A medicina está repleta de filosofia, mas a maioria não a reconhece. Mario Bunge, um filósofo, físico e membro do CSI (Center for Skeptical Inquirer), deseja unir a filosofia e a medicina para benefício mútuo. Ele escreveu um livro repleto de ótimos insights e demonstrando muita sabedoria, “Medical Philosophy: Conceptual Issues in Medicine” (“Filosofía para Médicos“, na versão em espanhol).
Se os médicos reconhecem ou não, a medicina está firmemente baseada nos princípios filosóficos do materialismo, sistemismo, realismo, cientificismo e humanismo. Bunge explica que:
- Sem o materialismo, tanto as doenças quanto as terapias seriam consideradas puramente espirituais.
- Sem o sistemismo, cada doença seria atribuída a um módulo independente.
- Sem o realismo, as doenças seriam vistas como imaginárias ou construções sociais.
- Sem o cientificismo, prevaleceriam o niilismo ou o dogmatismo, e todas as conquistas da pesquisa biomédica dos últimos 500 anos seriam relegadas ao esquecimento.
- Sem o humanismo, toda prática médica seria mercenária e não haveria cuidados de saúde pública.
Ele aponta que todos esses cenários estão vivos e bem em outros lugares. Sob a fachada de “medicina alternativa”, sistemas médicos pré-científicos antigos ainda são praticados quase em toda parte “em detrimento das pessoas, da flora e da fauna”. As CAMs (medicinas alternativas e complementares) são corpos isolados de crença que não se baseiam na ciência e não examinam suas próprias premissas filosóficas. Como a religião, a medicina alternativa depende da credulidade de seus clientes, que foram educados para acreditar sem evidências e sem explicação. Bunge diz que a acupuntura é inútil exceto como um placebo analgésico, que a farmacopeia Ayurveda é uma mera fantasia, que apenas alguns dos 11.000 medicamentos herbais chineses já foram submetidos a ensaios clínicos controlados, que 1/5 das ervas medicinais japonesas mais comumente prescritas são tóxicas, que a homeopatia ignora toda a ciência, e que a naturopatia é apenas marginalmente melhor, pois combina a ignorância do método científico com remédios em quantidades que podem ter efeitos reais no corpo. As CAMs não contribuíram com nada verdadeiro ou útil para a assistência à saúde. Ele desencoraja qualquer pesquisa adicional sobre hipóteses das CAMs que são incompatíveis com a maior parte do conhecimento científico.
O conceito de vitalismo está agora obsoleto. Os reducionistas postularam algum tipo de faísca vital sobrenatural porque não conseguiam imaginar como o todo poderia ter propriedades não presentes nas partes; hoje entendemos que novas propriedades emergem e se desenvolvem por processos puramente naturais. Um resquício do reducionismo é visto no DNAismo, a ideia simplista de que tudo é redutível ao DNA. Entender fatos complexos em biologia requer abordagens tanto top-down quanto bottom-up. Existimos em vários níveis, e condições como obesidade e vício são afetadas por fatores sociais, inadaptações e decisões equivocadas. Fatores sociais e ambientais podem afetar a ação dos genes através da epigenética e alterações na expressão gênica.
Na medicina, “é sistemismo o tempo todo”. O holismo vê a floresta, mas não as árvores. O individualismo vê uma única árvore. O sistemismo reconhece que não há todo sem suas partes e que alguns todos têm propriedades globais que suas partes não têm.
Bunge lança outra chave de fenda no design inteligente: se nosso corpo fosse sábio, não adoeceria exceto por acidente. O corpo produz anticorpos para proteção contra infecções, mas também produz endotoxinas e mantém células cancerígenas.
Ele aborda a história da medicina e o surgimento da ciência, definida por Richard Feynman como “a crença na ignorância dos especialistas”. Ele lamenta a forma como muitas pessoas confundem frequências com probabilidades: não existe uma probabilidade de 30% de você ter uma doença, ou você a tem ou não.
Ele trata do método científico, por que ensaios clínicos randomizados (ECRs) são necessários, mas insuficientes, e por que a maioria dos resultados de pesquisas já publicadas são falsos. Ele explica que o efeito placebo não é evidência do poder de uma mente imaterial sobre o corpo material, mas justamente o oposto: o efeito de um córtex cerebral material sobre órgãos subcorticais materiais.
Assim como nós, ele é um crítico da medicina baseada em evidências (MBE). Ele reivindica que a MBE não é tão nova quanto seus defensores afirmam ser e que exagera o peso da evidência em detrimento da hipótese. A MBE “só fortaleceu a tendência empirista de acumular dados não digeridos e desconfiar de toda teoria”. A ciência só avança quando os experimentos são guiados por hipóteses. Aqueles que acreditam que passar por um ECR é tudo o que precisamos para prova estão presos no empirismo. ECRs são o padrão ouro, mas há um padrão platina (ECRs mais mecanismos de ação) que é melhor. E mesmo estudos que se enquadram no padrão platina não devem ser idolatrados.
A medicina preventiva é, sem dúvida, a medicina mais importante de todas, e é uma questão social. O humanismo secular é o único sistema ético que define “justiça” como o equilíbrio entre direitos e deveres. Todos têm o direito moral à assistência médica. Isso implica uma obrigação moral de fornecer saneamento, vacinação e acesso à assistência médica para aqueles que não podem pagar. Hoje, a farmacologia moderna só alcança 2 em cada 7 seres humanos. Libertários deixariam os indivíduos tomarem suas próprias decisões sobre vacinação, mas em questões de saúde, o individualismo simplesmente não funciona. Sistemas sanitários, vacinação compulsória e gestão de epidemias exigem ação da sociedade como um todo.
Bunge defende uma abordagem sistêmica para resolver problemas na interseção entre medicina e política; ele propõe um pacote completo de políticas sociais com um programa multifacetado para abordar o acesso à assistência médica, planejamento familiar, medidas preventivas mais eficazes, incluindo melhor educação sobre dieta e higiene, desigualdade de renda, habitação, proteção ambiental, controle de preços de medicamentos farmacêuticos, fortalecimento de ONGs e maior participação dos cidadãos na política. Mesmo que você não concorde com suas soluções, provavelmente concordará com sua identificação dos problemas.
Este não é um livro divertido ou fácil, mas é repleto de informações e provoca reflexões sobre questões sérias que afetam todos nós. É um livro desafiador que fará os leitores reconsiderarem suas suposições inconscientes, confrontarem novas ideias sobre coisas sobre as quais não pensaram e pensarem mais profundamente sobre coisas que podem ter dado como certas. Oliver Wendell Holmes, Sr. disse: “Uma mente que se abre a uma nova experiência jamais voltará ao seu tamanho original.” Este é um livro que abre a mente.
O artigo foi publicado originalmente por Harriet Hall na Science-Based Medicine.