito de defender o racionalismo frente ao irracionalismo importado da Alemanha; o existencialismo, a fenomenologia, os discursos de Nietzsche, etc.

Revista Filosofia Aurora – E quais são os pontos fundamentais da filosofia que tem lhe interessado um pouco mais?

Mario Bunge O que mais me interessou foram as interpretações críticas, as interpretações relativistas e a mecânica quântica, mas depois me dei conta que eram necessárias alternativas, alternativas realistas; algo a fazer com a fala construtiva e foi o que fiz no meu livro Foundations of Physics que não foi traduzido para o espanhol. Nele, formulo teorias sobre os fundamentos da física, da mecânica quântica e do eletromagnetismo em forma axiomática, isto é, do estado inicial ao estado atual, conceitos básicos alternativos que realmente deduzem alguns teoremas característicos cujas medidas ligadas ao essencial fazem postular fórmulas isoladas que não fazem sentido, por exemplo, a famosa fórmula: energia igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz. Por isso, usam teoremas com enunciados relativistas como, no caso dos fótons, que carecem de massa. Mas muitos físicos e filósofos propõem que a fórmula é válida quando limitada à mecânica.

Revista Filosofia Aurora – Neste contexto, como podemos entender que a natureza teórica do conhecimento científico se converte na medida do processo científico, mais que o volume de dados empíricos acumulados?

Mario Bunge Desde o início da atividade clássica, a física foi teórica e experimental. Mas uma não funciona sem a outra, o que basta para entender o que é exato para explicar os eventos e processos físicos. Preocupa-me que há fórmulas que usamos para explicar se entra a dúvida dessa maneira fantástica. Para saber se uma formula é verdadeira é preciso submetê-la à prova empírica, isto é, observações e experimentos, e ao desenhar experimentos o fazemos levando em conta a física teórica e, além disso, usamos uma quantidade de hipóteses filosóficas, por exemplo, as hipóteses de que as fontes materiais existem por si mesmas, não são criações do teórico, como pretendem muitos cientistas quânticos, é o que existe por si mesmo, só é necessário aplicá-lo. Muitas dessas são fórmulas estrelas, onde não pode haver seres humanos, não pode haver laboratórios. Porém, acreditamos com boa razão que essas fórmulas são válidas nessa estrela, ainda quando esses objetos não possam ser observados, de modo que a física admite postulados do realismo científico segundo o qual a natureza existe por si mesma, e muito anterior historicamente ao ser humano. Acredito também que se admite o postulado metafísico materialista, ou seja, que os entes do mundo real são materiais, e isso não quer dizer que todos tenham massa e dureza como se acreditava antes, por exemplo, os fótons não tem massa, nem são duros, mas são materiais no sentido de que mudam, como já dito por Heráclito, tudo muda, panta rhei. E isso define o ente material, em contrapartida, aos entes ideais, tal como os números não mudam, nós podemos fazer mudanças não matemáticas, mas grupos que os matemáticos inventam são exceções; mas não posições arbitrárias como as da literatura fantástica, ou os de Esopo, ou como os animais que falam, fantasias submetidas à lei, as leis matemáticas, leis lógicas.

Revista Filosofia Aurora – Outra questão relacionada com o seu trabalho é a noção de que o modelo é um órgão de mediação entre os dados empíricos e o campo teórico. O que significa este posicionamento na forma de fazer ciência? O senhor acredita que esta é a forma em que funciona a ciência hoje em dia?

Mario Bunge Esta questão é muito complicada. Os experimentos publicados são maleáveis e observáveis. Disso é possível observar quando se cai em relações periódicas, por exemplo, quando colocamos algo numa balança Hooke o que vemos é uma flechinha. Mas, a balança foi desenhada com ajuda da Lei de Hooke, segundo a qual o deslocamento é proporcional à tensão da mola. Por exemplo, em um amperímetro, nós observamos o número que indica o ponteiro do amperímetro, o desenho do amperímetro supõe a eletrodinâmica clássica sem a qual não se poderia desenhar o amperímetro. Na eletrodinâmica aplica-se a intensidade da corrente proporcional, ou melhor, a tangente do ângulo que mostra o amperímetro é proporcional à intensidade da corrente que circula pelo circuito elétrico, sem esses marcadores não haveria ciência experimental. O mesmo acontece na pesquisa médica, por exemplo, onde a temperatura e a pressão arterial são indicadores do estado de saúde do paciente. Mas deve-se ir mais além dos indicadores, mais além dos sintomas. Temos que explicar os mecanismos em jogo, por exemplo, a obstrução ou a ruptura de uma artéria. É necessário saber o que há por trás desses sintomas. A propósito disso, na filosofia, que pensa em tudo, o exercício da medicina supõe pressupostos filosóficos; o médico dá por certo que o paciente existe, na medida em que não é um produto de sua imaginação. Também supõe que a causa do mal que atende a seu paciente é material, não acredita que sejam espíritos malignos que o assombram.

Revista Filosofia Aurora – Segundo seus argumentos, a força da teorização está justamente na capacidade das teorias gerais, que a princípio não dizem respeito a nenhuma parte do mundo. Ao serem enxertadas por estes objetos conceituais produzem representações da realidade, isto é, modelos teóricos. Neste caso, como o senhor observa a disputa entre o realismo científico e o construtivismo científico? De que modo podemos falar de uma “descrição da realidade”? As teorias são reais, expressam verdadeiramente o mundo? E sobre a noção de certeza? Podemos sustentar o conceito de certeza de um modo não ontológico?

Mario Bunge Não, a noção de certeza é uma noção psicológica que não tem muito a ver com a investigação científica. Buscamos os dados mais fidedignos, mas também casos que concordam com o uso das teorias. Temos um caso recente: há mais ou menos um ano e pouco, foram detectadas pela primeira vez, ondas gravitatórias que tinham sido previstas por Einstein um século atrás. A noção mesma de ondas gravitatórias é totalmente alheia às demais que existiam na gravitação. Por exemplo, a teoria newtoniana de gravitação é uma noção física de campo, mas as ondas gravitatórias não são meramente prova do centro de campo gravitatório, senão também prova que o espaço longe de ser trivial, plenamente matemático, espaço real, espaço físico, tem propriedades físicas, por exemplo, a curvatura e o espaço real, propriedades físicas se modificam a medida que aumenta a onda gravitatória. E isso de modo que o espaço tem uma película em forma de rede como uma onda de gelatina, o qual mostra que também o espaço é material, tão material como as varas que se utilizam para medir a intensidade dessas ondas. Isso muda completamente a teoria do espaço. O espaço existe independentemente de nós, mas o conhecemos graças à invenção dos conceitos. Assim, a noção de campo, a noção de curvatura do espaço, os estudos de Riemann. Para conhecer não basta ter noções, há de se ter teorias matemáticas que devem obedecer às leis lógicas. A consonância entre a teoria e os fatos é bastante complicada. Se faz, como já dito antes, por meio de indicadores da ocorrência destes eventos físicos, ou seja, pouco pesquisados ante a noção de observação ou de medição que tem sido criadas pelos filósofos, e também pelos físicos teóricos. É uma disciplina errada, porque não inclui esse conceito chave de nossos sentidos e dos que estão fora da nossa consciência, fora de nossa aceitação, de modo que há que trabalhar o conceito de medição de maneira realista à luz de medições reais. Também não temos que confundir a confirmação, que é indispensável com o critério de cientificidade, confusão que comete Karl Popper, que acreditou que era a falseabilidade, isto é, a falseação é uma condição necessária de todas as teorias científicas; e não é bem assim. Há muitos postulados que não podem ser falseados, apenas na química, há muitas teorias complicadas. Em todo caso, não podemos sustentar que uma composição determinada sobre a realidade seja verdadeira, a não ser que tenha sido confirmada, não uma vez, muitas vezes confirmada, por vários laboratórios que trabalham independentemente dos outros. Como acontece na teologia, que não basta que sejam citadas as Sagradas Escrituras para dar por certa uma afirmação. Em todo caso, falta na filosofia as operações empíricas, já colocada no meu livro de pesquisas científicas. O livro foi publicado em inglês, em 1967, ou seja, fazem exatamente 50 anos.

Revista Filosofia Aurora – Então a ciência não pode ser vista como uma atividade neutra dos desejos humanos?

Mario Bunge Esta questão é complexa e significativa. Não consigo ouvir muito bem [risos]. Não é culpa do telefone, mas somente dos meus ouvidos que foram banhados por muitas afirmações de filósofos que eu considero charlatões como, por exemplo, Hegel, Nietzsche, Husserl e Heidegger.

Revista Filosofia Aurora – Pensando na consequência destes resultados com respeito aos conhecimentos científicos, qual seria o papel para o trabalho filosófico e que tipo de filosofia deveríamos fazer, se ainda ela possui um papel importante?

Mario Bunge Eu acredito que ela sempre vai ter um papel importante. As hipóteses filosóficas devem ser conhecidas porque os cientistas não o fazem. Quando expõem suas ideias e seus resultados experimentais não costumam mencionar especificamente as hipóteses filosóficas que foram úteis tanto para imaginar essas ideias como para imaginar desenhos de experimentos. Porém, a filosofia está presente em toda a atividade científica, e essa é justamente uma tarefa do filósofo: sacar à luz as hipóteses filosóficas, que para mim são o realismo, o materialismo, o sistemismo. É dizer que tudo no universo é um sistema ou uma parte do sistema; não há fatos isolados, nem propriedades isoladas. É particularmente importante o caso da Medicina: o médico não trata um fato isolado, sabe que um paciente tem uma enfermidade, ou outra de forma menos aguda, mas tem que tratar as enfermidades como um pacote de mal, ao que há que atender como uma totalidade biológica que tem sido perturbada. Por exemplo, algum germe ou golpe exterior que provocou não somente um ponto, mas vários deles. Assim, toda enfermidade mental vai acompanhada dos chamados efeitos psicossomáticos, que são simplesmente danos que acontecem em outra parte do mesmo corpo. Todos eles são processos materiais particularmente biológicos, de modo que é preciso levar em conta não só os sintomas, senão como síndrome, pacotes de sintomas que são indicadores de outros que acontecem em distintos níveis, por exemplo, o câncer não é um tumor senão que é uma consequência de uma mutação genética, de uma mudança de um gene, que pode ter sido ou não espontâneo, produzido por exemplo num voo intercontinental a muita altura; os raios cósmicos são muito intensos e produzem mutações que não sentimos de imediato e bem mais tarde sabemos que nos produziram um câncer.

Revista Filosofia Aurora – Sem dúvida, resgatando uma perspectiva que o senhor adota, o exercício filosófico não pode negligenciar a esfera científica. E, ao contrário, o fazer científico necessita de instrumentos, hipóteses, argumentos a partir de razões filosóficas. Neste sentido, o senhor gostaria de comentar algum outro aspecto?

Mario Bunge – O meu único comentário é que acredito que os filósofos interessados pelo conhecimento, e não somente pelas palavras deveriam se reunir periodicamente em seminários, porque os seminários estimulam o questionamento de teses filosóficas que muitas vezes se dão por estabelecidas e, além disso, os problemas novos estimulam atividades filosóficas. Particularmente já participei ativamente em seminários, o meu primeiro foi quando tinha 18 anos. Quando fui preso, na cadeia um preso me perguntou de forma muito elegante se existia o destino; muitos companheiros expressaram a sua opinião a respeito deste tema. Outra questão foi sobre a existência do livre arbítrio. Tudo começou com Tomás de Aquino que foi o primeiro em afirmar a existência do livre arbítrio, que por muito tempo se acreditou que era uma fantasia teológica. Atualmente há muitos psicólogos cognitivos que estudam o livre arbítrio como algo real. No meu último livro há um apêndice escrito por quatro psicólogos cognitivos sobre esse tema, como algo experimental; É real e não existe para justificar os males deste mundo; é assim como que todo o bem se deve a Deus, e o mal se deve aos homens. Eu acho que o livre arbítrio todos temos, e livremente tomamos as nossas decisões, às vezes por compulsão, não é verdade? Mas sempre temos a possibilidade de negar, de rejeitar esses estímulos externos. primeiro psicólogo em admitir a existência do livre arbítrio foi Donald Hebb (1904-1985), que em seu livro The Organization of Behavior o definiu como uma capacidade de ação. E uma ação é livre se o sujeito a faz independentemente dos estímulos externos. Há outros muitos autores que já trataram esse tema. Outra teoria muito antiga é a prova de Anselmo, o canto da negação de Deus. Anselmo dizia que Deus é perfeito, e que a perfeição envolve resistência; nada perfeito pode existir que não seja bem resistente. Haveria de ser reinterpretada de novo. Temos que aceitar as premissas, Anselmo tinha razão.


Entrevista realizada por Léo Peruzzo Júnior, professor do Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e editor da Aurora Journal of Philosophy.

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