Por David Robert Grimes
Publicado no The Guardian
A observação de que a ciência e a política se fazem companheiras incômodas, e muitas vezes traiçoeiras, é dificilmente reveladora. Na ciência, todas as hipóteses devem resistir à prova de fogo dos experimentos; sua metodologia é despreocupada com preconceitos triviais ou convicções pessoais, é objetiva e se autocorrige. A política, ao contrário, está profundamente enredada com a ideologia – não é obrigada a respeitar a realidade como a ciência é, e não pensa duas vezes antes de substituir evidências convincentes pela retórica emotiva. E, no entanto, quando a ciência e a política se chocam, é com demasiada frequência que a ciência perde.
Isso é claramente visto nos confrontos entre a evidência científica e o liberalismo econômico, que é definido pela crença de que as economias devem ser fundadas ao longo de linhas individualistas, com uma regulamentação governamental mínima. Um forte apoio ao livre mercado e aos direitos de propriedade privada são características identificadoras. Este último axioma de fé afirma que aqueles que obtiveram propriedade são livres para explorá-la como desejarem, sem obrigação para com os outros. Este direito é considerado absoluto, e qualquer coisa que possa interferir com a propriedade sem consentimento – muitas vezes mesmo tributação – é considerada uma infração.
Com alguma variação, esses princípios formam a base da filosofia política de muitas organizações, grupos de reflexão e até partidos políticos, como o Partido Libertário e o Tea Party nos Estados Unidos e o Partido Liberal, que governa a Austrália. No entanto, muitas vezes, essas filosofias ferozmente individualistas e desfavoráveis a regulação, entram em conflito com a ciência, com consequências extremamente prejudiciais.
As mudanças climáticas ilustram bem isso, porque, apesar das evidências esmagadoras de influência antropogênica, há uma tendência para aqueles com pronunciadas opiniões favoráveis ao livre mercado rejeitem a realidade do aquecimento global. A razão subjacente a isso é transparente – se alguém aceitar a mudança climática antropocêntrica, então o apoio à ação mitigadora deve seguir. Mas o demônio da regulação é um passo largo demais para muitos libertários. Dado que as alterações climáticas afetam a todos, quer este consente ou não, então o uso não regulamentado de recursos naturais viola os direitos de propriedade dos outros e é ideologicamente equivalente a invasão, de modo que o tênue castelo de cartas do direito de propriedade desmorona.
Diante desse dilema ideológico, os defensores do livre mercado muitas vezes resolvem a dissonância cognitiva simplesmente rejeitando a realidade da mudança climática, ao invés de reconhecer que seu axioma é fundamentalmente falho.
A rejeição da ciência impede seriamente a ação com relação ao clima e a negação é endêmica nos conjuntos liberais econômicos americanos, tendo Tea Party como os piores criminosos. No ano passado, quando nevou no Alasca em maio, Sarah Palin exclamou: “Aquecimento global é meu glúteo máximo!“, Apesar do fato de que as paradoxais ondas de frio são preditas por modelos de mudança climática e não contradizem a constatação de que a temperatura global média continua a subir. O político libertário Ron Paul descarta a mudança climática reivindicando-a como uma farsa.
É claro que a afirmação de que a mudança climática é um mito não é um fenômeno exclusivamente americano: Tony Abbot denuncia a mudança climática como uma “merda absoluta“. No início deste ano, ele anulou o imposto de carbono já limitado introduzido para mitigar os danos, apesar de evidência clara de que as temperaturas médias australianas continuam a disparar para o céu.
A postura antirregulamentadora individualista dos defensores do livre mercado também tem consequências graves para os cuidados de saúde. Como o economista Paul Krugman explica em uma coluna recente, discípulos de Milton Friedman permanecem profundamente opostos ao próprio conceito da US Federal Drug Administration, vendo-o como intrusão desnecessária pelo governo. Na opinião de Friedman, sem a FDA as corporações evitariam de ferir as pessoas por medo de ações judiciais e, portanto, autorregular-se-iam.
A verdade é que sem avaliação externa, é difícil determinar a eficácia ou efeitos colaterais de qualquer droga. O livro de Ben Goldacre, Bad Pharma, ilustra com abundantes detalhes que, quando as empresas farmacêuticas são obrigadas a fazer ensaios clínicos, são frequentemente relatadas em formas estatisticamente desviantes, desonestamente escolhidas a dedo de forma a exagerar a eficácia de seus tratamentos. Isto não surpreende, dado que a motivação de uma empresa privada é maximizar o lucro, com a integridade científica chegando um segundo plano.
A expectativa de que as empresas privadas podem ser confiáveis para inovar os cuidados de saúde também é equivocada. Enquanto a resistência aos antibióticos tem aumentado constantemente, por exemplo, praticamente nenhum novo antibiótico tem sido desenvolvido em décadas. Uma das principais razões para isso é que, apesar do enorme impacto dos antibióticos sobre as taxas de mortalidade no século passado, eles continuam sendo produtos de baixo lucro, normalmente usados por um paciente por pouco tempo. É muito mais lucrativo desenvolver medicação de longo prazo para condições crônicas e, sem surpresas, isso é o que as empresas farmacêuticas preferem fazer.
Este é o resultado lógico de confiar a pesquisa em saúde a empresas privadas. Isso também significa que elas podem cobrar quantias exorbitantes para medicamentos que salvam vidas. Os defensores do livre mercado podem tentar colocar a culpa da elevação dos preços numa regulamentação onerosa e desnecessária, mas esse argumento é superficial, uma vez que eles geralmente se opõem ao aumento do gasto público na pesquisa médica e da tributação, o que poderia evitar esse ciclo vicioso. Também ignora o fato de que as empresas de drogas gastam múltiplos do seu orçamento de pesquisa em marketing.
Também ignora o fato de que as empresas de drogas gastam múltiplos do seu orçamento de pesquisa em marketing.
Outro exemplo é o controle de armas. Muitos libertários americanos criticam qualquer sugestão de que os regulamentos devem ser apertados, insistindo que as pessoas têm o direito de armar-se para se tornarem mais seguras. Mas as estatísticas mostram que este argumento é absurdo: aqueles que carregam armas de fogo, mesmo para proteção, são muito mais propensos a serem baleados e aumentar o risco de morte para aqueles ao seu redor. Essas tendências são confirmadas vez e outra em estudos epidemiológicos sérios, mas apesar do próprio ato de arriscar a segurança dos outros, a posição ideológica dos direitos individuais supera os fatos para um contingente considerável da população dos Estados Unidos.
Todos esses problemas resultam de um choque entre ideologia e evidência. A filosofia impiedosamente individualista fetichizada pelas modernas disciplinas de Ayn Rand convenientemente ignoram o fato de que os seres humanos não existem no vácuo e que as ações individuais muitas vezes têm consequências para todos. O mantra de que o lucro é uma panaceia para tudo e que os direitos pessoais triunfam sobre o bem coletivo é frequentemente equivocado e potencialmente desastroso.
Isto não é para descartar toda a filosofia política como um disparate, nem para implicar que todos os liberais econômicos existem num estado de negação abjeta, mas devemos ser cautelosos em permitir que qualquer ideologia política nos cegue à realidade objetiva. Nossos direitos individuais devem ser equilibrados com os direitos dos outros, o que exige uma interpretação realista das filosofias políticas e um certo abrandamento das perspectivas extremistas.
Embora possamos ter convicções pessoais incrivelmente fortes, a realidade não se importa nem um pouco pelo que acreditamos. Se persistimos em escolher a ideologia sobre a evidência, isso nos põe em perigo.
Nota da tradutora
Apesar do título do artigo (que foi mantido para não adulterar a intenção do autor), deve-se ressaltar que a ideologia libertária não é a única que frequentemente se porta como inimiga da ciência. Qualquer ideologia é potencialmente um obstáculo para a ciência, já que seus seguidores mais apaixonados frequentemente ignoram qualquer evidência que desafie algo que é dado como certo pela ideologia. Esquerda, direita, ou centro, possuem em si o perigo de dificultar o florescimento da ciência, seja com ataques diretos ou indiretos. Você pode ver mais sobre o assunto aqui, aqui, aqui e aqui.