Por Mario Bunge
Publicado em Trilogía Ciencia Tecnología Sociedad
Tradução de Julio Batista
Todos nós sabemos que a tecnologia baseada na ciência progrediu incessantemente desde o tempo de Galileu, mas os céticos também sabem que, ao contrário da ciência, a tecnologia é ambivalente porque, embora amplamente benéfica, uma parte dela também é nociva. Assim, por exemplo, enquanto a ciência nuclear enriqueceu a civilização, a engenharia nuclear produziu os crimes de Hiroshima e Nagasaki e nos tornou céticos quanto ao futuro da vida na Terra. Essa ambivalência axiológica da tecnologia é o assunto a seguir.
Vamos começar separando a tecnologia da ciência que a sustenta.
Embora ambas as disciplinas sejam racionais e usem o método científico para justificar seus princípios, a ciência se contenta em encontrar novas verdades, enquanto a tecnologia está principalmente interessada pelas verdades de possível uso prático (Bunge, 1985).
Além disso, apenas os obscurantistas desconfiam da ciência, e apenas os ingênuos são tecnófilos descarados. Na verdade, tanto os irracionalistas quanto os defensores da abordagem humanística ou qualitativa do social são inimigos declarados do cientificismo; por outro lado, aqueles que não são tecnófilos ou tecnófobos percebem a ambivalência da tecnologia e propõem que se coloque uma focinheira para nos proteger de suas mordidas.
A contribuição da ciência básica para a tecnologia foi exagerada às vezes e subestimada em outras. Por exemplo, hoje sabemos que a Revolução Industrial do século 19 começou nos cérebros de alguns poucos artesãos e trabalhadores qualificados, não nos de engenheiros formados em universidades (Beckert, 2014). Por outro lado, o computador eletrônico teria sido impossível sem a física do estado sólido, aplicação da mecânica quântica, e sem a teoria da computação lançada por Alan Turing. Isso significa que a tecnologia pós-Revolução Industrial estava enraizada na pesquisa desinteressada, a única capaz de escavar as raízes microfísicas dos fenômenos ou aparências. Mas esse lado iluminado da ciência escondeu seu lado obscuro.
O medo do lado obscuro da tecnologia não é novo. Já em 1430, no auge das viagens de descobrimento, quando navegadores chineses embarcaram em navios dez vezes maiores que as caravelas de Colombo, com tripulações de até 1.500 marinheiros, o governo central do Império Celestial ordenou o fechamento dos estaleiros por medo dos possíveis prejuízos que o comércio exterior pelo Oceano Índico causaria: contatos com povos de maus costumes e fortalecimento excessivo do grupo de mercadores devido à relação com o exterior.
Quatro séculos depois, durante a Revolução Industrial, a substituição da tecelagem manual pela mecânica teve consequências trágicas: o desemprego de milhares de tecelões manuais e o surgimento do movimento ludita, que rejeitou a introdução e o uso de todas as máquinas modernas. E embora o ludismo tenha sido reprimido com violência, o desemprego tecnológico comoveu poucos fora da vida operária. Em particular, o grande poeta romântico Heinrich Heine escreveu sua famosa obra política The Silesian Weavers. Os economistas e filósofos da época, por outro lado, não abriam a boca. Eles não sabiam o que fazer diante desse novo fato social: uma mudança progressiva que enriqueceu alguns e levou milhares à miséria. Um século depois, quando o uso massivo de computadores dispensou calígrafos e taquígrafos, havia economistas que queriam nos consolar garantindo que embora fosse verdade que a mecanização inutilizasse alguns ofícios, também criaria outros, de modo que após um curto período o problema do desemprego tecnológico desapareceria. Mas isso era falso, porque um funcionário que lida com computadores substituiu dois outros ligados ao tinteiro e ao ditafone. Hoje ainda sofremos com essa consequência da automação que começou nas fábricas e escritórios por volta de 1950.
A verdade é que os avanços tecnológicos causam desemprego e que até agora ninguém nos disse o que pode ser feito para evitar essa consequência. Atrevo-me a sugerir que nada pode evitar, mas que existe uma forma de salvar os trabalhadores que se tornam redundantes quando substituídos por máquinas. Esse remédio parcial é a substituição da propriedade privada pela cooperativa de produção.
Com efeito, tanto os ganhos quanto as perdas se distribuem entre os cooperados, que ganham mecanizando parte do trabalho. Ou seja, os prejuízos causados pelas melhorias na produção são absorvidos pela cooperativa, o que os transmuta em ganhos de qualidade de vida. Em resumo, tal transmutação, inimaginável em uma perspectiva individualista, é óbvia em uma perspectiva sistêmica (Blanc, 1847; Bunge, 2009).
A mecanização do trabalho também tem consequências médicas, algumas das quais totalmente desfavoráveis. Basta pensar em um estilo de vida sedentário e seus problemas relacionados, obesidade e distúrbios cardiovasculares. Mas pelo menos esses assassinos silenciosos podem ser controlados com exercícios físicos adaptados aos horários de trabalho. Além disso, este aspecto da organização do trabalho pode ser melhor administrado em uma cooperativa de produção do que em um mercado formado por agentes mutuamente independentes, uma vez que a cooperativa pode empregar consultores médicos e treinadores.
Finalmente, vamos dar uma olhada no aspecto conceitual do avanço tecnológico. O uso de computadores permite o manuseio de montanhas de dados, aprimorando cálculos numéricos e estatísticas descritivas. Em particular, o computador pessoal (PC) fortaleceu notavelmente o ramo computacional da ciência, como a física computacional. Mas esse avanço teve um companheiro negativo: a negligência dos problemas fundamentais. Na verdade, os programas de computador tomam teorias como certas, levando ao dogmatismo, tão prejudicial tanto para as ciências quanto para as humanidades (Truesdell, 1984). Particularmente, o culto ao computador facilitou o cálculo de correlações estatísticas entre variáveis arbitrárias.
Em suma, o avanço no poder computacional foi prejudicado por um retrocesso na pesquisa fundamental, que poderia ter sido previsto, uma vez que a computação é mais fácil e mais satisfatória do que inventar ou avaliar novos formalismos matemáticos. Lembremo-nos de que o jovem Stalin trabalhava como calculador no observatório meteorológico de Tiblíssi e que era capaz disso porque esse trabalho não exigia conhecimentos científicos. Esse caso ilustra a diferença entre verdades de razão e verdades de fato, que Leibniz já havia apontado em 1704.
Referências
- Beckert, S. (2014). Empire of Cotton: A Global History. Nova York: Knopf Doubleday Publishing Group.
- Blanc, L. (1847). Organisation du travail. Paris: au Bureau de la Société de l’industrie fraternelle.
- Bunge, M. (2009). Filosofía política. Barcelona: Gedisa.
- Bunge, M. (1985). Treatise on Basic Philosophy (v. 7). Dordrecht: Reidel Publishing.
- Truesdell, C. (1984). An Idiot’s Fugitive Essays on Science. Nova York: Springer-Verlag.