Por Eduardo Quintana
Publicado na Ciencia del Sur
Em 1947 foi expulso do Partido Comunista por ter “iniciativa própria”; hoje é um dos principais críticos do marxismo a partir do ponto de vista científico. Em 1951 foi preso sob a acusação de fomentar uma greve ferroviária e desafiar um decreto-lei de 1949, que proibia greves na Argentina. Em 1963, após a censura ideológica do Governo, foi forçado a emigrar e, desde 1966, tem se estabelecido no Canadá, o país que lhe concedeu uma nova nacionalidade.
É o doutor Mario Augusto Bunge um dos poucos pensadores contemporâneos que tratou de unir a ciência com a filosofia, tanto é que produziu um “Tratado de Filosofia Básica” (elaborado de 1974 a 1989) abertamente racionalista, materialista e cientificista.
Aos 19 anos, Bunge fundou a Universidad Obrero Argentina (UOA) para favorecer a educação superior da classe trabalhadora. Em 1943, o então secretário de Trabalho e Previsão, o coronel Juan Domingo Perón, fechou a universidade. Também fundou a revista Minerva, a primeira publicação hemisférica a favor do racionalismo e contra as correntes irracionalistas.
Embora tenha se aposentado da Universidade McGill no Canadá, segue produzindo. Meses atrás, publicou seu livro Doing Science e assim que essa obra foi lançada, começou a escrever outra, que será publicada em 2018.
Bunge nasceu na cidade de Buenos Aires, Argentina, em 21 de setembro de 1919, e aos seus 97 anos, segue trabalhando intelectualmente. Em 1952 obteve o doutorado em Ciências Físico-matemáticas na Universidad Nacional de La Plata (UNLP), onde exerceu a docência. Também foi professor da Universidad de Buenos Aires (UBA) e de universidades e centros de pesquisa no México, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Austrália, na Suíça e no Canadá.
Em 1982, Bunge recebeu o Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação e Humanidades, e em 1986 o prêmio Konex de Humanidades. Esteve no Paraguai em 2013, convidado pela Associação Paraguia Racionalista (APRA). Deu uma série de conferências magistrais e se reuniu com cientistas, filósofos, jornalistas e pesquisadores. A Universidad Iberoamericana (Unibe) lhe concedeu um Doutorado Honoris Causa e foi com esta instituição que seguiu colaborando com artigos científicos.
Bunge, que defende abertamente a divulgação científica e é um lutador incansável contra as pseudociências, conversou com o Ciencia del Sur sobre suas ideias, seu trabalho atual e sua vida privada.
Em seu paper The self-domesticated animal and its study, publicado pela Unibe do Paraguaí, assegura que a psicologia é uma ciência completamente independente, mais do que um capítulo da zoologia. Por que segue existindo a discussão epistemológica sobre a psicologia?
Existe a discussão, de fato. Os naturalistas asseguram que os seres humanos são animais como os demais, de modo que a zoologia bastaria para explicar o comportamento humano. Se negam a admitir que, apesar de sermos animais, também somos os únicos que criamos economias, políticas e culturas.
Os humanos fabricam tudo com diretrizes próprias, criadas e modificadas por nós mesmos. Por exemplo, somos os únicos a fazer guerras pelo petróleo, a explorar a congêneres e a cultivar a biologia.
Atualmente, há centenas de congressos, publicações científicas, competições e apoio organizado à ciência ao contrário de outras épocas. No século XXI, a ciência continua buscando a verdade ou estudando a realidade?
Os cientistas atuais, quando agem de boa fé, buscam a verdade, tal como seus predecessores. Também assumem a existência real do mundo externo, mesmo quando alguns deles repetem a afirmação de Immanuel Kant, de que o mundo é o conjunto de fenômenos ou aparências.
Por exemplo, acreditam que esta folha de papel está composta de átomos que preexistem à nossa percepção do mesmo.
Se a ciência é talvez o melhor método para examinar a realidade ou entender a natureza, por que ainda existem religiões e pseudociências?
A pseudociência e a religião persistem ao lado da ciência porque se podem aprendê-las sem esforço e com menor tempo do que a ciência, que requer uma longa aprendizagem.
Um estudo indica que em países como Malásia e Estados Unidos a população secular ou ateia pode se estagnar, pois conta com um baixo índice de natalidade. A reprodução humana é um problema hoje?
É bem possível que a população secular/pró-científica decaia por causa da falta de reprodução. Mas existem remédios para evitar esta consequência do avanço da ciência. Um é que as pessoas aprendam por si mesmas que a superpopulação pode causar dano ao planeta inteiro.
Outro remédio seria criar instituições que premiem o controle da natalidade e castiguem a quem produzir mais filhos do que aqueles que se podem criar bem.
Por outro lado, a comunidade científica se uniu em abril contras as políticas anti e pseudocientíficas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que negou a mudança climática. Por que um mandatário nega a evidência?
Os políticos ignorantes, que são os mais abundantes, cometem um grave erro ao propor políticas que recompensam a ignorância e dificultam a pesquisa científica. Mas eles prosseguem, porque sabem que os ignorantes lhe darão votos mais do que as pessoas educadas.
Como vê o estudo e o mercado da ciência no futuro?
O mercado premia apenas as descobertas que possuem uma utilidade imediata. A busca da origem de nossa espécie, as pesquisas sobre as ondas gravitacionais ou o estudo dos buracos negros não possuem valor comercial. De modo que os mercados não as propiciaram.
Daí a adoração ao mercado conduz à estupidez coletiva.
Por que a ciência é importante para a América Latina?
O terceiro mundo necessita proteger a ciência básica ainda mais do que os países desenvolvidos, porque seu atraso científico é um componente de seu atraso geral. Em particular, para controlar o mercado você tem que saber como funciona.
Recentemente, o Dr. Takaaki Kajita, Prêmio Nobel de Física, lamentou ao Ciencia del Sur o estado da ciência no Japão pela falta de mais apoio. Como o senhor qualifica a supressão das humanidades em alguns países, como é o caso desta potência asiática?
A supressão dos estudos humanísticos e das ciências sociais é uma medida bárbara. Mas os estudos humanísticos improdutivos, como, por exemplo, a linguística reduzida ao estudo da sintaxe com desprezo pela psicolinguística experimental e a sociolinguística não ajuda a entender a fala, e, portanto, é tão inútil quanto a oração ou a política de café.
É preciso que as humanidades e as ciências sociais adotem a atitude científica e estudem problemas reais, como a desigualdade.
Por que a filosofia é importante no século XXI?
A filosofia sempre foi importante para a sociedade, tanto para compreendê-la como para oprimi-la. Para florescer, a filosofia ser realista e não subjetivista; racionalista e não intuicionista; sistemática e não setorial; materialista e não espiritualista, e, acima de tudo, humanista, em vez de abraçar causas injustas, como o racismo e o imperialismo.
O que deve ser feito para incentivar o estudo da filosofia científica nas universidades da América Latina?
Para auxiliar no avanço dos estudos filosóficos, devemos recompensar as pesquisas originais, descartar a simples erudição e criticar a submissão do filósofo à ideologias retrógradas, como o neoliberalismo, o tomismo, o positivismo e o marxismo dogmático, que se limitam a comentar autores clássicos.
Qual é o trabalho deixado para os filósofos que são informados e formados em ciência?
As ciências e as tecnologias propõem novos problemas metafísicos e gnoseológicos, enquanto a problemática social propõe problemas éticos. Pense, por exemplo, nas mudanças de nossa concepção do espaço que coloca a descoberta das ondas gravitacionais; no meu modo de entender, se essas ondas causam mudanças no espaço, então elas são materiais.
E se as mudanças propostas pelos neoliberais beneficiam apenas os ricos, então o neoliberalismo é anti-humanista.
Como o senhor está de saúde?
Estou bem de saúde, mas caminho pouco desde que tive uma apoplexia há um ano e meio. Desde então, terminei o livro que eu tinha na mão, Doing Science, que já foi publicado. Comecei e terminei outro livro, The scientific stance, que será lançado no ano que vem, quando completo 98 anos.
O que o senhor costuma ler aos 97 anos?
Continuo lendo tanto ciência como literatura. Reviso sempre Nature, Science e American Sociologial Review. Além disso, leio em suas línguas originais contistas, como Dino Buzzati, e romancistas, como Jean-Mrie Gustave Le Clézio.
O senhor acabou de voltar da França. O senhor está hospedado no Canadá agora?
Por enquanto, vamos ficar no Canadá, chato, mas tranquilo, onde desfrutamos de bons cuidados médicos gratuitos.
No final de seu livro autobiográfico Entre dos mundos, o senhor afirma que “desfrutou a vida e tentou ajudar a servir”. O senhor se auto-realizou e foi feliz, em termos aristotélicos?
Tive uma boa vida, apesar de algumas dificuldades pecuniárias, e acredito ter sido de alguma utilidade, como pai e professor de física teórica e filosofia, bem como autor de 75 livros.
Mas também perdi muito tempo com atividades políticas erradas e leituras filosóficas inúteis.
Mestre, muito obrigado pelo seu tempo.
Obrigado por suas perguntas interessantes. Abraço.