Mario Bunge
Tradução de Glauber Frota
O prólogo da última edição espanhola da obra Ciência e Desenvolvimento (2014).
Durante a campanha eleitoral de 2012, o candidato presidencial democrata Barack Obama disse que a ciência e a tecnologia são “a chave para a economia do século”. Seu adversário, o republicano e fanático religioso Mitt Romney, falou sobre o desenvolvimento econômico, proferindo ao mesmo tempo promessas e ameaças de grandes cortes nos orçamentos da ciência, engenharia e medicina.
Este debate faz lembrar de meio milênio atrás, no início da Revolução Científica. Naquela época, houve um punhado de gigantes como Galileu, Huygens, Harvey e Boyle, que praticavam, renovaram e defenderam a investigação científica contra igrejas cristãs, que defendiam antigas superstições e, acima de tudo, alegavam que a verdade já estava feita no dogma, enquanto os inovadores argumentavam que a verdade ia sendo descoberta conforme a realidade era estudada.
De um ponto de vista filosófico, o julgamento que a Inquisição impôs contra Galileu foi basicamente uma luta entre o realismo (objetivismo) inerente à nova ciência e a combinação de empirismo ingênuo (fenomenalismo) com o convencionalismo, que defendiam tanto o acusador, o Cardeal Belarmino, como Melanchthon, o seu homólogo luterano. O debate Obama-Romney é parecido no que a ala esquerda do conservadorismo (o Partido Democrata) defende a ciência e o secularismo concomitante contra o fanatismo religioso de sua ala direita (Partido Republicano).
A religião é conservadora e, como observaram Aristóteles e Maquiavel, é também um instrumento de controle social: nunca incentivou a qualquer grande movimento de libertação nem gerou novas visões de mundo. No entanto, a ciência é inerentemente inovadora e até subversiva porque estimula a questionar as crenças recebidas e a buscar novas ideias, caia quem cair.
O mesmo debate entre dogma e pesquisa ainda ocorre em todo o mundo, mas mudam os nomes dos poderes que são invocados ou se fazem lado a lado e, embora os católicos tenham se determinado a adaptar-se à ordem estabelecida, geralmente são mais flexíveis que os seus concorrentes. Por exemplo, há seis décadas os cristãos em quase todas as seitas admitiram a evolução biológica, embora advertindo que não é natural, mas que é guiada a partir de cima, o que é como admitir que, embora o inferno exista, ele não seja mais um incêndio a fogo brando, mas ele submeta seus condenados à tortura psicológica, como forçá-los a ler Hegel ou Heidegger.
Os movimentos e governos conservadores permitem concessões em detalhes, mas não na substância. No nosso caso, o que é essencial é a tese de que a cultura moderna é secular e é impulsionada pela ciência e tecnologia, enquanto o dogma, seja ele religioso ou secular, a imobiliza. Para que floresçam a ciência e tecnologia, bem como as atividades econômicas e políticas que empregam conhecimento científico ou técnico, é essencial que haja liberdade de investigar o desconhecido, em vez de ater-se aos dogmas, sejam os de Krishna, Moisés, Cristo, Maomé ou ditadores modernos. Isso explica por que uma ditadura secular ou religiosa pode permitir ou até mesmo incentivar a investigação em ciências naturais, mas não em ciências sociais ou humanas.
O que os economistas dizem? A maioria deles tem ignorado a ciência e até mesmo praticado a pseudociência, como a teoria do livre mercado em equilíbrio. Alguns poucos economistas, como Robert Solow, têm admitido que a ciência ajuda no crescimento econômico, tanto para educar a força de trabalho como na medida em que os resultados da ciência básica são “traduzidos” para inovações técnicas, que por sua vez alimentam a indústria, como ocorre com a farmacologia. Basta lembrar os corolários industriais da física, como o dínamo e o computador; os da química, tais como os fertilizantes artificiais e os fármacos; da biologia, tais como os fármacos e as novas variedades de cereais; e das ciências sociais, como a gestão e manipulação da opinião pública.
Embora a pesquisa desinteressada dê alguns frutos práticos, é necessário evitar o utilitarismo ou o imediatismo, ou seja, a exigência do dar sempre e do curto prazo. Lembre-se de que os resultados de Apolônio sobre secções cônicas, como a parábola e a elipse, foram utilizados cerca de 1700 anos depois por Galileu e Kepler. Também invenções tecnológicas são muitas vezes lentas para se traduzir em benefícios econômicos. Não admira que o capital investido nelas seja chamado de capital de risco ou capital da aventura. Warren Buffet, o segundo homem mais rico do mundo, só investe em indústrias tradicionais, como lâminas de barbear e ketchup. E algo que já foi dito é que o rato que come o queijo da ratoeira é o segundo: o primeiro caiu na armadilha porque sua invenção tinha defeitos que o segundo advertiu e consertou.
O mercado é conservador. Especialistas em gestão sabem que o engenho científico e técnico só rende no longo prazo. E os líderes intelectuais sabem que a formação de bons pesquisadores é um processo lento, delicado e incerto. Portanto, protestam quando as universidades caem nas mãos de administradores iletrados, que preferem estudos que prometam render a curto prazo, a estudos que não prometem nada além da verdade. Quando se solicita a um engenheiro para projetar uma ponte melhor que a ponte Golden Gate, ele vai projetar uma ponte, não um robô para estudar e explorar o fundo do mar. Seria melhor pedir-lhe para imaginar e ensaiar o artefato que mais lhe fascine.
Quando os benefícios práticos da pesquisa básica são mencionados, não se pode esquecer de que algumas conquistas científicas têm sido usadas para destruir ou matar. Este aspecto negativo da técnica, do qual a ciência básica se salva, é utilizado pelos novos inimigos da ciência: os inimigos do cientificismo que têm prosperado tanto em Paris e Chicago como em Buenos Aires. Esse movimento vem não só da direita política, mas também da esquerda: nele, os membros da “teoria crítica” ou da Escola de Frankfurt, como Jürgen Habermas, marcham ao passo de economicistas reacionários como Friedrich Hayek, católicos como Etienne Gilson e Charles Taylor, e ateus como o argentino Oscar Varsavsky.
Todos estes anticientificistas têm algo em comum: eles confundem a ciência com a técnica e temem que a ciência social substitua a ideologia política. Às vezes, é medo ou ódio pessoal, como nos casos de cientistas fracassados e aqueles formados em literatura, humanidades clássicas ou “ciência da comunicação”, que são refratários aos números e aos experimentos. Este foi o caso dos precursores do Romantismo Jean-Jacques Rousseau e Giambattista Vico. E também é o caso dos relativistas que negam a existência de verdades gerais e argumentam que a ciência é apenas uma das muitas maneiras de olhar ou “construir” o mundo. O filósofo Paul Feyerabend resumiu essa doutrina em seu famoso slogan: “tudo vale”.
Em outros casos, a rejeição da ciência vem do viés empirista, particularmente positivista, contra tudo o que, da teologia à mecânica, vai além dos dados e dos sentidos. Este foi o caso de David Hume, ateu e antinewtoniano, e Immanuel Kant, agnóstico e tão fenomenalista e, portanto, subjetivista, quanto o Bispo Berkeley. Outros, como os “interpretativistas”, do kantiano-hegeliano Wilhelm Dilthey ao wittgensteiniano Peter Winch, o interpretativista Charles Taylor e o ideólogo neoliberal Friedrich Hayek, admitiram que o método científico é usado para estudar a natureza, mas negam que possa ser usado para estudar o social, porque seria essencialmente simbólico. Finalmente, há casos de simples ignorância e aderência ao dogma, como aconteceu com os filósofos religiosos de todos os tempos e com os soviéticos do período 1920-1960, que rejeitaram todas as teorias científicas que não entendiam, da lógica matemática às relatividades, à quântica e à genética.
Desculpem a digressão, mas eu achei que era necessário entender as semelhanças e diferenças entre o anticientificismo dos últimos anos e o obscurantismo clássico de Hegel, Nietzsche, Bergson, Husserl, Heidegger e Foucault, embora ambos tenham tentado superar o Iluminismo de Diderot, Helvetius, La Mettrie e Holbach. Por exemplo, em 1965, o comunista Louis Althusser fingia explicar Marx com a ajuda de Lacan a seu público nutrido e distinto da École Nationale Supérieure, enquanto o L’Unità, o órgão do Partido Comunista Italiano, exortava “liquidar os vestígios do Iluminismo”. Essa oposição do marxismo, ossificada contra o esplêndido Iluminismo francês de meados do século XVIII, não deveria surpreender aqueles que lembram que tanto Marx e Engels quanto seus sucessores adoraram Hegel, o mais proeminente membro do Contrailuminismo, inimigo de todas as novidades científicas de Newton em diante, e precursor do pós-modernismo.
Voltemo-nos agora para a questão de saber se a ciência ocupa um lugar destacado no desenvolvimento, como acreditavam os jovens esquerdistas de minha geração, anterior ao irracionalismo dos chamados pós-modernos. Obviamente, para resolver este problema de forma racional, é preciso começar por esclarecer o que se entende por desenvolvimento. Se você está fazendo esta pergunta a um economista, ele vai nos dizer que o desenvolvimento é o mesmo que o crescimento econômico, de modo que o PIB (Produto Interno Bruto) é o melhor indicador de desenvolvimento. Mas o PIB mede a intensidade da atividade econômica, o que não pode ajudar o desenvolvimento. Por exemplo, a principal indústria norte-americana é a guerra, e há setores como o vinho, tabaco, narcóticos e jogos de azar que entravam o desenvolvimento biológico e cultural.
Um marxista ortodoxo admitirá que existe algo mais, a “superestrutura ideal”, calcada no material ou financeiro. Mas vai insistir que todo avanço social é iniciado por alguma inovação econômica e se recusará a admitir a existência da ciência pura, carente de incentivo e objetivo econômicos. Também não está interessado nos avanços políticos graduais que, sem envolver a “expropriação dos expropriadores”, tornam a vida mais suportável e agradável ao melhorar as condições de trabalho ou ampliar a liberdade de iniciativa e ação.
Em 1990, as Nações Unidas adotaram um índice de desenvolvimento humano (IDH), mais realista do que o PIB, constituído pela média de três indicadores: PIB, longevidade e escolaridade. Usando esse novo índice, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) classificou as nações que levam em conta esses indicadores parciais de desenvolvimento em quatro grandes categorias. Assim, verificou-se que em 2011, a Noruega, Austrália e Holanda ocuparam as três primeiras posições; a Espanha foi a número 23, localizada entre a Finlândia e Itália; Polônia 39, entre a Hungria e Lituânia; Argentina, a 45ª, entre o Chile e a Croácia; os 150 países restantes foram colocados muito mais baixos na escala.
A adoção do IDH foi um avanço, pois reconheceu os níveis de desenvolvimento biológico e cultural, bem como econômico. Na primeira edição deste livro, assim como na oficina convocada pela UNESCO em Paris em 1974, na do México de 1979 convocada por Gabriel Valdés, então diretor do PNUD, em um artigo publicado em 1981 na revista Social Indicators Research e, finalmente, no meu livro Filosofia Política (2008), propôs-se a inclusão de alguns indicadores adicionais: a desigualdade de renda, o desenvolvimento político (ou democratização) e a sustentabilidade (relacionada com o custo da transformação de recursos naturais em mercadorias). O grau de desenvolvimento integral (ou civilização) seria a média de cinco indicadores:
C = (1/5) (H + K + ES + D + S) 12
onde H = expectativa de vida ao nascer; K = escolaridade; ES = segurança econômica; D = desenvolvimento democrático; e S = desenvolvimento ambiental sustentável.
Os dois primeiros índices são explicados no Relatório de Desenvolvimento das Nações Unidas (U.N. Development Report). O índice de escolaridade K é um indicador de desenvolvimento científico e técnico. O terceiro é definido da seguinte forma: ES = PIB × taxa de emprego (1 – índice de Gini). Os dois últimos são explicados no meu livro Filosofia Política (2009).
A ideia subjacente é que a aprendizagem de ciências ou técnicas, e não de pedagogia, forma bons professores. Ou seja, boa educação é um subproduto da ciência e tecnologia. Por ela, os países com os melhores alunos (como ingleses, alemães e japoneses) são aqueles em que os professores secundários são formados em universidades, e não em institutos de professores (como nos EUA e Argentina).
Em suma, as teses centrais deste livro são: 1) na sociedade moderna, a ciência e tecnologia são os motores da inovação; e 2) o verdadeiro desenvolvimento é integral, ou seja, biológico, econômico, cultural e político. A primeira tese não significa menosprezar as ciências humanas, mas negar que elas são a cultura avançada, como eram no Renascimento. A segunda tese implica que os negócios e o exercício da democracia (participação política), embora não suficientes, são necessários para avançar. Em suma, o desenvolvimento não é uma linha, mas um polígono.
Isto explica em parte por que a União Soviética falhou: era politicamente atrasada. Também explica porque a Arábia Saudita, o país com o maior PIB per capita, ocupa o posto 76, enquanto Cuba ocupa o 50 no desenvolvimento humano. Também explica porque Cuba não avança. E porque as nações escandinavas, as mais igualitárias no mundo, ganham em desenvolvimento humano e em competitividade os EUA, a maior economia do mundo. O desenvolvimento autêntico é integral. Quando não é, há estagnação ou declínio.
O anterior tem duas consequências interessantes. Uma delas é que os órgãos estatais responsáveis pelas políticas de desenvolvimento devem ser multidisciplinares, ao invés de serem capturados pelos economistas. Outra consequência é que essas políticas, para serem eficazes, devem ser baseadas em uma filosofia social sistêmica, ou seja, superior tanto ao individualismo inerente à teoria econômica padrão quanto ao holismo ou globalismo de Aristóteles, Hegel e Parsons. Tentei construir essa filosofia social em vários trabalhos, que têm sido objeto de vários estudos críticos.
Em resumo, a política de desenvolvimento global é um problema político digno de ser investigado por equipes multidisciplinares com base filosófica realista e não subjetivista, materialista e não espiritualista, sistêmica e não individualista, nem globalista, nem economicista e nem culturalista.