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A primeira Grande Mestra: como Nona Gaprindashvili conquistou o mundo na época de Beth Harmon

“Não consigo imaginar a vida sem um tabuleiro e peças de madeira, ora silenciosas, indiferentes e monótonas, ora eloquentes, temperamentais e nitidamente diferentes umas das outras. o xadrez, para mim, é a minha vida.”
— Nona Gaprindashvili

Você provavelmente já ouviu falar da série da Netflix, O Gambito da Rainha, que segue a vida da prodígio do xadrez americano Beth Harmon em sua jornada para enfrentar os maiores Grandes Mestres do mundo, enquanto lutava contra seus demônios interiores. Quando Harmon finalmente enfrenta os pesos-pesados ​​soviéticos pela primeira vez em Moscou, a câmera mostra brevemente uma jogadora de xadrez soviética, Nona Gaprindashvili. Embora a história de Harmon seja fictícia, Gaprindashvili é a única jogadora de xadrez da vida real apresentada, embora brevemente, na série.

Um locutor do episódio final compara as duas mulheres, mas diz ao público que, ao contrário de nossa heroína americana, Gaprindashvili nunca enfrentou homens. Isso não é bem verdade. Nona Gaprindashvili não foi só a primeira mulher a ser nomeada Grande Mestre: foi também a primeira a ganhar um torneio internacional de xadrez disputado por homens. Numa época em que as mulheres quase não tinham espaço nos tabuleiros de xadrez, Nona foi capaz de travar grandes batalhas contra jogadores lendários, como o estoniano Paul Keres e o letão Mikhail Tal. Seus sucessos extraordinários levaram à rejeição do desrespeito pelas habilidades enxadrísticas do “sexo mais fraco”. Nesse artigo, você verá como Nona conquistou o mundo do xadrez nos anos 60, um pouco antes de sua versão fictícia nos encantar no universo fictício de O Gambito da Rainha.

Lances de abertura

Gaprindashvili nasceu na cidade georgiana de Zugdidi, a poucos passos da costa do Mar Negro, em 1941. Ela cresceu com os pais, quatro irmãos mais velhos e um irmão mais novo. Desde jovem, Gaprindashvili não tinha medo de apostar na vitória. E, de todos os esportes que praticou, o xadrez foi aquele que mais a conquistou. Aprendendo o jogo com seus irmãos mais velhos, a pequena Nona era sedenta por vitória: ela queria derrotar não só seus irmãos, mas todos os outros meninos da vizinhança.

Em 1954, aos 12 anos, ela se viu competindo pela equipe da cidade de Zugdidi no Campeonato Georgiano de Xadrez, realizado na cidade litorânea de Batumi – apesar de não ter se inscrito para participar. Quando o time masculino Zugdidi ouviu falar de uma garota na cidade que era uma habilidosa jogadora de xadrez, eles a convidaram para jogar no lugar de seu irmão, que estava se preparando para a universidade e não tinha tempo para competir.

Foi em Batumi que a jovem Gaprindashvili foi descoberta pelo renomado treinador de xadrez georgiano, Vakhtang Karseladze, que convenceu seus pais a se mudarem para Tbilisi, para que ela pudesse treinar em uma das escolas de xadrez de prestígio da capital. Dois anos depois, Gaprindashvili conquistou o título do Campeonato Georgiano de Xadrez Feminino em 1956 (seguido por mais três conquistas em 1959, 1960 e 1961). Embora a Geórgia ainda não tivesse campeões mundiais de xadrez, os torneios de xadrez atraíam grandes massas em todas as cidades.

Glória à rainha

Aos 21 anos, em 1962, Gaprindashvili conquistou seu primeiro título no Campeonato Mundial Feminino de Xadrez ao derrotar a duas vezes campeã mundial feminina Elisaveta Bykova da Rússia com um placar esmagador de 9 a 2 (7 vitórias, 4 empates e nenhuma derrota). A vitória foi uma grande conquista para a pequena nação da Geórgia. Gaprindashvili usou uma guirlanda da vitória em sua viagem de trem de volta para casa, e seus fãs georgianos se aglomeraram em estações em todo o país para ver seu trem chegar, na esperança de apertar sua mão ou apenas dar uma olhada.

Sua vitória em Moscou atraiu a atenção mundial e, um ano depois de seu primeiro título, Gaprindashvili foi convidada para um torneio de xadrez exclusivo em Hastings, na Inglaterra, com a presença dos melhores jogadores do mundo. Nona foi a primeira mulher desde Vera Menchik a participar do torneio e a primeira a vencer a categoria secundária “Challengers”, o que a qualificou para participar da categoria “Premier” em 1964. Gaprindashvili acabou ficando em quinto lugar, vencendo todos os jogadores britânicos e empatando com o peso-pesado do xadrez Paul Keres.

A arte do sacrifício

Conhecida por seu estilo agressivo, Gaprindashvili foi especialmente elogiada por sua habilidade tática e seu olho aguçado para uma boa combinação de movimentos. Em uma partida em 1974 contra o mestre alemão Rudolf Servaty em Dusseldorf, ela sacrificou suas duas torres para fechar um xeque-mate e forçar seu oponente a abandonar. Mas as melhores partidas de Gaprindashvili são do torneio Lone Pine International de 1977, um evento de prestígio no calendário de xadrez.

Como a única mulher convidada, em um ano em que os requisitos de inscrição foram aumentados para dificultar a entrada no torneio, ela ficou em primeiro lugar junto com o argentino Oscar Panno, o russo Yuri Balashov e o sérvio Dragutin Sahovic. Gaprindashvili recebeu notáveis elogios por sua “técnica refinada de finais”, como um artigo do New York Times descreveu, no jogo contra o Grande Mestre americano Tarjan, em que ela sacrificou um peão para garantir uma vitória. Foi sua atuação nesses torneios, entre outras conquistas, que lhe rendeu o título de Grande Mestre em 1978, a primeira mulher a conquistá-lo na época.

Máquina de combate 

Gaprindashvili perdeu o título de campeã mundial feminina em 1978 para outra georgiana, Maia Chiburdanidze, de 17 anos, que o manteve por mais 13 anos e permaneceu como a mais jovem campeã mundial de xadrez até 2010. Chiburdanidze se tornou a segunda mulher – depois de Gaprindashvili – a se tornar uma Grande Mestre. (Até o momento, das 38 mulheres que já ganharam o título de Grande Mestre, 6 são georgianas).

O match marcou um novo capítulo na história do xadrez georgiano. Não se tratava mais apenas de Gaprindashvili: mais mulheres georgianas estavam subindo nas classificações mais altas dos torneios internacionais. Quatro das finais do Campeonato Mundial Feminino entre 1962 e 1991 foram georgianas contra georgianas (1975, 1978, 1981 e 1988) – a saber Gaprindashvili e Chiburdanidze ao lado de Nana Alexandria e Nana Ioseliani. Os comentaristas chamavam o quarteto de druzhina, uma unidade de combate.

Promovendo novas damas

Mas como uma pequena nação como a Geórgia conseguiu manter uma sequência de conquistas por tanto tempo? A resposta pode estar enraizada na história. Desde o século XII, é tradição que as noivas georgianas recebam um jogo de xadrez e uma cópia da poesia de Shota Rustaveli como presente de casamento. A própria Gaprindashvili recebeu um valioso jogo de xadrez como um presente ao se tornar campeã mundial feminina.

Atualmente, as mulheres georgianas permanecem fortemente representadas entre as melhores jogadoras de xadrez, como Nana Dzagnidze – batizada em homenagem à lenda do xadrez georgiana Nana Alexandria – classificada em nono lugar entre as mulheres globalmente. Recentemente, Dzagnidze ganhou um torneio crucial em Lausanne, o que pode significar um passo mais perto de desafiar a campeã mundial feminina em 2022.

Vencendo fora dos tabuleiros

Mesmo depois de perder seu título de campeã feminina, Gaprindashvili ganhou sua vigésima e última medalha de ouro nas Olímpiadas de Manila em 1992 (um recorde jamais superado por qualquer outro enxadrista, homem ou mulher) e venceu o Campeonato Mundial Sênior Feminino de Xadrez em 1995 (torneio que ela viria a ganhar mais seis vezes, em 2009, 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019): desta vez representando a Geórgia, não a União Soviética.

Depois que a Geórgia se tornou um país independente em 1991, Nona Gaprindashvili começou a participar ativamente da vida pública. Até 1996, ela chefiou o Comitê Olímpico Nacional. Um dos objetivos deste trabalho era tomar decisões que permitissem o desenvolvimento e popularização do xadrez na Geórgia. Desde 2002, ela tem sido eleita deputada da Câmara Municipal de Tbilisi. E em 2008, começou a chefiar o Partido Democrático da Geórgia Unida, uma posição em que trabalhou por vários anos.

A primeira das Grandes Mestras

Mais de 50 anos depois da conquista do seu primeiro título mundial feminino, o legado de Gaprindashvili continua a existir dentro e fora dos tabuleiros. Em homenagem às suas realizações, uma fábrica de perfumes em Tbilisi criou uma fragrância inspirada nela. Chamada simplesmente de “Nona”, a garrafa tem o formato de uma peça de xadrez: a dama (ou rainha). O palácio de xadrez de Tbilisi é dedicado a Gaprindashvili. Há até a Taça Nona Gaprindashvili, que desde 1998 premia o país com o maior número total de pontos combinados entre jogadores masculinos e femininos nas Olimpíadas de Xadrez.

Nona Gaprindashvili levou o xadrez feminino a um nível sem precedentes. Ela transformou uma pequena nação do leste europeu em uma potência que dominou o xadrez feminino por mais de 30 anos. Mais do que isso: ela mostrou ao mundo que as mulheres também podem jogar xadrez no mais alto nível. Existem atualmente 38 mulheres classificadas como Grande Mestres, e não há como dizer quantas mais estão em formação. Claro, não há uma “Beth Harmon da vida real” agora, mas provavelmente ela está lá fora – talvez até treinando em um porão de orfanato com um zelador, apenas se preparando para nocautear todo mundo.

Alguns feitos notáveis da carreira de Nona Terentievna Gaprindashvili (1941):

Aos 15 anos, venceu o Campeonato Georgiano Feminino de Xadrez de 1956, tornando-se a campeã georgiana mais jovem até então.

Aos 20 anos, venceu o Torneio de Candidatos Feminino de 1961 sem perder uma partida sequer, marcando 13 pontos em 16 possíveis (10 vitórias, 6 empates e nenhuma derrota).

Aos 21 anos, venceu o Campeonato Mundial Feminino de Xadrez de 1962 por um placar esmagador de 9 a 2 (7 vitórias, 4 empates e nenhuma derrota), tornando-se a campeã mundial feminina mais jovem até então.

Aos 22 anos, venceu o Hastings Challengers de 1963/1964, tornando-se a primeira mulher a vencer um torneio internacional de xadrez disputado por homens.

Aos 23 anos, derrotou todos os jogadores britânicos e empatou com o fortíssimo Grande Mestre Paul Keres no Hastings Premier de 1964/1965, terminando o torneio em quinto lugar.

Aos 35 anos, venceu o Lone Pine International de 1977, dividindo o primeiro lugar com os fortíssimos Grandes Mestres Oscar Panno, Yuri Balashov e Dragutin Sahovic.

Aos 37 anos, tornou-se a primeira mulher Grande Mestre, recebendo o título após incrível desempenho no torneio Lone Pine International de 1977.

Aos 45 anos, venceu todos os dez jogos que disputou na Olimpíada de Dubai em 1986, conquistando três medalhas de ouro e alcançando um rating performance de 2877, 137 pontos a frente do campeão mundial absoluto da época, Garry Kasparov.

Foi campeã olímpica vinte vezes e conquistou vinte e cinco medalhas gerais: 20 de ouro, 4 de prata e 1 de bronze.

É, até hoje, a pessoa com mais medalhas de ouro na história das Olimpíadas de Xadrez (20), tanto individuais (9), quanto por equipes (11).

É, até hoje, a maior campeã do Campeonato Soviético Feminino de Xadrez, com 5 títulos oficiais conquistados (1964, 1973, 1981, 1983 e 1985).

É, até hoje, a maior campeã do Campeonato Mundial Feminino Sênior de Xadrez, com 7 títulos oficiais conquistados (1995, 2009, 2014, 2015, 2016, 2018 e 2019).

É, até hoje, a maior campeã do Campeonato Europeu Feminino Sênior de Xadrez, com 5 títulos oficiais conquistados (2011, 2015, 2016, 2017 e 2018).

É a primeira, e até hoje única, mulher campeã mundial feminina de xadrez a também conquistar o título mundial feminino sênior. Entre os homens, apenas Vasily Smyslov, campeão mundial de xadrez de 1957 a 1958 e campeão mundial sênior em 1991, conseguiu repetir tal feito.

Dá o seu nome, desde 1998, à Taça Nona Gaprindashvili, o troféu que premia o país com o maior número total de pontos combinados entre jogadores masculinos e femininos nas Olimpíadas de Xadrez.

Alguns feitos notáveis da carreira de Elizabeth Beth” Harmon (1948):

Aos 10 anos, derrotou todos os doze membros do clube de xadrez da Duncan High School em partidas simultâneas.

Aos 14 anos, venceu o Campeonato Estadual de Xadrez de Kentucky de 1963, derrotando jogadores fortíssimos como Townes (1724 pontos de rating), Sizemore (2050 pontos de rating) e Beltik (2150 pontos de rating e campeão estadual da época). 

Aos 15 anos, venceu o Torneio de Cincinnati de 1963, derrotando na final o fortíssimo Mestre Americano Rudolph.

Aos 17 anos, foi vice-campeã do Mexico City Invitational de 1966, derrotando os fortíssimos Grandes Mestres Georgi Girev (da União Soviética), Octavio Marenco (da Itália) e Diedrich (da Áustria).

Aos 18 anos, venceu o Campeonato de Xadrez dos Estados Unidos de 1967, derrotando na final o fortíssimo Grande Mestre Benny Watts (campeão americano da época).

Aos 19 anos, foi vice-campeã do Paris Invitational de 1967, derrotando os fortíssimos Mestres Internacionais A. Bergland (da Noruega), P. Darga (da França), S. Malovicz (da Iugoslávia) e R. Uljanov (da União Soviética).

Aos 20 anos, venceu o Moscow Invitational de 1968, derrotando todos os Grandes Mestres mais fortes do mundo – Hellstrom (da Suécia), Duhamel (da França), Flento (da Itália), Laev e Shapkin (da União Soviética) – e dois campeões mundiais – Luchenko (ex-campeão mundial) e Borgov (campeão mundial da época), ambos da União Soviética.

Entre a primeira partida do Campeonato Estadual de Xadrez de Kentucky de 1963 e a final do Campeonato de Xadrez dos Estados Unidos de 1966, permaneceu três anos seguidos sem perder uma partida sequer, até ser derrotada pelo campeão americano Benny Watts.

De novembro de 1963 a dezembro de 1966, perdeu apenas três partidas oficiais: a final do Campeonato de Xadrez dos Estados Unidos de 1966 (para Benny Watts) e as finais do Mexico City Invitational de 1966 e do Paris Invitational de 1967 (para Borgov).

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Ruan Bitencourt Silva

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