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O valor da verdade

Por Gustavo Romero
Publicado na Ciencia del Sur

Não gostamos que nos enganem. Se perguntarmos sobre o estado de um carro que queremos comprar e dizem-nos que está “bom”, esperamos que isso corresponda com o que vamos pagar. Se votarmos em um político que diz que não roubará, não nos agradará vê-lo roubar descaradamente em uma função pública. Ninguém, penso eu, gostaria de descobrir que seu parceiro está mentindo.

Se perguntarmos algo, em geral, esperamos uma resposta verdadeira ou, ao menos, de boa fé. Até mentirosos e trapaceiros, enganadores de todos os tipos e demagogos estimam a verdade. O primeiro requisito para mentir é conhecer a diferença entre o que é dito e a verdade.

Em nenhum campo, a verdade é mais valorizada do que na ciência e tecnologia. A ciência busca encontrar representações verdadeiras do mundo. Ela busca obter dessas representações enunciados que correspondam aos fatos. O tecnólogo, por outro lado, deve conhecer a verdade de muitos enunciados para poder projetar um aparato que funcione. Se o coeficiente dinâmico de viscosidade de um pneu não for o indicado, seu uso poderá levar a um acidente fatal.

É inútil acumular exemplos: toda a tecnologia moderna funciona porque são verdadeiras miríades de enunciados que foram testados inúmeras vezes sob condições controladas e rigorosas. No entanto, é muito comum ouvir de acadêmicos, especialmente das ciências sociais, que a verdade é uma mera construção social. Que cada sociedade, cada época, cada grupo humano e cada pessoa tem a “sua verdade”. Que uma crença é a mesma coisa que uma opinião científica. Que a evidência é produzida ou inventada em um contexto social. Em suma: que não há verdade. No máximo, haveria “verdades” cambiantes que dependem do momento e do lugar. Dizem-nos ainda que a verdade pode até ser perigosa, um instrumento para impor uma visão, exercer um poder sobre os outros, um caminho à escravidão intelectual.

Essas opiniões não são novas, certamente. Elas aparecem nos primeiros sofistas gregos, como Protágoras, Górgias, Hípias e Pródicos, entre os mais conhecidos. Elas ressurgem com o romantismo e o irracionalismo europeu do século XIX. Elas estão em Nietzsche e seus sucessores e permeiam toda a filosofia moderna genericamente chamada pós-modernista, construtivista e pós-estruturalista.

As ideias construtivistas que questionam o valor da verdade estendem-se à interpretação da ciência dos escritos de personagens como Gaston Bachelard, Paul Feyerabend e Bruno Latour. Para Latour, por exemplo, as verdades científicas não são descobertas, mas inventadas ou construídas no laboratório em um determinado contexto social.

Avaliar essas opiniões implica ter uma noção clara do que queremos dizer com a palavra “verdade”. O que é, exatamente, a verdade? É uma coisa, alguma classe de entidade, que podemos “achar” no mundo? É um mero conceito? O que queremos expressar quando dizemos que a ciência “busca a verdade”?

A verdade e a doxa

Aristóteles afirmou que a verdade é dizer que o que é é e o que não é não é. No poema Sobre a Natureza, Parmênides diferencia entre um discurso verdadeiro e uma mera opinião (doxa). De acordo com essa tradição, a verdade não é uma coisa, mas uma relação entre nossas opiniões e os fatos. Podemos refinar esses conceitos e dizer que existem duas classes de verdades: ontológicas e semânticas.

As primeiras são a correlação entre duas classes de processos físicos: processos entre nosso cérebro e processos no resto do Universo. Como as relações entre processos, a verdade ontológica, ou adequação de nosso pensamento à realidade, deve ser investigada pelas ciências empíricas, especialmente pelas neurociências.

As verdades semânticas, por outro lado, são relações entre conceitos (expressos por meio de enunciados de nossa linguagem). Essa classe de verdades é estudada pela semântica filosófica. Ela só trata de relações entre conceitos que não se referem a fatos, tendo enunciados puramente formais como os da matemática, cuja verdade é estabelecida pela coerência com um sistema formal.

Por outro lado, dizemos que um enunciado que se refere a fatos (fático) é verdadeiro se, e somente se, estiver de acordo com os enunciados que expressam um corpo de evidência sobre os fatos em questão. A evidência é composta por enunciados que são obtidos da experiência. Se essa experiência é científica (ou seja, controlada sob os padrões da ciência do momento), a evidência também é.

É importante destacar que os enunciados não são verdadeiros ou falsos em si mesmos. Não é possível estabelecer a verdade de um enunciado fático apenas analisando o enunciado; devemos analisar o mundo se quisermos saber se é verdadeiro ou não. Nossa análise do mundo, por outro lado, nunca é completa. Portanto, as verdades fáticas raramente são completas e são sempre relativas às evidências disponíveis em determinadas circunstâncias.

Relativas, mas não subjetivas. Isto é, elas dependem da evidência, mas não da nossa vontade ou subjetividade. Por causa da dependência com a evidência, o valor de verdade de um enunciado pode mudar quando mudar o corpo de evidência. É por isso que a ciência progride: enunciados que antes eram considerados verdadeiros são descartados como falsos frente a novos dados, e novos enunciados são formulados à luz de teorias desenvolvidas para substituir as antigas que produzem muitos enunciados falsos.

Todos os animais que sobrevivem de alguma maneira avaliam seu ambiente e formam representações do mesmo. Sua sobrevivência depende que essas representações se ajustem à realidade. Se um predador ou uma fonte de alimento não for corretamente identificado, existe o risco de morte. Daí o valor das representações verdadeiras. O mesmo acontece com as sociedades humanas.

Nenhuma sociedade que se apoie em concepções essencialmente falsas do mundo pode sobreviver a longo prazo. Ela simplesmente sofrerá com a falta de capacidade em se adaptar à realidade e a transformá-la para ser capaz de sobreviver e progredir. A luta contra a ignorância, a superstição e a mentira deliberada forma o núcleo essencial do progresso da civilização. Essa luta expressa o valor da verdade, e é a luta de todos os seres humanos que aspiram a ser verdadeiramente livres.

Gustavo Esteban Romero

Gustavo Esteban Romero

Gustavo E. Romero tem doutorado em física pela Universidade Nacional de la Plata. Atualmente, é Professor Titular de Astrofísica Relativística na Faculdade de Ciências Astronômicas e Geofísicas da UNLP e Investigador Superior do CONICET, Argentina, com lugar de trabalho no Instituto Argentino de Radioastronomia, onde dirige o Grupo de Astrofísica Relativística e Radioastronomia (GARRA). Foi presidente da Associação Argentina de Astronomia, Professor Visitante das universidades de Paris VII, Barcelona, Karlsruhe, Gunagzhou, Hong Kong e UNAM, entre outras, assim como cientista convidado em mais de 20 instituições científicas ao redor do mundo. Publicou mais de 350 artigos de ciência e filosofia e 10 livros. Seus principais interesses acadêmicos se concentram na astrofísica relativística, na filosofia científica, na cosmologia e no cinema. Vive na cidade de La Plata, Argentina.