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O ceticismo do cientista

Por Mario Bunge
Publicado na Skeptical Inquirer

Tradução de Julio Batista

Aqueles de nós que questionam as crenças em fantasmas, reencarnação, telepatia, clarividência, psicocinesia, radiestesia, influências astrais, magia, feitiçaria, abduções de OVNIs, grafologia, cirurgia psíquica, homeopatia, psicanálise e semelhantes, são chamados de “céticos”. Com isso, desejamos indicar que adotamos a famosa dúvida metódica de Descartes. Isso é apenas uma desconfiança inicial em relação a percepções, pensamentos e relatórios extraordinários. Não é que os céticos fechem suas mentes para eventos estranhos, mas que, antes de admitir que tais eventos são reais, eles querem que sejam verificados com novos experimentos ou raciocínios. Os céticos não aceitam ingenuamente as primeiras coisas que percebem ou pensam; eles não são ingênuos. Nem são neofóbicos. Eles são apenas críticos; eles querem ver evidências antes de acreditar.

Dois tipos de ceticismo

A dúvida metódica é central ao ceticismo metodológico. Esse tipo de ceticismo deve ser distinguido do ceticismo sistemático, que nega a possibilidade de qualquer conhecimento e, portanto, implica que a verdade é inacessível e a busca por ela é em vão. Os céticos de ambas as variedades criticam a ingenuidade e o dogmatismo, mas enquanto o ceticismo metodológico nos incita a investigar, o ceticismo sistemático bloqueia a pesquisa e, portanto, leva ao mesmo resultado que o dogmatismo, ou seja, a estagnação ou pior.

O artesão e o tecnólogo, o gerente e o organizador, assim como o cientista e o filósofo autêntico, se comportam como céticos metodológicos, mesmo que nunca tenham ouvido falar dessa abordagem – e mesmo que se comportem de maneira ingênua ou dogmática após o expediente. De fato, em seu trabalho profissional não são ingênuos, nem desacreditam de tudo, mas desconfiam de qualquer ideia importante que não tenha sido posta à prova e exigem o controle de dados e também de conjecturas. Eles procuram por novas verdades em vez de ficarem contentes com um punhado de dogmas, mas também mantêm certas crenças.

Por exemplo, o eletricista faz algumas análises e testa a instalação antes de entregá-la; o farmacologista testa o novo medicamento antes de orientar a sua fabricação em quantidades industriais; o gerente solicita uma pesquisa de marketing antes de lançar um novo produto; o editor pede conselhos aos revisores antes de enviar um novo trabalho para a editora; os professores testam o progresso dos alunos antes de avaliá-los; matemáticos tentam provar ou refutar seus teoremas; físicos, químicos, biólogos e psicólogos projetam e redesenham experimentos por meio dos quais testam suas hipóteses; o sociólogo, o economista sério e o cientista político estudam amostras aleatórias das populações nas quais estão interessados em investigar ​​antes de anunciar generalizações sobre elas – e assim por diante. Em todos esses casos, as pessoas buscam a verdade ou a eficiência e, longe de admitir sem crítica hipóteses, dados, técnicas e planos, preocupam-se em verificá-los.

Por outro lado, os teólogos e filósofos irracionalistas, os economistas neoclássicos e políticos messiânicos, bem como os pseudocientistas e os gurus da contracultura, se dão ao luxo de repetir dogmas que não são testáveis ​​ou que falharam em testes rigorosos. O resto, quem ganha a vida trabalhando com as mãos, produzindo ou difundindo conhecimento, organizando ou administrando organizações, se encarrega a praticar a dúvida metodológica.

O ceticismo metodológico é uma postura metodológica, prática e moral. Na verdade, aqueles que o adotam acreditam que é insensato, imprudente e moralmente errado anunciar, praticar ou pregar ideias ou práticas importantes que não foram postas à prova ou, pior, que foram demonstradas de maneira conclusiva serem totalmente falsas, ineficientes ou prejudiciais. (Observe a restrição a crenças importantes; por definição, trivialidades são inofensivas mesmo quando falsas.)

Como confiamos na investigação e na ação com base nos resultados de pesquisas, não somos céticos sistemáticos. Não acreditamos na falsidade e suspendemos o julgamento a respeito de tudo o que não foi verificado, mas acreditamos, pelo menos temporariamente, o que quer que tenha passado nos testes necessários. Ao mesmo tempo, estamos dispostos a desistir de quaisquer crenças que se revelem infundadas. Em suma, os céticos metodológicos são construtivos.

O ceticismo do cientista

É impossível avaliar uma ideia por si só, independentemente de algum sistema de ideias que é tomado como base ou padrão. Ao examinar qualquer ideia, o fazemos à luz de outras ideias que não são questionadas no momento; a dúvida absoluta seria tão irracional quanto a crença absoluta. Consequentemente, o ceticismo sistemático ou radical é logicamente insustentável. Da mesma forma, todo cético metodológico tem um credo ou outro, por mais provisório que seja.

Por exemplo, avaliamos um teorema matemático à luz de suas premissas e das leis da lógica – e, por sua vez, as últimas são avaliadas por sua fertilidade e consistência com a matemática. Julgamos uma teoria física por sua consistência lógica e sua organização matemática, bem como de acordo com sua harmonia com outras teorias físicas e sua correspondência com os dados empíricos relevantes. Avaliamos uma teoria química de acordo com as teorias físicas que são consideradas óbvias e se ela concorda ou não com outras teorias químicas, bem como com os dados experimentais relevantes. Procedemos de maneira semelhante com as demais ciências. Em particular, exigimos que a psicologia não viole nenhuma lei biológica e que as ciências sociais respeitem a psicologia e se harmonizem umas com as outras. (O fato de que a economia e a politologia convencionais não se importam com outras ciências sociais é precisamente um ponto contra elas.)

Em outras palavras, o ceticismo do cientista é metodológico e parcial, não sistemático e total. Pesquisadores sérios não são crédulos nem niilistas; eles não abraçam crenças acriticamente, mas admitem, pelo menos até novas observações, uma série de dados e teorias. Seu ceticismo é construtivo, não apenas crítico.

Além disso, em todos os casos, o cético metodológico ou moderado pressupõe – embora raramente de forma explícita – que as teorias e métodos científicos satisfaçam certos requisitos filosóficos. São eles (a) materialismo: tudo no universo é concreto ou material, embora não necessariamente corpóreo, e tudo se comporta de acordo com leis; (b) realismo: o mundo existe independentemente de quem o examina e, além disso, pode ser conhecido pelo menos parcial e gradualmente; (c) racionalismo: nossas ideias devem ser internamente consistentes e devem ser coerentes umas com as outras; (d) empirismo: toda ideia sobre coisas reais deve ser empiricamente testável; e (e) sistemismo: os dados e hipóteses da ciência não são isolados, mas constituem um sistema (para detalhes, ver Bunge 1983a, 1983b).

Sem dúvida, poucos cientistas se dão conta que esses cinco princípios são de fato pressupostos na pesquisa científica. No entanto, não é preciso muito para mostrar que (a) se qualquer um dos princípios anteriores fosse abandonado, a pesquisa científica fracassaria, e (b) a principal diferença entre ciência e pseudociência não é tanto o fato de que a primeira seja verdadeira e a última falsa, mas mais o fato de que essa pseudociência não obedece a esses princípios – como consequência, raramente entrega a verdade e nunca se corrige.

Nem todos os céticos compartilham esses princípios filosóficos. A maioria deles acredita que apenas o método científico aplicado à coleta de dados é necessário para conduzir a pesquisa científica. No entanto, é possível aplicar o método científico a uma investigação não científica, como tentar medir a velocidade de fantasmas ou a intensidade da ação da mente sobre a matéria. Para produzir conhecimento, o método científico deve ser acompanhado por uma visão de mundo científica: materialista, realista, racionalista, empirista e sistêmica. Este é o cerne do credo do cético.

Conclusão

Os céticos metodológicos não são crédulos, mas também não questionam tudo ao mesmo tempo. Eles acreditam em tudo o que foi demonstrado ou demonstra ter um forte suporte empírico. Eles não acreditam em qualquer coisa que conflita com a lógica ou com a maior parte do conhecimento científico e suas hipóteses filosóficas subjacentes. Trata-se de um ceticismo qualificado, não indiscriminado.

Os céticos metodológicos defendem muitos princípios e, acima de tudo, confiam no ser humano para avançar ainda mais no conhecimento da realidade. Sua fé é crítica, não cega; é a fé do explorador, não a do crente. Eles não acreditam em nada na ausência de evidências, mas estão dispostos a explorar novas ideias ousadas se encontrarem razões para suspeitar que elas merecem uma chance (ver, por exemplo, Bunge 1983c). Eles têm a mente aberta, mas não uma mente vazia; eles são rápidos em filtrar o lixo intelectual.

Por exemplo, os céticos metodológicos não encontram razão para se envolver em investigações experimentais quando já foi desmentido que o pensamento sozinho pode energizar máquinas, que a cirurgia pode ser realizada por puro poder mental, que encantamentos mágicos ou soluções de um produto diluído em dez elevado à centésima potência têm poder terapêutico, que máquinas de movimento perpétuo podem ser construídas, ou que existem teorias para resolver tudo. Todas essas crenças podem ser demolidas com o uso de alguns princípios científicos ou filosóficos bem testados. Essa estratégia é certamente mais barata do que o empirismo ingênuo.

Para concluir. Pseudociência e pseudotecnologia são as versões modernas do pensamento mágico. Elas devem ser submetidas a um escrutínio crítico não apenas para limpar o lixo cultural, mas também para evitar que charlatães se apropriem de nossos bolsos. E criticá-las não basta mostrar que elas carecem de apoio empírico – pois, afinal, pode-se acreditar que tal apoio possa surgir. Devemos também mostrar que essas crenças no oculto ou no paranormal se chocam com teorias científicas bem estabelecidas ou com princípios filosóficos frutíferos. Por essa razão, a crítica ao pensamento mágico deve ser um esforço comum de cientistas, tecnólogos, filósofos e educadores. Dada a exploração comercial massiva do lixo cultural, bem como o atual declínio no ensino de ciência e tecnologia em vários países, a menos que trabalhemos mais duro para desmascarar a pseudociência e a pseudotecnologia, estaremos em um declínio acentuado da civilização moderna (ver Bunge 1989).

Referências

  • Bunge, M. Exploring the World. Dordrecht: Reidel, 1983a.
  • ________ Understanding the World. Dordrecht: Reidel. 1983b.
  • ________ Speculation: Wild and sound. New Ideas in Psychology, 1:3-6, 1983c.
  • ________ The popular perception of science in North America. Transactions of the Royal Society of Canada, V, 4:269- 280, 1989.
Mario Bunge

Mario Bunge

Mario Bunge (1919-2020) foi físico e filósofo científico, sendo um dos pensadores de língua espanhola mais citados da história, de acordo com a revista Science. Foi membro honorário do Universo Racionalista. Concluiu seu doutorado em Física-matemática pela Universidade de La Plata, foi agraciado com cerca de 21 doutorados honoris causa e estudou Física Nuclear no Observatório Astronômico de Córdoba. Fundou a revista científico-filosófica Minerva em 1944. Foi professor de Física (1956-1958) e Filosofia (1957-1962) na Universidade de Buenos Aires, Argentina, e foi professor de Lógica e Filosofia (1962-2020) na Universidade McGill, em Montreal, Canadá. Em 1982, foi agraciado com o Prêmio Príncipe das Astúrias de Humanidades; em 1986, ganhou o Prêmio Konex na disciplina "Lógica y Teoría de la Ciencia"; em 2009, ganhou o Guggenheim Fellowship; em 2014, foi premiado com o prêmio Ludwig von Bertalanffy em "Complexity Thinking"; e, em 2016, recebeu o seu segundo Prêmio Konex, mas no campo de "Lógica y Filosofía de la Ciencia". Foi membro da American Association for the Advancement of Science (1984) e da Royal Society of Canada (1992). Foi autor de diversos artigos e livros como La edad del Universo (1955); Causalidad: el principio de causalidad en la ciencia moderna (1959); La ciencia, su método y su filosofía (1959); Ética y ciencia (1960); Intuición y ciencia (1962); El mito de la simplicidad (1963); La ciencia (1963); La investigación científica, su estrategia y su filosofía (1967); Los fundamentos de la física (1967); Teoría y realidad (1972); Filosofía de la física (1973); Semántica (1974); Tecnología y filosofía (1976); Epistemología (1980); El problema mente-cerebro (1980); Ciencia y desarrollo (1980); Materialismo y ciencia (1981); Economía y filosofía (1982); Lingüística y filosofía (1982); Controversias en física (1983); Intuición y razón (1986); Filosofía de la psicología (1987) e Mente y sociedad. Ensayos irritantes (1989). Além disso, o seu sistema filosófico está exposto em oito volumes que integram o seu Tratado de filosofía básica (1974-1989), intitulados respectivamente Sentido y referencia (1974); Interpretación y verdad (1974); El mobiliario del mundo (1977); Un mundo de sistemas (1979); Explorando el mundo (1983); Comprendiendo el mundo (1983); Filosofía de la ciencia y la tecnología (1985) e Ética: lo bueno y lo justo (1989).