“Só é mestre quem tem mestrado”. Achou essa afirmação sem sentido? Por quê? Será que a justificativa que você deu para negá-la aplicar-se-ia à frase “só é doutor(a) quem tem doutorado”? Há muito tempo, há uma discussão imensa sobre se é correto o uso do termo “doutor(a)” para médicos, assim como para pessoas formadas em Direito. Não digo que é uma discussão relevante para a sociedade, muito menos para o site nem tanto assim para mim, pois, particularmente, não tenho a mínima pretensão de ser chamado de “doutor” por ninguém depois de formado; mesmo assim, como envolve a minha área de atuação, decidi elaborar este artigo que, vale a pena esclarecer, é meramente opinativo.
O que costumam dizer para defender tal ponto é que “doutor” é um título, não um pronome de tratamento, que deve ser aplicado apenas àquele que tenha doutorado em alguma área, implicando que não deva ser usado para referir-se a alguém que não o possua. Entretanto, tais sujeitos parecem ignorar a importância dos contextos sociais e históricos que estejam por trás do termo, muito embora o façam quanto a outras palavras. Ora, chama-se de “mestre” quem conclui o mestrado, mas pessoas com conhecimento em determinadas áreas também recebem o adjetivo, como “mestre de artes marciais”, “mestre-cuca”, etc. Da mesma forma, o termo “seu”, que foi usado como pronome possessivo, é, também, usado como pronome de tratamento (Seu Manoel, Seu João, etc.), por mais que a origem da última significação seja distinta (senhor – sinhô – siô – seu).
É bastante provável que haja um contexto cultural embutido na atribuição de significados paralelos para esses termos; por que, com “doutor”, isso seria diferente?
Para sanar minha curiosidade sobre a história e etimologia da palavra “doutor” e, talvez, a de vocês, perguntei ao meu amigo Atyla Neto, médico ortopedista, conhecedor da História da Medicina, explicar-me sobre tal. Nas palavras dele:
“O termo Doutor vem do verbo latino docēre (ensinar). No fim do estudo universitário nas universidades da Idade Média, de acordo com as tradições da escolástica, obtinha-se a licença para ensinar (licentia doscendi), originalmente exclusiva da igreja. Assim, depois da conclusão de um curso universitário, o graduado se intitulava doutor e tinha o direito de ensinar na academia. Até então, a profissão de médico era aprendida de maneira informal e os termos ἰατρός (iátros) ou medicus eram encontrados na literatura.
No ano de 1221, o então imperador da Itália, Frederico II declarou que ninguém poderia tornar-se médico sem ser examinado publicamente pelos mestres de Salerno. Era um curso de 5 anos e, como de praxe, na época, os laureados recebiam o título de Doutor Medicinae. A partir daí, o termo de ‘doutor’ começou a ser usado para designar médicos. É uma relação histórica que data da incorporação da medicina à universidade.
Há 900 anos, usa-se o termo Doutor em Medicina para o graduado em medicina. Só no século XIX que o termo doutor começou a designar os portadores de doutorado. Os outros cursos de saúde datam do século XIX, não havendo relação histórica com o uso do Dr. como no caso da medicina, já se adequavam à nova norma universitária.
O mesmo vale para o Direito e todos os cursos que datam dos tempos da escolástica.”
Por fim, já deixando claro alguns pontos que, provavelmente, irão levantar:
“Eu sou obrigado a chamar um médico ou médica de doutor ou doutora?”
Não. O termo é indiferente ao tratamento que um médico deva oferecer-lhe. O médico não tem, portanto, o mínimo direito de ficar ofendido caso não seja tratado com tal palavra e sequer de exigir isso dos outros como forma de respeito.
“O médico precisa mesmo colocar doutor ou doutora no jaleco?”
Colocando “doutor” no jaleco, diz-se que ele está querendo dar um significado além do coloquial, ou seja, que quer usar um termo de maneira formal quando, por ela, tem outro significado. De modo melhor, formalmente, o termo “doutor” tem puro significado de “quem tem doutorado”. Logo, acho que isso não deveria ser feito.
“Mas você não acha que as pessoas querem ser chamadas de doutor ou doutora por mero status?”
Sim, concordo plenamente. No entanto, o propósito com que as pessoas queiram atingir com uma ação não torna a ação ilegítima, o que quer dizer que ser chamado de doutor ou doutora coloquialmente não é errado, mas, em minha opinião, fazê-lo para indicar status e subserviência social de quem chama é totalmente inaceitável, ultrapassando o limiar do ridículo.
Como o texto reflete minha opinião, ficaria feliz que, se o leitor tiver críticas, pudesse falá-las, para que eu possa moldar minha posição e torná-la mais concisa.
OBS: Quanto à comparação entre o “doutorado” e o “mestrado”, eu a fiz para explicar que as palavras podem ganhar vários sentidos e usei dois termos de proximidade (envolvidos no meio acadêmico) para demonstrar isso.