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Pare de usar a pseudociência para justificar a transfobia

Por Simón(e) Sun
Publicado na Scientific American

O sentimento anticientífico bombardeia nossa política, ou é assim que alega a Intellectual Dark Web (IDW). Entre o principal entre esses sentimentos anticientíficos, a IDW cita a crescente visibilidade das demandas pelos direitos civis dos transgêneros. Para a IDW, as pessoas trans e os defensores dos direitos aos transgêneros estão destruindo os pilares de nossa sociedade com conceitos pós-modernos que suprimem a liberdade de expressão, como: “mulheres trans são mulheres”, “pronomes de gênero neutro” ou “há mais de dois gêneros”. Eles que afirmam a “biologia básica” não pode ser ignorada. Segundo eles: “os fatos não se importam com os seus sentimentos”.

A ironia em tudo isso é que esses “protetores do Iluminismo” são culpados do próprio comportamento que eles condenam e suas posições são anti-iluministas. Embora muitas vezes sejam considerados apenas um movimento marginal da Internet, eles defendem afirmações não científicas que contaminaram nossa política e cultura. Especialmente alarmante é o fato de que essas afirmações “intelectuais” são usadas por pessoas que não são cientistas para sustentar uma possível base científica para a desumanização das pessoas trans. As consequências no mundo real estão se acumulando: a proibição de militares trans, leis restritivas para o uso de banheirosperda de direitos contra discriminação médica e no local de trabalhouma taxa de tentativa de suicídio entre 41 a 51% e violência fatal sendo as pessoas trans os alvos. Não é mais apenas trollagem na Internet.

Ao contrário da crença popular, a pesquisa científica nos ajuda a compreender melhor a experiência única e verdadeiro de ser um transgênero. Especificamente, por meio de três disciplinas: (1) genética, (2) neurobiologia e (3) endocrinologia. Portanto, segurem-se. É hora “daquela conversa”.

Sexo biológico: como se forma

Quase todo mundo no ensino fundamental durante a aula de biologia aprendeu que se você tem cromossomos XX, você é mulher; se você tem XY, você é um homem. Essa simplificação cansativa é ótima para ensinar a importância dos cromossomos, mas trai a verdadeira natureza do sexo biológico. A crença popular de que seu sexo surge apenas de sua composição cromossômica está errada. A verdade é que seu sexo biológico não é algo esculpido na pedra, mas um sistema vivo com potencial de mudança.

Por quê? Porque o sexo biológico é muito mais complicado do que XX ou XY (ou XXY, ou apenas X). XX indivíduos podem apresentar gônadas masculinas. Indivíduos XY podem ter ovários. Como? Por meio de um conjunto de sinais genéticos complexos que, no curso do desenvolvimento de um ser humano, começa com um pequeno grupo de células chamado primórdio gonadal bipotencial e um gene chamado SRY.

Um embrião recém-fertilizado inicialmente se desenvolve sem qualquer indicação de seu sexo. Por volta das cinco semanas, um grupo de células se agrupa para formar o primórdio gonadal bipotencialEssas células não são masculinas nem femininas, mas têm potencial para se transformar em testículos, ovários ou em nenhum dos dois. Depois que o primórdio se forma, o SRY – um gene no cromossomo Y descoberto em 1990, graças à participação de homens XX e mulheres XY intersexuais – pode ser ativado.

Embora ainda não seja totalmente compreendido, sabemos que o SRY desempenha um papel em direcionar o primórdio às gônadas masculinas. Mas o SRY não é um simples botão liga/desliga, é um sinal de partida precisamente cronometrado, o primeiro acorde da sinfonia da “gônada masculina”. Um grupo de células (que podemos comparar com seções de instrumentos) deve conjuntamente expressar o SRY (notas do acorde), no momento certo (o maestro?). Sem esse primeiro acorde, o embrião tocará uma sinfonia diferente: gônadas femininas ou algo intermediário.

E tem mais! Enquanto a breve e coordenada ativação do SRY inicia o processo de diferenciação do sexo masculino, genes como DMRT1 e FOXL2 mantêm certas características sexuais durante a idade adulta. Se esses genes param de funcionar, as gônadas podem mudar e exibir características do sexo oposto. Sem esses participantes constantemente ativos, certos componentes de seu sexo biológico podem mudar.

Ainda tem mais! O SRY, o DMRT1 e o FOXL2 não estão diretamente envolvidos com outros aspectos do sexo biológico. As características sexuais secundárias – pênis, vagina, aparência, comportamento – surgem mais tarde, a partir da interação de hormônios, ambiente, experiência e genes. Para explorar isso, passamos do corpo para o cérebro, onde a biologia se manifesta no comportamento.

Cérebro: onde as coisas são “feitas”

Quando a biologia fica muito complicada, alguns apontam para as diferenças entre os cérebros de homens e mulheres como prova do binarismo sexual. Mas meio século de pesquisa empírica pôs em xeque repetidas vezes a ideia de que a biologia do cérebro é simplesmente XY = cérebro masculino ou XX = cérebro feminino. Em outras palavras, não existe “o cérebro masculino” ou “o cérebro feminino”. Isso não quer dizer que não haja diferenças observáveis. Certas características do cérebro podem ser sexualmente dimórficas: diferenças médias observáveis entre homens e mulheres. Mas, como o sexo biológico, apontar o “sexo cerebral” como a explicação para essas diferenças está errado e atrapalha a pesquisa científica.

Tomemos apenas o exemplo mais famoso de dimorfismo sexual no cérebro: o núcleo sexualmente dimórfico da área pré-óptica (sdnPOA). Esta minúscula área do cérebro com um nome de tamanho desproporcional é ligeiramente maior nos homens do que nas mulheres. Mas não está claro se essa diferença de tamanho indica sdnPOAs conectados de forma distinta em homens e mulheres, ou se – como com o primórdio gonadal bipotencial – a mesma conexão é funcionalmente ponderada em direção às extremidades opostas de um espectro. Acrescente a observação de que o sdnPOA em homens gays é mais próximo do de mulheres heterossexuais do que de homens heterossexuais, e a ideia de “o cérebro masculino” se desfaz.

Tentar vincular sexo, cromossomos sexuais e dimorfismo sexual também é inútil para a compreensão de outras propriedades cerebrais. O hormônio vasopressina é dimórfico, mas está ligado a diferenças comportamentais e semelhanças entre os sexos. Simplificando, a ideia de um binário sexual não é cientificamente útil e em nenhum lugar isso é mais óbvio do que no cérebro. Também acontece que as pessoas transgênero literalmente têm cérebro para provar isso.

É fácil ver os dimorfismos sexuais e concluir que o cérebro é binário; fácil, mas errado. Graças à participação de pessoas trans em pesquisas, expandimos nossa compreensão de como a estrutura do cérebro, sexo e gênero interagem. Para algumas propriedades como volume cerebral e conectividade, as pessoas trans possuíam valores entre aqueles típicos de homens e mulheres cisgênero, tanto antes quanto depois da transição. Outro estudo descobriu que, para certas regiões do cérebro, os indivíduos trans pareciam semelhantes aos indivíduos cis com a mesma identidade de gênero. Nesse mesmo estudo, os pesquisadores descobriram áreas específicas do cérebro onde as pessoas trans pareciam mais próximas daquelas com o mesmo sexo no nascimento. Outros pesquisadores descobriram que pessoas trans têm diferenças estruturais únicas em relação aos indivíduos cis.

O corpo e o cérebro e os hormônios entre eles

Como se o cérebro e o corpo não fossem complicados o suficiente, outro fator biológico influencia a expressão do sexo biológico em um indivíduo: os hormônios. Qualquer pessoa que passou pela puberdade sentiu o poder dos hormônios em primeira mão. Mas, como todas as coisas da biologia, os hormônios não podem ser limitados à ideia púbere de “estrogênio = fêmea e testosterona = macho”.

Por um lado, todos os humanos possuem níveis de estrogênio, progesterona e testosterona, com diferenças sexuais não tão proeminentes como se pensa popularmente. Durante a infância e a pré-adolescência, esses hormônios situam-se em uma faixa bipotencial, sem diferenças sexuais marcantes. Durante a puberdade, certos hormônios sexuais como estrogênio, progesterona e testosterona tornam-se mais inclinados ​para uma das extremidades do espectro. Mas em adultos desenvolvidos, os níveis de estrogênio e progesterona são, em média, semelhantes entre homens e mulheres não grávidas. E enquanto a testosterona exibe a maior diferença entre homens e mulheres adultos, estudos de herdabilidade descobriram que a genética (X vs. Y) explica apenas cerca de 56 por cento da testosterona de um indivíduo, sugerindo muitas outras influências sobre os hormônios. Além disso, medições dos níveis de hormônios sexuais em qualquer indivíduo variam enormemente em toda a faixa de valores “médios”, independentemente de quão ampla ou restrita as medições são feitas. O modelo sexual binário não apenas prevê insuficientemente a presença de hormônios, mas é inútil para descrever os fatores que os influenciam.

Fatores ambientais, sociais e comportamentais também influenciam os hormônios em homens e mulheres, complicando a ideia de que os hormônios determinam o sexo. O nível de progesterona muda em resposta a situações sociais tipicamente masculinas que envolvem dominância e competição. O estrogênio, tipicamente ligado ao comportamento codificado para o sexo/gênero feminino, também desempenha um papel nos cenários sociais de dominação/poder codificados para o sexo/gênero masculino. Embora os níveis de testosterona sejam diferentes entre homens e mulheres em média, muitos fatores externos podem alterar esses níveis, como o fato de uma pessoa estar criando ou não um filho. Diferentes níveis de testosterona em homens e mulheres podem prever certos comportamentos parentais. Até mesmo o conteúdo de uma fantasia sexual pode alterar os níveis de testosterona. O fato é que o comportamento e o ambiente – como as normas e expectativas culturais de gênero – influenciam os hormônios relacionados ao sexo e a biologia do corpo e do próprio cérebro.

Ciência e sociedade: melhores juntas

Embora esta seja uma pequena visão geral, a ciência é clara e conclusiva: o sexo não é binário, as pessoas trans são reais. É hora de reconhecermos isso. Definir a identidade sexual de uma pessoa usando “fatos” descontextualizados não é científico e é desumanizante. A experiência trans fornece insights essenciais para a ciência do sexo e demonstra cientificamente que fenômenos incomuns e atípicos são vitais para um sistema vivo bem-sucedido. Até mesmo o próprio esforço científico é quantificadamente melhor quando é mais inclusivo e diverso. Portanto, não importa o que um analista, político ou troll da Internet possa dizer, as pessoas trans são uma parte indispensável de nossa realidade viva.

Os humanos transgêneros representam a complexidade e a diversidade que são características fundamentais da vida, da evolução e da própria natureza. Isso é fato.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.